Antes, porém, há de se entender como a recepção a Jair Bolsonaro em Fortaleza, em agosto de 2015, se transformou no gatilho para a estratégia depois propagada nas eleições de 2018. Nada foi casual. Desde o início, havia algum método. Mesmo a calorosa multidão que o aguardava no Pinto Martins estava lá porque fora convocada, via aplicativo de mensagem, por um bolsonarista de primeira hora: Alex Melo, um empresário fortalezense de 47 anos cujos negócios já variavam àquela altura.
Melo é ex-assessor do deputado estadual Delegado Cavalcante (PSL-CE), nome que consta em dossiê entregue pelo desafeto Heitor Freire (PSL) ao Supremo como parte do que ele chama de gabinete do ódio – Cavalcante nega todas as acusações.
Gaba-se da proximidade com Bolsonaro, e de fato parece privar de alguma intimidade com ele. Na sexta-feira, 26 de junho, data em que o presidente veio ao Ceará para inaugurar as obras da transposição das águas do rio São Francisco, Melo apresentou-se como convidado do chefe do Executivo. Enquanto outros apoiadores esperavam um aceno do ex-militar, o cearense teve o ingresso franqueado. Na cerimônia, minutos depois, podia ser visto ora gravando vídeos com Bolsonaro para as redes sociais, ora cochichando no ouvido do presidente.
Cinco anos atrás, porém, Melo era apenas um simpatizante daquele deputado eleito pelo Rio de Janeiro e cujas opiniões incomodavam a esquerda. Em 2015, ele soube que Bolsonaro viria ao Ceará a convite do então deputado federal Cabo Sabino (Avante-CE), o mesmo que, em 2020, lideraria o motim dos policiais militares no Estado.
Envolvido com os movimentos que defendiam a saída de Dilma, tratou de organizar um ato com o objetivo não apenas de acolhê-lo na Capital, mas, segundo Melo, de “viralizar a figura de Bolsonaro”, avaliado como a principal voz anti-PT naquele momento e único capaz de incorporar os valores conservadores numa eventual corrida eleitoral contra “as forças globais do comunismo”, conforme sua descrição em conversa com O POVO, por telefone.
“A recepção no aeroporto foi a primeira do país. Ele já era querido, já havia esse movimento pró-Bolsonaro, mas faltava força. A minha ideia era: o discurso é excelente, mas falta conhecer”, conta Melo, saboreando a memória.
“E aí juntamos esse grande número de pessoas, umas 150, para ‘viralizar’ Bolsonaro.”
Alex Melo, empresário e bolsonarista, revelando o início do trabalho no Ceará de divulgação da imagem do atual presidenteComo a gente já trabalhava com o ‘fora PT’ nos fóruns, o Whatsapp foi uma ferramenta muito importante para isso.”
Sabino também se lembra desse dia. “Bolsonaro, que era uma incógnita porque já tinha desistido uma vez de concorrer à Presidência, foi muito bem recebido. Nessa época, ninguém queria chegar perto dele, o mundo político queria distância”, declara por telefone à reportagem, em meados de junho. De acordo com o agora ex-parlamentar e pré-candidato a vereador, “na noite em que chegou, Bolsonaro foi recepcionado no aeroporto por um grupo de apoiadores depois de desembarcar do mesmo voo em que vinha José Pimentel (então senador pelo PT), que foi vaiado”.
Melo assegura que foi apenas nesse encontro que Bolsonaro e a equipe que lhe dava suporte – limitada ao filho Carlos e a poucos assessores – entenderam o potencial do que tinham em mãos. “Eles descobriram a importância das redes sociais nesse contato com a gente do Ceará. Até aí, trabalhavam mal. Nós começamos a mudar isso. Houve mais pessoas do país também, e cada uma fez seu papel”, mas o pontapé, atesta, tem “DNA cearense”.
Um exemplo prático dessa mudança na fabricação dessa imagem do futuro presidente: pouco familiarizado com o universo dos aplicativos em 2015, Bolsonaro só havia feito, até aí, uma única transmissão ao vivo antes de desembarcar no Estado – “uma live com Olavo de Carvalho”, acrescenta Melo, em alusão ao guru da direita, Olavo de Carvalho, que mora no estado da Virgínia, EUA.
O evento no aeroporto, além de inscrever essa modalidade na gramática política do bolsonarismo, também apresentou ao deputado do PP a força das comunicações diretas por meio das redes, crucial para a formatação do discurso que levaria para as disputas presidenciais.
“Nesse dia (14 de agosto), fizemos live no Facebook, espontaneamente. Cada vídeo de cada pessoa que fez viralizou. Dali virou uma sistemática na campanha dele”, relata o cearense, que diz ter sido contatado no dia seguinte por simpatizantes de outros estados interessados na cooperação para a realização de eventos do tipo em suas localidades.
“Um amigo meu de Brasília, que também é bolsonarista, me ligou parabenizando. E aí organizamos a recepção em Belém no mesmo ano. Lá em Belém foram 700 pessoas. Fui pra Belém, sem convite dele nem nada. Passei (os custos da viagem) no cartão da minha mãe”, narra. “Quando Bolsonaro foi embora, ficamos conversando no aeroporto. Depois fui pra Brasília, fiquei no apartamento dele para participar do acampamento ‘fora, Dilma’. Em seguida foi Recife. Virou regra. Eu sabia que isso iria acontecer.”
Instado a falar sobre a participação do quarteto do “gabinete do ódio” nesse evento de 2015, Melo garante: “Estavam no aeroporto também”. Neste trecho da conversa, feita pelo Whatsapp, antes de se encontrar com Bolsonaro no município de Penaforte, local de inauguração das obras da transposição, o empresário é mais reticente.
Pergunto se conhece Matheus, Hemrique, Guilherme e Mateus. Melo responde: “A gente conhece”. Questiono sobre a função que tinham em 2015. “Eles são como eu, pessoas do povo que gostavam da ideia do Bolsonaro e se encontravam em fóruns. Eram também do pessoal que ia lá”, aponta.
“Lá”, no caso, eram tanto o aeroporto quanto os encontros que se seguiram e resultaram na criação do Endireita, celeiro dos jovens que se reagrupariam posteriormente no Planalto.
“As coisas foram acontecendo a partir dali”, prossegue o ex-assessor parlamentar. “É claro que, depois de crescerem, eles foram chamados para trabalhar (no governo). Foi isso que aconteceu com Guilherme, Mateus e Matheus. Eram muito fortes nas redes sociais nesse período.”
Sem recordar ao certo o que faziam exatamente e se já trabalhavam juntos, Melo assegura que o pessoal do Ceará “teve papel fundamental” na chegada de Bolsonaro ao poder: “Com certeza foi determinante. Criaram, ainda em 2015, uma maneira de reverberar o discurso dele. Ele não fazia antes, até hoje não faz muito bem, quem faz somos nós”.
"Criaram, ainda em 2015, uma maneira de reverberar o discurso dele. Ele não fazia antes, até hoje não faz muito bem, quem faz somos nós”.
Alex Melo, empresário e bolsonarista, destacando o quanto foi fundamental o trabalho no Ceará para difusão da imagem do BolsonaroEsse trabalho a que o empresário se refere era de muitas naturezas, claro. Como a reportagem identificou, havia o virtual, protegido sob o anonimato e espalhado por contas no Facebook e Twitter que produziam conteúdo pró-Bolsonaro e contra os adversários do parlamentar e depois postulante, apagadas tão logo se consumasse a vitória em 2018. E havia o formal, com CNPJ, que ganhou materialidade com empresas como a “Mituz”, um pequeno empreendimento fundado por Guilherme Julian cujo objetivo era ajudar a difundir nome e rosto do deputado federal no Brasil por meio de camisas e outras peças de vestuário.
Neste episódio sobre o ''gabinete do ódio no Ceará', você leu sobre como a passagem de Bolsonaro por Fortaleza, em agosto de 2015, foi o estopim dos grupos que já vinham se articulando desde 2013. Veja o conteúdo dos episódios anteriores e posterior.
Episódio 1 - O POVO mostra os passos do grupo de jovens cearenses a partir do qual se originou o "gabinete do ódio".
Como quatro cearenses chegaram à linha de frente da máquina de guerra digital de Bolsonaro