Dez anos separam a criação da primeira facção criminosa brasileira, o Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro, da sua chegada ao Ceará, na década de 1980.
Entre falhas e negações do poder público, os grupos criminosos expandiram sua atuação no Estado e, como jogadores experientes de xadrez, passaram a mover as peças do crime com domínio.
A identificação do Nordeste como rota estratégica para o escoamento da cocaína vinda de outros países da América Latina colocou o Ceará no centro do tabuleiro.
Após o CV, foi a vez do Primeiro Comando da Capital (PCC) começar a dar os primeiros sinais de presença no Estado, já nos anos 1990. Entre 2015 e 2016, uma nova sigla entra em ascensão: a Guardiões do Estado (GDE).
Em meio às disputas violentas entre facções, a população e os governos precisaram se adaptar à nova e cruel rotina imposta pelo crime organizado.
A segurança pública passou a ocupar mais espaço, receber mais investimentos e ganhar centralidade nas agendas do Legislativo e do Executivo.
Após um longo período de negação e omissão — que se estendeu do início dos anos 2000 até o primeiro semestre de 2016 —, os governos estaduais passaram a adotar uma postura de enfrentamento mais direta e rigorosa.
Com a nova estratégia, o poder público tenta, até os dias atuais, recuperar o controle perdido ao longo dos mais de 40 anos de atuação das facções criminosas.
Mas o que de fato mudou no combate ao crime organizado no Ceará? Como o aparato público tem respondido a essa Guerra Sem Fim?
Instituído no âmbito do Ministério Público do Estado do Ceará em 2006 e posteriormente renomeado em 2011, o Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco) tem uma trajetória dedicada ao combate e à repressão das ações desenvolvidas pelo crime organizado.
Com uma criação que antecede a
"O primeiro estado brasileiro a instituir um Gaeco foi Minas Gerais, seguido por Paraíba, Paraná, Pará e Rio de Janeiro."
Desde então, tanto em nível estadual como federal, os Gaeco consolidaram-se como uma das principais frentes institucionais de combate ao crime organizado no Brasil.
A principal forma de atuação dos núcleos consiste no desenvolvimento de políticas e estratégias para identificar, investigar e responsabilizar agentes do crime.
A coordenação do Gaeco Ceará, em entrevista concedida ao O POVO+, relata que houve mudanças significativas na atuação e nos efeitos do grupo ao longo dos anos.
Atualmente, além de outras atribuições, eles trabalham principalmente em grandes operações de combate ao narcotráfico.
“A cada ano, a demanda aumenta. Houve avanços na estrutura do Gaeco, com melhorias na tecnologia e nas ferramentas de investigação. Os membros também começaram a se capacitar mais, porque a exigência cresceu. Todas essas mudanças resultam em trabalhos mais complexos — e, ao mesmo tempo, mais eficazes”, comenta a coordenadoria.
Visando a desarticular grupos criminosos envolvidos em tráfico de drogas e armas, assaltos, homicídios, extorsões, roubos de veículos, e associação para o tráfico, o Gaeco Ceará também atua em parceria com outras forças de segurança estaduais e federais, e Ministérios Públicos de outros estados.
Confira algumas das funções primárias do Gaeco
A Operação Gênesis é um exemplo proeminente mencionado pelo Grupo. Com fases operadas entre 2020 e 2025, ela começou com foco no envolvimento entre organizações criminosas e agentes e ex-agentes de segurança pública (policiais militares, civis e penais).
Posteriormente, também avançou para a desarticulação de núcleos de facções criminosas formados exclusivamente por civis ou com lideranças de policiais militares auxiliados por narcotraficantes.
Conheça algumas operações deflagradas pelo Gaeco contra o crime organizado no Ceará
Acompanhando por meio de investigações o avanço das facções sobre territórios e populações, o Gaeco tem uma grande preocupação com a prevenção da influência em eleições.
Para manter a democracia é realizado um trabalho de prevenção para evitar que facções lancem candidatos ou impeçam eleitores de votar. A atuação visa, inclusive, impedir o registro de candidaturas de pessoas já sob investigação do MPCE, verificando declarações de bens e certidões criminais durante o procedimento de registro de candidatos.
Assista ao documentário Guerra Sem Fim: Facções e Politica, no OP+. Abaixo, vc pode ver o trailer
Apesar dos resultados positivos na prisão e desarticulação de grupos, a tese A avaliação do grupo de atuação especial de repressão ao crime organizado – Gaeco, indica que houve piora nos dados estatísticos de criminalidade.
Se de um lado o Ministério Público se fortalece como braço investigativo e repressivo do Estado no enfrentamento às facções criminosas, de outro, o Poder Judiciário também precisou se adaptar à complexidade dessa nova configuração do crime organizado.
Para que as ações de combate não se restrinjam às prisões e desarticulações, é necessário que o processo penal avance com celeridade, segurança e especialização.
Nesse contexto, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) passou a desenvolver mecanismos próprios para instruir, julgar e garantir a efetividade das penas aplicadas.
Seis anos após a maior onda de violência registrada no Ceará, a 6ª Vara do Júri foi oficialmente instalada em janeiro de 2025, com competência privativa e exclusiva para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por organizações criminosas.
A unidade dá atenção especial a casos com múltiplos réus ou múltiplas vítimas, como chacinas, geralmente associadas à atuação de facções.
Em funcionamento desde fevereiro, a 6ª Vara complementa a estrutura já existente da Vara de Delitos de Organizações Criminosas (VDOC), criada em 2018, mas sem competência para julgar homicídios.
Na ocasião da inauguração, o presidente do TJCE, desembargador Abelardo Benevides Moraes, afirmou ao O POVO que a criação do novo núcleo surgiu em 2024, como resposta à escalada da violência promovida por facções no Estado.
Ele explicou que o objetivo da nova unidade é “agilizar os processos dessa natureza”, com juízes especializados exclusivamente nesses casos. “À medida que você consegue agilizar e penalizar, há um reflexo na sociedade. Desaparece aquela impressão de impunidade, porque o processo com múltiplos réus é complicado”, avaliou.
Entenda como funciona uma Ação Penal de Competência do Júri
Com titularidade coletiva, a vara é composta por três magistrados(as) de entrância final, que decidem e assinam em conjunto todos os atos judiciais. O primeiro processo recebido pela unidade envolveu um homicídio ocorrido em 11 de fevereiro de 2024, atribuído a membros da facção Guardiões do Estado (GDE), sob ordem de comando interno.
O POVO+ procurou o TJCE e solicitou uma entrevista com os juízes para tratar da natureza dos casos, mas por motivos de segurança, os magistrados optaram por não se manifestar.
Por meio de nota, a Vara especial, exclusiva para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por organizações criminosas, informou que, desde sua instalação até a terça-feira (23/7/2025), foram recebidos 181 processos e procedimentos.
Destes, 91 procedimentos cautelares diversos já foram decididos pelo colegiado de juízes. A Vara ainda não dispõe de dados que permita a identificação de um perfil (gênero, idade, raça, origem...) dos réus e das vítimas desses crimes.
Leia íntegra da nota
Desde a instalação, até esta terça-feira (23/07), a unidade recebeu 181 processos/procedimentos. Já foram decididos pelo colegiado de juízes da 6ª Vara do Júri 91 procedimentos cautelares diversos.
Há 90 processos/procedimentos em andamento. Destes, 38 são ações penais em trâmite, das quais, 8 já tiveram a primeira fase encerrada com 19 réus pronunciados para serem levados a júri popular, todos homens.
Dados relacionados à condenação só poderão ser fornecidos após os julgamentos em plenário do júri.
Série de reportagens ancorada no lançamento do documentário Guerra Sem Fim - Facções e Política mostra não só o olhar do Audiovisual do O POVO+ sobre esse fenômeno que vem avançando no Brasil, como traz abordagens sobre o avanço das facções no Ceará