Há 200 milhões de anos, o mundo era dividido por supercontinentes. Na época, os continentes e países que hoje conhecemos como do hemisfério sul (exemplo: América do Sul, África e Oceania, e os países Índia e Nova Zelândia) estavam unidos pelo supercontinente Gondwana. Já os do hemisfério norte (América do Norte, Europa e parte da Ásia) eram a Laurásia.
Nessa mesma época, o Cariri cearense era habitado por pterossauros incríveis, representados por espécies como o Tupandactylus imperator (da subfamília dos tapejaríneos) e o Tupuxuara leonardii (da subfamília dos thalassodromíneos). Por muito tempo, se imaginou que esses pterossauros ― pertencentes à família dos tapejarídeos ― surgiram na Laurásia e, dali, se espalharam pelo mundo. Bom, pelo menos até a terça-feira, 14 de setembro de 2021.
A pesquisa de mestrado da paleontóloga Gabriela Menezes, publicada na revista científica Acta Palaeontologica Polonica, sugere que a família dos tapejarídeos provavelmente surgiu no Brasil. A hipótese veio após a descrição de uma nova espécie de pterossauro cearense, o Kariridraco dianae.
Mas como uma espécie nova pode deixar uma pista tão importante? Para isso, é preciso ter em mente as subfamílias dos tapejarídeos: enquanto outras espécies de tapejaríneos (percebeu o N diferenciando?) já foram encontradas na Espanha, na China e em Marrocos, o mesmo não pode ser dito dos thalassodromíneos. Na verdade, a subespécie só tem gêneros descritos oriundos do Brasil, e são bem poucos.
O que os paleontólogos brasileiros sugerem é que, enquanto os tapejaríneos se empolgaram em sair da Gondwana para explorar outros supercontinentes, algo (não se sabe o quê) motivou os thalassodromíneos a continuarem no mesmo lugar. A partir daí, foi questão de tempo para que gêneros e espécies novas de tapejaríneos surgissem em países do hemisfério norte, enquanto os familiares do Kariridraco mudaram pouco.
“Como eles são muito exclusivos e geograficamente restritos, eles não são muito diversificados entre si”, explica Gabriela, agora doutoranda na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pelo Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (Cappa).
O crânio fóssil do Kariridraco dianae está no Museu Paleontológico Plácido Cidade Nuvens, no município de Santana do Cariri (CE), e foi emprestado aos pesquisadores da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) para a pesquisa de Gabriela.
Doado por um trabalhador local, o crânio estava quase completo. Mas quando Gabriela começou a preparar o fóssil para estudo - há cinco anos, quando ainda estava na graduação -, ela percebeu algo estranho. A ponta do que seria o bico do Kariridraco era estranha: tinha uma coloração diferente do resto do fóssil e não se encaixava perfeitamente no resto do crânio.
Não demorou muito para ela descobrir que os responsáveis pela coleta do fóssil o tinham adulterado. A tal ponta do bico pertencia a outra espécie de pterossauro e estava colada com adesivo epóxi, geralmente usado na colagem de materiais de construção civil.
“É a cicatriz do problema do tráfico de fósseis”, define o paleontólogo Felipe Lima Pinheiro, coautor da pesquisa. “O incentivo do comércio de fósseis leva a esse tipo de iniciativa de adulterar os fósseis, para valorizá-los no momento da venda”, diz. Segundo ele, a prática é muito comum no Cariri, um dos princípios alvos do tráfico no Brasil.
A adulteração fez com que o estudo fosse adiado, pois demandaria mais tempo de preparação. Ao todo, Gabriela levou cerca de um ano para concluir o processo - somente então ela pode analisar o material.
Felipe reforça que entender as origens dos tapejarídeos é essencial para compreender o surgimento das primeiras árvores frutíferas do mundo. Afinal, muitos pesquisadores interpretam que a família é uma das primeiras dispersoras de frutos do planeta, já que a dieta deles consistia em frutas.
Por isso, a ideia de o Brasil ser o ponto inicial dessa família de pterossauros é empolgante, mas ainda há muitas variáveis a se analisar. Talvez, reflete o paleontólogo, outros thalassodromíneos sejam escassos mundo afora porque as condições de preservação dos fósseis foram desfavoráveis. Isso, é claro, faria a paleontologia rever novamente os seus conceitos, mas isso é praxe da área.
A regra é sempre considerar os fatos atuais e criar hipóteses a partir deles. Com novas descobertas, as hipóteses podem ou ganhar força, ou tomar outros rumos. É o ciclo padrão da ciência.
Enquanto isso, a paleontóloga Gabriela Menezes segue o doutorado analisando padrões macroevolutivos dos pterossauros em geral. Ou seja: ela vai comparar espécie por espécie e analisar a distribuição geográfica deles, tentando entender as influências evolutivas entre os bichos.
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo