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Doutor Pinho: o farmacêutico de 103 anos que descobriu o calazar no Ceará
Reportagem Seriada

Doutor Pinho: o farmacêutico de 103 anos que descobriu o calazar no Ceará

Aos 103 anos de idade, dr. Pinho é o farmacêutico mais longevo em atividade no Brasil. No apartamento onde mora, no Bairro de Fátima, em Fortaleza, ele manipula fórmulas fitoterápicas para passar o tempo e ajudar familiares e amigos
Episódio 21

Doutor Pinho: o farmacêutico de 103 anos que descobriu o calazar no Ceará

Aos 103 anos de idade, dr. Pinho é o farmacêutico mais longevo em atividade no Brasil. No apartamento onde mora, no Bairro de Fátima, em Fortaleza, ele manipula fórmulas fitoterápicas para passar o tempo e ajudar familiares e amigos
Episódio 21
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A pandemia da Covid-19 não traz medo para Felizardo de Pinho Pessoa Filho e seus 103 anos de vida. Faz aflorar memórias. Doutor Pinho, verbete com o qual ficou conhecido entre pacientes de Viçosa do Ceará e entre cientistas no Brasil, afirma que, não fosse pela idade biológica, estaria em alguma frente de trabalho contra o novo coronavírus.

O farmacêutico, pesquisador que descobriu o primeiro caso de calazar no Ceará (um dos primeiros do Brasil), tem experiência acumulada desde 1946. Ano em que começou a investigar o surto da doença que vinha matando gente e bichos entre o território cearense e o Piauí.

De família tradicional e rica em Viçosa no Ceará, neto e filho de farmacêuticos, Dr. Pinho fez da casa um hospital de campanha para infectados pelo flebótomo. Foi prefeito e vereador de Viçosa e deputado estadual.

Nesta conversa por videoconferência, mediada pelo filho César, Dr. Pinho não reclama da idade cronológica, toca piano, conta sobre a primeira criança infectada pelo calazar e revela como cientistas da Universidade de São Paulo (USP), em 1953, levaram sem autorização o grosso da investigação sobre a descoberta da doença no Nordeste. 

Dr Felizardo de Pinho Pessoa Filho, cearense que descobriu o calazar no Ceará, em 1946. Ele foi prefeito e vereador em Viçosa, cidade onde nasceu(Foto: BÁRBARA MOIRA)
Foto: BÁRBARA MOIRA Dr Felizardo de Pinho Pessoa Filho, cearense que descobriu o calazar no Ceará, em 1946. Ele foi prefeito e vereador em Viçosa, cidade onde nasceu

O POVO – O senhor é de 1918, o que vem à cabeça quando pensa no tempo de lá para cá?

Dr. Felizado de Pinho Pessoa Filho – Me lembro de quase tudo. Agora, no dia 26 de abril (2021), completei 103 anos. Não tenho Alzheimer, me lembro de muita coisa. Sou farmacêutico, filho e neto de farmacêuticos. Meu avô João de Pinho Pessoa fundou a nossa farmácia, a Pinho Irmãos, em Viçosa do Ceará (a primeira no município da Chapada da Ibiapaba) em 31 de outubro 1856. Ele exerceu a sua função a vida toda. Aposentou-se e passou a farmácia para o meu pai, Felizardo de Pinho Pessoa, que era farmacêutico também e que morreu com 88 anos, em 1943, um ano antes de eu me formar. Formei-me em 1944, no dia 16 de dezembro, pela Faculdade de Farmácia e Odontologia do Ceará.

O POVO – Como o senhor descobriu o primeiro caso calazar no Ceará em 1946 se, naquela época, não havia laboratório no Estado para atestar?

Dr. Pinho – Descobri o primeiro caso de calazar no dia 10 de janeiro de 1946, um garoto. Em seguida, encontrei outro menino no dia 12 do mês seguinte. Ele tinha cinco anos de idade. E em março, dia 15, veio o terceiro. Outra criança do sexo masculino, de três anos de idade, de Ubari, a mesma localidade dos outros dois. Os primeiros casos, descobri por analogia das características da doença. Adquiri uma parasitologia de um professor da Universidade de Lyon, na França. Era o catedrático J. Aguiar que havia tirado uma licença de seis meses para estudar o “Kala azar”, na Índia (lugar onde primeiro se descreveu o protozoário). Quando ele voltou, publicou uma edição sobre parasitologia e inserindo nela um capítulo completo sobre calazar ou a “febre negra”, porque as pessoas acometidas ficavam com hiperpigmentação na pele. Foi aí que aprendi as características da doença. Nesse tempo, quando vi a criancinha doente, o diagnóstico foi feito sem laboratório.

O POVO – Muitos morreram e o Estado sequer registrou a causa.

Dr. Pinho – Não tinha como se fazer. No caso da primeira criança que atendi, não podia se fazer uma perfusão no baço que é um órgão hematopoiético e porque sangraria a vida toda. Acabaria de morrer. E eu não ia, como farmacêutico, manter um trocater (equipamento médico com um furador e uma cânula) num fígado para tirar um material. O calazar aumenta o ventre de uma maneira que naquele tempo chamavam a doença, em Viçosa, de “mal do buchão”. Aqui, não se falava em calazar.

 

"No dia 10 de fevereiro de 1946, ao chegar na farmácia pela manhã, tinha uma mãe com um menino de 3 anos e 8 meses de idade – o Francisco Silva. Ela queria um remédio para uma febre que não passava"

 

O POVO – Como o senhor chegou à primeira criança contaminada?

Dr. Pinho – No dia 10 de fevereiro de 1946, ao chegar à farmácia pela manhã, tinha uma mãe com um menino de 3 anos e 8 meses de idade — o Francisco Silva. Ela queria um remédio para uma febre que não passava. Segundo a mãe, no início, a febre cedia com o chá sabugueiro, mas nunca acabava. Era gente pobre e um médico de Sobral tinha passado antipiréticos. Ela relatou que, após alguns meses, a febre se tornou contínua. Pela manhã baixava para 37,5º e à noite chegava a 38,5º. Examinei o garoto e a primeira característica que vi foi a alopecia que é a queda de cabelo. Uma alopecia exagerada. Então, fui descendo e fui vendo na região inguinal, fui apalpando e verifiquei as glândulas altamente exageradas. Ai, no rostinho dele notei uma pigmentação escura. No abdome, ao apalpar debaixo da costela, encontrei 3 cm aumentado e 2,5 cm abaixo do fígado. Então, fiquei certo de que era calazar e fui procurar como tratar.

O POVO – A criança resistiu?

Dr. Pinho – Morreu, não tinha tratamento naquele tempo para o calazar. Apliquei o tartarato de bismuto, usei por três meses e não teve melhora de jeito nenhum. Aplicava injeções de tartarato de bismuto, um remédio fabricado pelo laboratório Torres, que meu pai utilizava para o tratamento da leishmaniose tegumentar (cutânea), conhecida na região como “ferida braba”. Passei a tratar do fígado dele, muito inflamado, dando antitóxico. Passei a dar complexo B, vitaminas e outros elementos anti-infecciosos. Naquele tempo, era a sulfanilamida em comprimido e em pó para era o anti-infeccioso para doenças graves. Era difícil e o tempo foi passando. Eu fui à Rhodia em Fortaleza, representante de um importante laboratório francês, que tinha lançado um produto à base de antimônio de terceira valência. Fui lá e comprei uma porção de ampolas e comecei a tratar, baixava um pouquinho o baço. A hipertrofia do baço diminuía e o fígado aumentava consideravelmente. Eu não pude continuar porque ele (a criança) iria acabar com cirrose hepática. Passei a dar outros remédios e o tempo foi passando. Depois foi lançado outro produto, o glucantime antimonial pentavalente. O Vicente Carvalho, da Rhodia, me indicou e disse que poderia diminuir o poder de toxidez, poderia curar.

Dr. Felizardo de Pinho Pessoa, o farmacêutico mais antigo em atividade no Brasil, descobriu os primeiros casos de calazar em território cearense, na década de 40 do século passado(Foto: BÁRBARA MOIRA)
Foto: BÁRBARA MOIRA Dr. Felizardo de Pinho Pessoa, o farmacêutico mais antigo em atividade no Brasil, descobriu os primeiros casos de calazar em território cearense, na década de 40 do século passado

O POVO – Apareceram mais doentes de calazar?

Dr. Pinho – Depois detectar os três casos, apareceram outros e comecei a fazer fichas para identificá-los. Até ali, não salvei ninguém até chegar o glucantime. Resolvi ir a cavalo para Ubari, localidade dos primeiros infectados, uma região onde havia a mina da Pedra Verde que era foco do calazar. Fui investigar e visitar a residência das três crianças. Ao chegar na primeira casa, observei que havia um cão deitado na porta da casa e o animal me chamou atenção. O cachorro apresentava alopecia (queda de pelo), ferimentos nas extremidades das orelhas e do focinho, as unhas das patas dianteiras enroladas como se fossem umas argolas. Eram características do calazar. Pedi permissão para entrar na casa humilde e ir até o quarto onde um dos garotos infectados dormia com um irmão. Os garotos dormiam na rede sem roupas por causa do calor e o mosquito se aproveitava.

O POVO – O senhor catalogou quantos no início da investigação?

Dr. Pinho – Eu já tinha fichado, exatamente, 18 doentes entre adultos e crianças. Na casa das crianças, encontrei nas paredes do quarto o mosquito flebótomo. O “lutzomyia longipalpis” com o abdômen cheio de sangue. Tempos depois, ao voltar a Ubari, conversando com as pessoas do lugar fiquei sabendo de outros casos na região e assim fui recebendo informações que havia várias casas naquele vale onde faleceram garotos e até um jovem de 18 anos com a mesma doença, o “mal do buchão”. Dali, fui pesquisar nas localidades vizinhas de Passagem da Onça e Lagoa do Barro. Tinha um surto de calazar localizado.

O POVO – Isso em 1946?

Dr. Pinho – Não, já estava em 1948. Fui à casa das pessoas infectadas. Depois, mandei transformar (em leitos) uns galpões de minha família que havia funcionado como armazéns da firma Pinho & Irmãos. Ficavam atrás lá de casa. Mandei transformar em quartos, botar camas e redes para esse pessoal e as crianças (pacientes). Transformei em enfermaria para botar os 18 doentes, era no quarteirão da farmácia. Contratei dois enfermeiros. Diariamente eram realizadas várias verificações da temperatura às 6 horas, 9, 12, 18 e 21 horas e depois eram feitas as curvas térmicas de cada paciente. Numa casa de um parente nosso, que ficava vizinho a um sobrado do tempo do Império que era do meu avô, mandei limpar tudo e preparei quartos para os familiares dos doentes. Mandei botar pedras grandes para fazer três trempes (fogão) para botar as panelas e eles fazerem as comidas. Em cada quarto daqueles ficava uma família do distrito de General Tibúrcio, povo de Ubari. Eles foram os primeiros com quem conversei. Trazer a família também foi a forma que achei de trazer os filhos doentes, eles não aceitavam deixar o filho vir sozinho (se tratar na sede de Viçosa, no hospital de campanha).

 

"Olhe, quando comecei a aplicar o glucantime, com 20 dias já estava começando a desparecer sintomas na pele de quase todos"



O POVO – O senhor fazia do bolso do senhor?

Dr. Pinho – Tudo, tudo (risos). Acho que por isso, por ter feito isso ao próximo, que eu ainda estou passando por essa vida. O pessoal me chamava de doido. ‘Você está acabando tudo’. Fornecia legumes para eles comerem. Contratei dois homens, cada qual com seis cargas, para abastecer com água mineral de cinco olhos d’água que tinha na propriedade. Água mineral de primeira e eles tinham cabaças no quarto. Eu comprava carne de segunda e mandava fazer a comida em panelonas enormes. Guisados, arroz, feijão, todas essas coisas baratas, mas era alimento para eles. E a alimentação das crianças era feita pela minha mãe. Era mais verdura (risos), ela era parte dessa cooperação extraordinária.

O POVO – E o glucantime deu algum resultado?

Dr. Pinho – Olhe, quando eu comecei a aplicar o glucantime, com 20 dias já estava começando a desparecer sintomas na pele de quase todos. Aprendi muito sobre medicamentos porque meu pai, como farmacêutico, comprava insumos em laboratórios franceses e alemães. Os frascos, trazidos de navios, chegavam em caixotes e enrolados em revistas médicas. Não sei se era brinde ou para proteger os fracos. Recebia uma vez por mês e lia, vinha atrasada. Lia tudo, anúncios, notícias sobre remédios (novos). E na faculdade, tinha uma aula de entrevista clínica em que aprendi a fazer anamnese para fazer a consulta dos matutos. Como eu tinha curiosidade, comprei o livro Anatomia de Tastut (Tratado de Anatomia Humana, L. Tastut y A. Latarjet) e o Tratado de Obstetrícia porque também fazia parto de tinha algumas dificuldades, não havia médicos que fossem naquelas comunidades pobres. Fiz centenas e centenas de parto, tudo de graça. Uma vez percorri 12 léguas a cavalo para salvar uma criança, tenho muitos afilhados de parto. Um dia, eu deputado e a Câmara ainda era no Rio de Janeiro (então capital do Brasil), estava num hotel e um rapaz veio tomar a bênção. Era um desses nascidos por minhas mãos.

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O POVO – O senhor lia as revistas farmacêuticas em francês?

Dr. Pinho – Fui educado pela Maria de Pinho Marques da Silva, chamada de Aroca, que era sobrinha de meu pai. Ela era solteira e filha de um juiz de Direito, ele morreu e ela veio morar com a gente. Ela achou de me ensinar (francês) quando eu era bem criança, tinha dez oito anos de idade. Isso foi de uma utilidade extraordinária, por causa disso mandei buscar muitos livros que só existiam em francês. Até um tratado de botânica, estudava as plantas e as utilizava como fitoquímicos. Criei muitas fórmulas para vários tipos de doenças. Aprendi a trabalhar com o pacari, fui mordido por uma cobra caninana e fiquei, temporariamente, cego e paralisado enquanto meu irmão vinha para me levar para o Hospital Geral. Lembrei que tinha o pacari e havia salvado animal e gente picados por cobra.

O POVO – Pacari é uma planta?

Dr. Pinho – É uma planta, serve para picada de aranha, cobra, escorpião. Tomou e botou em cima e acabou-se. É um verdadeiro remédio. Quando fui picado, disse a minha esposa: ‘Lúcia, dentro da minha bolsa de viagem e pesquisa tem vidro escuro. Bota uma colher de chá e três dedos d’água com açúcar’. Criatura, com dez minutos, antes de meu irmão chegar, eu já estava melhor.

 

"Primeira vez que vi, eu tinha 14 anos e li numa revista. Uma notícia numa revista francesa falando sobre esse 'Kala Azar'"

 

O POVO – Alguém duvidou da descoberta que o senhor fez?

Dr. Pinho – O Thomaz Aragão era meu amigo e quando os ricos de Viçosa me chamavam para tratar quem tinha uma doença muito séria, eu tinha medo de cuidar devido a responsabilidade. Eu era farmacêutico. Eles tinham muito dinheiro para pagar um médico, eu tratava dos pobres que não tinham dinheiro, nem médico, nem hospital. Um amigo meu adoeceu muito grave, me chamaram e pedi para a família dele mandar buscar um médico. E disse que se eles não hospedassem o médico, eu hospedaria lá em casa. Chamaram o doutor Aragão, aproveitei e mostrei um diagnóstico de calazar que eu tinha feito, mostrei a criança infectada. E ele disse: "Não Pinho, não existe calazar no Brasil. Confunde-se muito com malária, dá essa hipertrofia e é parecido, não existe essa doença. Nunca vi."

O POVO – Duvidavam dos estudos de campo e prática do senhor.

Dr. Pinho – Não acreditavam. Tratei de muitos doentes aqui (em Viçosa) de calazar, sem resultado nenhum. Quando comecei a tratar com glucantime, as pessoas se apropriaram do que eu fazia. Nunca tinha ouvido falar na doença aqui no Ceará. Primeira vez que vi, eu tinha 14 anos e li numa revista. Uma notícia numa revista francesa falando sobre esse 'Kala Azar'. E aí, fui atrás de outras revistas e no trabalho do professor J. Aguiar, da Universidade de Lyon. O primeiro caso comprovado no Ceará foi o do Francisco Silva, de 3 anos e 8 meses, no dia 10 de fevereiro de 1946. Porém, os resultados de melhora e cura só vieram em 1948 com o glucantime. No Brasil, o Evandro Chagas foi quem o identificou o calazar em ser humano, em 1934, nos sertões de Sergipe em um rapaz de 17 anos, bem pobrezinho. E a mãe dele tinha acabado de morrer com todas as características da doença.

 

O POVO – Os pesquisadores do Carlos Chagas vieram ao Ceará quando souberam dos casos de Viçosa?

Dr. Pinho – Em 1953, depois dos 18 casos que fiz fichas e cuidei em Viçosa, apareceu um caso de calazar já na fase final. Era o garoto Francisco Pereira, de 3 anos de idade, que tratei dele, mas já estava no estágio final da doença. Um dia, quando deu três horas da manhã, foram me dizer que o Francisco tinha morrido. Foram três meses de tratamento. Pediram para eu mandar fazer o enterro dele e ainda nesse tempo o diagnóstico não era feitos através de exames de laboratório. Então, pedi para retirar um pedacinho do fígado para fazer a necropsia. E disseram que não, era muita malvadeza. Mas eu precisava provar para as autoridades sanitárias que o Estado tinha de fazer a dedetização das localidades onde o mosquito estava propagando o calazar. A família deixou com uma condição, que tivesse uma banda de música e um caixão bem bonito.

O POVO – O senhor veio a Fortaleza, então, falar sobre o surto que havia descoberto?

Dr. Pinho – Vim e consegui os corantes May-Grunwald e Leishman, com o Serviço Local de Combate à Febre Amarela, para fazer os testes. Levei para o cemitério, mandei cavar a sepultura bem pertinho da Igreja do Céu. O corpo do Francisco estava dentro da igreja e retirei um pedacinho do fígado, do baço, tirei o líquido esternal, fiz as lâminas e fechei a barriga do Francisco. Com o material, corri para a farmácia e quando estava tudo sequinho, corei e fui para o microscópio. Deu altamente positivo.

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O POVO – Foi a primeira vez que o senhor retirou amostras de um humano para a pesquisa?

Dr. Pinho – Sim. Ora, ao olhar no microscópio, as lâminas de cada órgão, estava lá! Riquíssimo de leishmaniose. Aí, embalei tudo, peguei meu jipezinho e fui direto para Fortaleza. No escritório da Navegação Aérea Brasileira (NAB), que possuía dois aviões que ligavam Fortaleza a São Paulo, despachei as lâminas para o doutor Samuel Barnsley Pessoa (sanitarista Universidade de São Paulo) e retornei para Viçosa. Cinco dias depois, eu já estava em Viçosa quando chega um casal de cientistas. Eles se apresentaram como Leônidas Deane e Maria Von Paumgartten (do Instituto de Patologia Experimental do Norte, atual Instituto Evandro Chagas). Disseram que vieram de São Paulo a mando do Samuel Pessoa, depois de ter recebido o material de laboratórios que enviei. Teria ficado encantado e admirado com a descoberta para a medicina.

 

"O casal de cientista disse que tinha de levar o meu material de pesquisa para poder conseguir tratamento. Pensei que eles fossem copiar, sai para atender uma pessoa fora de Viçosa e quando voltei eles tinham embalado tudo e levado minhas anotações de anos de pesquisa "

 

O POVO – O senhor tinha procurado a Universidade Federal do Ceará?

Dr. Pinho – Eu disse para o casal de cientistas, hospedado em minha casa, que em Fortaleza tinha falado com o doutor Alencar (Joaquim Eduardo de Alencar) — professor de parasitologia da Universidade Federal do Ceará. Três dias depois, o Alencar veio para Viçosa. Contratei um motorista, antes do Alencar chegar, e fomos nós três para os locais por onde eu havia pesquisado em Ubari. Começamos a ver os doentes. Ele (Leônidas Deane) me pediu para arranjar um animal manso para capturar mosquito, tinha muito flebótomo lá. Arranjei uma vaca enorme, dos peitões. Ele tirou da sacola dele um capturador do flebótomo. Quando eu descobri isso, não tinha capturador. Eu tinha improvisado um com um cano e um vidro. Capturei de um cachorro, eu estudava até de madrugada a anatomia pelas fotografias do flebótomo (mosquito-palha). O Lutzomyia longipalpis era o que tinha em maior quantidade nas três casas que visitei. O Phlebotomus papatasi dava em cima da serra, provocava a ferida “braba” e o calazar visceral. No segundo dia, ele cutucou um capturador parecido com uma mamadeira em formato de pera e fazia a sucção dos mosquitos da vaca. Com cinco dias, a vaca deu um coice nele e quebrou o capturador dele e eu mandei fazer os que eu usava.

O POVO – Antes, o senhor investigou animais contaminados?

Dr. Pinho – Para comprovar a existência da doença nos humanos, eu precisava retirar um pedaço do baço e do fígado de um cadáver acometido do calazar. Pedi, mas várias famílias não autorizavam o procedimento. Passei, então, a investigar se outros animais seriam reservatórios (hospedeiros) e para isso fiz análise de várias lâminas de galinhas, carneiros, bodes, todos com o corante Leishman e tudo negativo. Três cachorros que descobri estavam muito doentes, com todas as características do calazar. Perguntando sobre outros animais na região do foco da doença, me falaram sobre muitas raposas na área. Como a raposa é da mesma família dos cachorros, achei que elas também poderiam ser hospedeiras. Encomendei a um caçador algumas raposas, mas pedi que enviasse uma por vez para análise. Só a terceira raposa deu positivo, tanto com o Leishman quanto com o May-Grunwald. Eu podia até parar, mas continuei pedindo mais raposas e os resultados deram negativo até a sétima raposa positivar novamente e, então, parei.

O POVO – Com as pessoas doentes e o teste positivo nas raposas, o senhor concluiu que tinha um surto em Viçosa?

Dr. Pinho – Estava alastrado e já chegavam pessoas para se tratar não só do Ceará, mas de diversas cidades do Piauí, como Buriti dos Lopes, Piracuruca, Pedro II, Cocal, Campo Maior e outras. Era necessário a comprovação para o convencimento das autoridades mandarem pulverizar as áreas com focos de calazar. Até que apareceu a família e o garoto de seis anos, o Francisco, atrás de tratamento. Estava no estágio final da doença, bastante debilitado com o corpo coberto de púrpuras (manchas escuras), muitas feridas gangrenadas. O pai foi informado da gravidade do estado de saúde do filho e iniciei o tratamento com a pomada de Reclus para sarar as feridas do corpo, mas a situação era tão grave que o baço de tão grande já cruzava com o fígado e, infelizmente, semanas depois veio a óbito.

Dr Felizardo de Pinho Pessoa Filho com a companheira Maria Lúcia Fontenele(Foto: BARBARA MOIRA)
Foto: BARBARA MOIRA Dr Felizardo de Pinho Pessoa Filho com a companheira Maria Lúcia Fontenele

O POVO – O senhor mostrou a pesquisa toda para o casal de cientistas de São Paulo?

Dr. Pinho – No escritório em casa, mostrei os prontuários, as fotos. Eu queria que você visse a fisionomia deles quando olharam. Deixei-os em Viçosa e fui pedir ao Serviço Local de Combate à Febre Amarela, em Fortaleza, para borrifar e matar os flebótomos nas casas. Era demais, chupando gente e animais. Mandaram cinco carradas de veneno para pulverizar. Enquanto isso, o casal de cientista disse que tinha de levar o meu material de pesquisa para poder conseguir tratamento. Pensei que eles fossem copiar, saí para atender uma pessoa fora de Viçosa e quando voltei eles tinham embalado tudo e levado minhas anotações de anos de pesquisa. Pegaram todas as minhas fichas com as informações de nomes, idade, local onde morava, sintomas, remédios usados, a quais fazendeiros ou comerciantes eram ligados e tal. Levaram todas os registros clínicos anotados. Isso foi em 1953. Foram para Sobral e falaram com o Thomaz Aragão, o mesmo médico que falei sobre o calazar e ele disse que não existia a doença. Pegaram até minhas fichas de pacientes do Piauí. Eles nunca foram ao Piauí, eu fui vacinar em Pedro II, Piripiri, Batalha, Coimbra, Amarração, tratei também lá.

O POVO – O senhor não recebeu o seu material de volta?

Dr. Pinho – Nunca. Poucos me deram créditos, até hoje, pela investigação e descoberta. Estou vivo para contar a história. Até as fotografias de duas crianças infectadas que retratei em Viçosa, eu fotografava e tinha um laboratório para revelação, foram levadas pelo casal. No livro Parasitologia, o cientista Luís Rey (USP) cita que as pacientes eram minhas. Na legenda está escrito: “Manifestações clínicas de calazar. Note-se o emagrecimento e o grande volume do abdome devido à esplenomegalia e à hepatomegalia, em pacientes de um foco de Viçosa, no Ceará (casos do Dr. Felizardo Pinho Pessoa; documentação cedida pelo prof. L.M. Deane)”. O mesmo Deane que levou, em 1953, minhas fichas (prontuários) da descoberta, pesquisa e tratamento do calazar.

 

 


 

 

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