O único representante da América Latina eleito
No lugar atual em que estamos, as questões de gênero são impossíveis de serem dissociadas do caráter meramente técnico da pesquisa. Isso a engenheira química e professora Diana Cristina Silva de Azevedo — a única cearense, a única brasileira, a única representante da América Latina na IAS — percebeu ao longo da carreira.
Diana, 55 anos, é a primeira vice-reitora eleita da Universidade Federal do Ceará (UFC), votada ao lado do reitor Custódio Almeida na chapa "UFC Viva e Democrática". Até então, em 70 anos, nunca uma mulher havia sido nomeada para esse cargo — o de reitor até hoje não foi. Em entrevista ao O POVO no dia 20 de dezembro último, dias depois do lançamento da
O gosto pela pesquisa, o interesse pelo fenômeno da adsorção movem a professora titular do Centro de Tecnologia da UFC. Diana conta que o tema "a escolheu", ela o abraçou e fez isso também com os cargos de liderança ocupados ao longo dos 30 anos na instituição. Mas optou por uma gestão sua, não o modelo de liderança estereotipado: “A primeira coisa que me vinha (à mente) é: mas eu não sei bater a mão na mesa, eu não sei dizer você tem que fazer isso porque eu estou mandando”.
Em uma área majoritariamente masculina, ela passou a defender as políticas públicas necessárias para promover maior equilíbrio entre homens e mulheres nas carreiras de science, technology, engineering and mathematics (STEM – ciência, tecnologia, engenharia e matemática). A aproximação com o tema era inevitável sendo mulher, gestora e mãe. "Se você quer saber o que é racismo, pergunte a um negro, se você quer saber o que é machismo, pergunte a uma mulher. Porque de fato são coisas que parecem que está tudo bem, mas não está, a gente vai naturalizando porque tem que sobreviver”, aponta.
O POVO - A senhora foi a única representante da América latina a integrar o seleto grupo de "fellows" associados à IAS, escolhidos a cada três anos. E também umas das quatro mulheres a integrar a sociedade. O que esse número tão pequeno de mulheres indica sobre a pesquisa científica?
Diana Azevedo - Bem, primeiro começar historiando um pouco da sociedade, é uma sociedade científica, e como você vê pelo nome ela é bastante específica de uma área, a adsorção, com D, não é a absorção com B, que é o que a gente tá mais habituado, mas é uma área que perpassa profissionais ligados à física, à química, à engenharia e mesmo à biologia. É uma área bem interdisciplinar, e eu frequento essa sociedade desde que eu era estudante de doutorado, eles realizam congressos a cada três anos. Congressos mundiais a cada três anos, e era um sonho meu, como estudante ainda. Eu já era professora, mas me afastei pra fazer o doutoramento, era o meu sonho ir pra esses congressos porque era ali que estava a nata da nata do que se fazia nessa área. Ao participar desse congresso eu passei a me filiar a essa sociedade, e isso era 2001.
E percebi, ao longo da minha convivência com os colegas da sociedade, primeiro, poucas mulheres, como você já ressaltou, segundo, uma participação eminentemente de centros do hemisfério norte. Eu tive a oportunidade de, como membro da diretoria, indicar várias pessoas. E me chamou a atenção isso, que praticamente não tinha mulheres.
Dentre as mulheres pesquisadoras da área, a gente começou a ter quase que uma confraria e a apoiar umas às outras. Isso coincidiu mais ou menos também com quando eu assumi a diretoria do Centro de Tecnologia, uma faculdade de engenharia e arquitetura, mas basicamente muito masculina. Essas questões ligadas à sororidade, ao apoio mútuo entre mulheres, passou a ser muito importante pra mim. Já então, eu era das mais maduras, vamos dizer assim, dentro da sociedade entre as mulheres. Foi quase que natural, eu sei que quem me indicou foi uma outra mulher. E foi aprovado. Eu acho que isso foi muito representativo. Primeiro, pra representação feminina. A partir do Congresso de 2019, na verdade, isso passou a ser um tema central.
É um fenômeno mundial que as meninas na educação básica, quando estão terminando os quatro primeiros anos, começam a ser desestimuladas a perseguir certas carreiras
OP - Muito recente, né?
Diana - Sim. Devo acrescentar também, já que a gente está falando dessa sociedade, que em 2019 o Congresso foi na Austrália e o organizador me convidou para dar uma das palestras plenárias. Eu lhe digo que eu passei duas semanas decidindo se eu aceitava ou não, pra você ter uma ideia. Porque era tão intimidador aquele ambiente, embora fosse um ambiente de beber muito conhecimento, mas, pra mim, a figura de uma pessoa que estava fazendo uma palestra plenária, novamente, era de um homem branco do hemisfério norte. Dos Estados Unidos ou da Europa, ou da Ásia.
Então, eu fiquei... Nossa, eu vou passar vexame lá. Passei, assim, umas duas semanas, até que as pessoas do meu grupo de pesquisa disseram assim pra mim: "Você não tem o direito de dizer não, porque não é só sobre você. É sobre o grupo de pesquisa, é sobre a Universidade Federal do Ceará, é sobre o Brasil, é sobre mulheres". Aí eu respirei e me dei conta, estando lá, aliás, vendo a programação, que houve um esforço afirmativo da comissão organizadora de inclusão de mulheres e de inclusão de pessoas que não estavam no chamado mainstream do hemisfério norte.
Eu também fui convidada, há dois anos, para compor a Academia Cearense de Ciências. E, da mesma maneira, as mulheres são 30% — não é tão agudo como no outro exemplo. E, normalmente, elas não têm sido presidentes, não têm tido posições de mando e de liderança dentro da sociedade. Uma nova diretora irá assumir agora em janeiro, e o novo presidente é um homem, mas ele fez questão de ter na gestão dele paridade de gênero. Então, é algo que é muito recente, começam a cair as fichas. A gente tem que ficar atento a isso. Porque é tão estrutural que, se você não ficar atento, a tendência é que você reproduza os mesmos comportamentos, até sendo mulher.
OP - Para a senhora, o que faria a diferença para as mulheres ocuparem mais espaço na pesquisa científica? Quais seriam as políticas públicas?
Diana - Olha, a primeira coisa é fazê-las chegarem lá. Se você for olhar, principalmente nas áreas ligadas às ciências básicas, tem uma sigla em inglês que é STEM. Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática. Primeiro, fazê-las chegarem lá, no nível superior, porque elas já chegam menos. Há vários estudos, isso não é só no Brasil, na verdade é um fenômeno mundial, em uns países mais que outros, obviamente, mas é um fenômeno mundial que as meninas na educação básica, quando elas estão terminando os quatro primeiros anos, o que muito antigamente a gente chamava entrando no ginasial, na quinta série, no quinto ano do ensino básico, elas começam a ser desestimuladas a perseguir certas carreiras.
Você começa a colocar a sociedade e as famílias, às vezes, inconscientemente, colocam rótulos: o que é uma profissão masculina e o que é uma profissão feminina. Começa desde os brinquedos, não estou querendo dizer que deixe de dar bonecas para as meninas, claro que não, mas expõe as meninas também ao ego, aos jogos de lógica, de laboratório.
OP - E os meninos também aos outros, né.
Diana - E os meninos a aprender a cozinhar, a plantar, ou seja, é uma educação mais holística e mais voltada tanto para ter um adulto funcional, como também um adulto que possa escolher com mais liberdade a carreira que ele quer seguir. As meninas não chegam já na formação de nível superior de forma paritária. Uma vez que elas chegam, há uma série de barreiras, tanto para a colocação delas, falando do mundo da engenharia, no chão de fábrica, dentro da indústria. Começa por coisas muito simples. Até muito pouco tempo, os canteiros de obras não tinham banheiro. Porque os homens, é muito mais fácil chegar bem ali, às vezes não querem nem se esconder, passa na rua e eles estão lá, fazendo, não menstruam.
A gente tem ouvido várias meninas, da minha geração para trás, felizmente, a coisa está mudando, que muitas vezes nem entravam em processos seletivos e a alegativa era essa. "Não, o ambiente de trabalho não tem condições de receber mulheres". Tão geral quanto isso. Até bem pouco tempo, escolas como
Mesmo estando no laboratório, ou conseguindo chegar na indústria, ou conseguindo ser uma pesquisadora, fazer um mestrado, fazer um doutorado. Na verdade, hoje, na pós-graduação, de uma maneira geral, tem um pouco mais de mulheres do que homens até. O que pode ser até atribuído pelo fato deles se colocarem no mercado de trabalho mais rapidamente quando têm um nível superior, e elas, nem tanto.
Mas, enfim, ela conseguiu chegar lá no exercício, digamos, profissional dentro de uma área STEM. Aí tem outra coisa muito cruel, que é a época que você tem que dar o gás dentro da sua atividade profissional, é também a sua janela reprodutiva. É também quando você quer constituir uma família. Não querendo dizer que todas as mulheres têm esse sonho. Tem mulheres que não querem casar, ou que não querem ter filhos, e isso é absolutamente legítimo. Mas, em geral, elas querem conciliar essas coisas. Encontram uma sociedade, encontram uma família, encontram uma ausência de rede de apoio que não as permite fazer isso.
OP - Elas precisam parar aí, então?
Diana - Aí acontece o famoso efeito tesoura, que é a maneira como está documentado na literatura. Ou seja, apesar de em um determinado momento elas serem maioria até no nível superior, e aí eu estou saindo do STEM, eu estou falando de todos os níveis do conhecimento, todas as áreas do conhecimento, à medida que o tempo passa, e elas deveriam progredir na carreira, elas vão diminuindo, elas vão desistindo. Elas vão ficando desalentadas.
Isso é muito comum, por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos. Se a mulher casou, ela tomou uma opção por não seguir, pelo menos de maneira tão forte, a carreira dela. Isso está mudando muito lentamente. A gente vê que mulheres que, mesmo que tenham um curso, um nível superior em engenharia, ou o que quer que seja, mas se elas optam por casar, ou elas vão trabalhar em home office, em funções normalmente executivas, em que elas são demandadas, mas raramente elas vão ocupar uma posição de liderança.
As meninas não chegam já na formação de nível superior de forma paritária. Uma vez que chegam, há uma série de barreiras
OP - E essa posição de liderança exigiria mais.
Diana - É, porque você chegar numa posição de liderança, a pandemia quebrou um pouco isso, mas em geral exige sua disponibilidade para viagens, sua disponibilidade para reuniões, para terminar um relatório no fim de semana. Não estou querendo dizer que isso seja correto, não, eu acho que até um maior número de mulheres nessas posições chamaria atenção, que já está sendo chamado em vários níveis com o home office, que a vida não é só trabalho, e que muitas vezes você trabalhando menos, você pode ser muito mais eficiente.
Se você souber coordenar melhor e equilibrar melhor o seu lado pessoal, que nem sempre a família pode ser um hobby seu, pode ser algo que você realize nos tempos livres, um trabalho social, um trabalho em ONG. Muito provavelmente, e aí é uma aposta minha, mais mulheres em posições de liderança e de decisão, esferas de decisão e de políticas públicas, poderiam levar a sociedade a esse meio termo. Não é só trabalho. Muito provavelmente, quem estabeleceu esse esquema de você tem que viajar muito, você tem que ser competitivo, meritocracia, foram os homens que historicamente estavam lá, e estavam lá por quê? Porque tinha alguém pra cuidar da casa, porque tinha alguém pra cuidar dos filhos.
OP - E das necessidades deles.
Diana - Sim. Tinha alguém pra lavar as roupas deles.
OP - O estudo Brasil: Mestres e Doutores 2019 mostra que, entre 1996 e 2017, as mulheres apresentaram crescimento relativamente pequeno em sua participação nas engenharias e diminuíram sua participação nas Ciências Exatas e da Terra. As mulheres ainda costumam não ser vistas como aptas para as áreas exatas. Como fazer a mulher permanecer no ensino superior, às vezes naquela janela reprodutiva?
Diana - Olha, as medidas ainda são tímidas, mas elas já começaram. No nível de pós-graduação, já há algum tempo, tanto o
Então, a gente tá sempre nessa loucura. Mas, provavelmente, se houvesse isso, eu teria encarado, não sei se eu teria me beneficiado ou mudado o meu plano, mas encarado com muito mais tranquilidade. Existe essa possibilidade. Dentro do que a gente chama dos comitês de assessoramento do CNPq, esses comitês são aqueles que decidem sobre que projetos vão ser apoiados nos vários editais.
E tem, por exemplo, um edital do CNPq que é muito disputado, que é o edital de produtividade em pesquisa. O que é isso? Todos os anos é aberta uma janela ali, por volta do mês de abril, para que pesquisadores apresentem seus projetos e digam, "olha, eu sou muito bom naquilo que eu faço, e com isso eu mereço a distinção", na verdade é mais uma distinção de bolsista de produtividade em pesquisa. É como um selo de qualidade do pesquisador. Existem também estudos nesse sentido que à medida que você vai aumentando o nível, as mulheres vão escasseando.
Muito provavelmente, quem estabeleceu esse esquema de você tem que viajar muito, você tem que ser competitivo, meritocracia, foram os homens... Porque tinha alguém pra cuidar da casa, porque tinha alguém pra cuidar dos filhos
OP - Na janela reprodutiva que a senhora falou?
Diana - Então, o que que os comitês decidiram nesse sentido, (foi) uma ação afirmativa. Não foram todos, mas a grande maioria decidiu que em cada julgamento que fazem todos os anos dos bolsistas de produtividade, quando for o caso de uma mulher que está concorrendo, e aí eles avaliam normalmente a janela dos últimos cinco anos, o que aquela pessoa produziu, quantos alunos orientou e tal.
Se nessa janela de cinco anos a mulher tiver tido filhos, eles "espicham" a janela por mais seis anos, mais sete anos, porque, é lógico, a gente até brinca que o nosso gráfico como acadêmicas é quase com impressão digital. Os anos que a gente tem filhos a produção é obviamente baixa. Acho que nem que nós tivéssemos toda a rede de apoio do mundo.
É natural, o primeiro mês ou o primeiro ano de vida de uma criança, só existe a mãe. Para a mãe só existe o filho. Isso é natural. Essa é uma outra medida, digamos, pequena, mas que já foi levada em consideração por vários comitês. Aqui na UFC nós estamos vendo a possibilidade de modificar a resolução de progressões funcionais nessa mesma perspectiva.
A gente normalmente avalia a cada dois anos o professor, e se ele apresentou um desempenho mínimo, ele faz a sua progressão ou promoção dependendo do nível. Isso é plano de carreira. Muito provavelmente nós vamos rever essa resolução ao longo deste ano, e uma das ideias é: se a mulher teve, mais ou menos, na mesma perspectiva, filhos, na janelinha de dois anos dela, nós vamos ou dar um bônus, se ela tinha que fazer 200 pontos, basta que ela faça 150, dando só um exemplo.
Ou esticar essa janela de observação como uma ação afirmativa para dizer: você pode ter filhos, você pode se dedicar menos à profissão naquele trabalho, mas a gente reconhece que já já você está de volta. São pequenas coisas, mas eu acho que uma política realmente de conscientização, aquilo que a gente falava bem no começo. A gente é machista sem se dar conta, a gente é racista sem se dar conta, e são coisas que precisam estar sendo ditas o tempo inteiro.
OP - Na UFC, como é esta diferença de participação de homens e mulheres?
Diana - A gente (mulheres) continua sendo menos, a escola de Arquitetura também pertence ao mesmo Centro aqui no Benfica, tem muita igualdade de gênero, mas se a gente for olhar o recorte só do campus do Pici, dos 11 cursos de engenharia, nós somos tipicamente 30%. Tem lugares como a engenharia química que chega até a 48%, tem outros como a Computação que vai lá para 10%, na média 30%.
Mas nós ficamos muito mais vocais, muito mais audíveis. Eu me lembro que eu fiz concurso para titular em 2012, você tem que escrever um memorial, e a última parte do memorial era perspectivas futuras. Eu escrevi uma frase que depois as pessoas vieram me criticar, eu disse: "Eu espero que na condição de professora titular eu tenha uma voz mais audível do que eu tive até agora". Aí um professor disse "como mais audível? Nós sempre ouvimos o que você tem a dizer". Aí eu disse, ó, se você quer saber o que é racismo pergunte a um negro, se você quer saber o que é machismo pergunte a uma mulher, porque de fato são coisas que parece que está tudo bem, tudo bem, mas não está tudo bem, a gente que vai naturalizando porque tem que sobreviver, tem que tocar para frente.
A partir de 2017 com o
OP - Nessa perspectiva, como foi quando a senhora entrou na graduação e o que nessa graduação a senhora modificou quando foi professora?
Diana - Eu fui privilegiada no sentido de que eu entrei na UFC na época que ela era muito elitista, foi bem anterior à política de cotas, era aquele paradoxo de a educação pública em nível básico ser muito ruim, e quem conseguia chegar à universidade pública gratuita, de qualidade, era quem tinha pagado um bom colégio.
Essa questão de gênero na época nem se colocava, e eu digo que tinha uma situação privilegiada porque meu pai tanto era engenheiro como também professor da Casa, ele sempre me estimulou muito. A minha mãe, ela tem nível superior também, e o interessante foi isso, eu, criança, me lembro de ir buscar com meu pai, a minha mãe, num cursinho porque ele a estimulou, já casada e com filhos, era eu e meu irmão — eu tenho mais dois irmãos que nasceram depois —, mas foi ele que estimulou que ela concluísse o ensino médio e fizesse o vestibular. Ela fez pra Administração de Empresas, concluiu e trabalhou durante um certo período, mas até que chegou à conclusão que não, que queria realmente cuidar da casa. Mas tanto um como o outro, dentro de casa, sempre foram muito apoiadores das nossas iniciativas, minha mãe que insistiu pra eu fazer curso de inglês, lá em casa não faltava dinheiro se fosse pra comprar livro ou música.
Outra coisa também que eu fui privilegiada, quando eu fui fazer estágio, que era uma coisa difícil, eu fui fazer estágio numa empresa de cerâmica que estava instalada em Maracanaú, e quem era a gerente de produção era uma mulher. Era uma mulher, e a fábrica era muito braçal porque exigia movimentar as matérias-primas para fazer as peças de cerâmica, tinha forno, era meio insalubre, então tinha muito homem, as mulheres realmente estavam no laboratório, no dia a dia eram os homens. Morriam de medo da doutora, ali já foi para mim, por um lado, um exemplo inspirador, por outro lado, aí eu vou falar não só dela como de outras mulheres que eu vi como professoras, elas tinham que se impor com um estilo masculino de ser, fechar a cara, usar roupa fechada, ou seja, reproduzir aqueles comportamentos de liderança que a gente atribuía aos homens, e isso para mim que foi a grande sacada aí já como professora.
OP - Para mudar essa forma de gestão?
Diana - Eu sempre gostei de trabalhar com gente, quase nunca eu estava sem algum cargo administrativo aqui na Universidade nos 30 anos que eu completei neste ano, mas basicamente muito no nível do meu departamento, do meu grupo de pesquisa. E toda vida que me colocavam essa possibilidade, "ai, você seria ótima na chefia do Departamento", "ai, por que você não coordena esse projeto?", "ai, porque não sei o quê". A primeira coisa que me vinha é, mas eu não sei bater a mão na mesa, eu não sei dizer "você tem que fazer isso porque eu estou mandando", eu não funciono assim, será que eu vou ser uma boa líder? Eu acho que isso passa na cabeça de muitas mulheres, de não se sentirem à altura porque não correspondem aos modelos de liderança que a vida inteira elas testemunharam.
OP - E ainda tem muita questão de que as vezes quando a mulher é uma líder e toma uma decisão mais firme, ela é chamada de grosseira, fechada como você falou. Quando é um homem tendo essa mesma posição é porque ele é rígido, assertivo.
Diana - Exatamente, e a gente tem também, parece que uma espada assim sobre a cabeça, parece que a gente tem que ser irrepreensível, ou seja, não errar, porque ao primeiro erro: ‘Sabia’. Claro, eu sempre ia, no medo, ia, mas a primeira coisa que me passava era isso, como é que eu vou mandar nesse monte de gente, a maior parte homem, ainda hoje no meu grupo de pesquisa nós somos sete professores, só eu de mulher. Porque por mais que você tenha políticas afirmativas, existe concurso público, não muda de uma hora pra outra, por outro ladol apesar de serem sete homens trabalhando mesmo comigo, são eminentemente meninas dentro do laboratório.
Essa questão do modelo de liderança pra mim é muito forte, e, principalmente agora que você trouxe a lembrança das mulheres que inicialmente me inspiraram, um "continue aqui", elas próprias tiveram que botar essa couraça assim de modelo masculino para se impor. Quando eu aceitei as primeiras atribuições de liderança disse, não vai ser assim que eu vou fazer, vai ser no convencimento, pode ser que demore mais tempo, porque o convencimento, a conquista não é "assim", mas eu não posso deixar de ser eu.
OP - Eu acho que também tem a questão de a gente não ser muito ensinada a se colocar nessa posição de autoridade. Suas três filhas nasceram em 1994, 2001 e 2003. Inclusive, em 2001 foi o ano em que a senhora concluiu o doutorado em Engenharia Química. Qual rede de apoio foi necessária nesse período?
Diana - Quando eu saí pra o doutorado, só existia a mais velha, e ela tinha 3 anos, 3, 4 anos. Então foi relativamente fácil. Por que que eu digo relativamente fácil? O meu marido, quando a gente casou, e ele sabia da minha profissão, ele dizia, "olha, eu sei que você vai ter que fazer doutorado em algum momento. E se for para ir para o Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio ou qualquer outro lugar do mundo, pra mim dá igual, porque eu vou ter que me reestruturar do mesmo jeito".
Ele é engenheiro, mas trabalhava em fábrica. E aí o que que aconteceu? "É, como eu disse, né?" O Célio, meu colega de grupo de pesquisa, me ajudou a articular o doutorado completo no exterior, na Universidade do Porto, Portugal. E era uma época em que o CNPq estava financiando muito poucos doutorados plenos no exterior. Ele estava privilegiando os doutorados que estavam nascendo e se consolidando dentro do país. Quando você deixava muito claro que era uma área que tinha carência no Brasil, enfim, deu certo.
Aí ele, meu marido, pediu demissão, claro que ele negociou a saída dele, ganhou uma boa indenização, e estando lá ele foi a minha rede de apoio, porque nós só tínhamos nós e nós. Ele fez o MBA, fez alguns cursos que eram mais curtos do que o que eu estava fazendo, mas na maioria das situações era ele que segurava as pontas da educação da nossa filha, por exemplo. Ela foi alfabetizada lá, então ela teve problemas de adaptação no que seria o ano da alfabetização. Ele estava lá, dando apoio, ele foi importantíssimo também em construir esses laços com os portugueses, com a comunidade local, e esses também foram rede de apoio.
Algumas vezes, a gente precisou que os dois se afastassem, mas houve essas ocasiões que essa comunidade portuguesa ajudou. Então foi assim, ele foi fundamental, dar esse apoio, e eu acho que poucos, e aí eu digo sem sombra de dúvidas, poucos homens e pouquíssimos homens nordestinos (fariam isso). E ele diz, nordestino criado como todo nordestino, com a mãe fazendo as coisas, "embora lavasse banheiro", ele brinca. Pouquíssimos homens nordestinos teriam o desprendimento, até porque a gente não sabia o que ia acontecer quando voltasse.
OP - Para a senhora, quais as perspectivas para trazer de volta o desejo dos jovens em admirar e querer seguir a carreira acadêmica?
Diana - Na verdade, a pergunta que você fez é um desafio como gestora que eu tô me pondo agora. Nós estamos tendo, de uma maneira generalizada, uma procura baixa pelo ensino superior por parte da juventude. Assim, o que, entre aspas, salva é a política de cotas, eu diria, no caso da universidade, porque ela acaba atraindo, quer queira, quer não, o jovem para continuar tendo uma educação de qualidade gratuita. Mas nós estamos passando por uma crise generalizada, e quando eu digo generalizada é no mundo, na Europa já há algum tempo, o pessoal diz "vocês não querem mandar estudante pra gente?" e tal. Não é das carreiras mais atraentes você ficar na academia, mas eu eu diria até o ensino superior mesmo.
Eu estive recentemente no Congresso Brasileiro de Engenharia Química, e houve uma apresentação da Associação Brasileira de Ensino de Engenharia, todas as engenharias, e realmente a gente está passando aqui por um decréscimo, muitas particulares que abriram cursos de engenharia na época da expansão estão fechando porque não tem procura. E honestamente eu não tenho a resposta ainda pra isso, não. Não tenho a resposta pra isso porque, de fato, parece ser na visão do jovem uma carreira muito longa, muito sacrificada, que requer muitos sacrifícios até você chegar num padrão de consumo e de conforto, que muitas vezes, sendo um youtuber, você consegue.
OP - Na cerimônia de 100 dias de gestão, a senhora falou sobre passar a mensagem de que a inteligência da universidade pública está a serviço “não do mercado, mas da sociedade que nos paga”. De que forma isso tem sido trabalhado?
Diana - Nós estivemos recentemente com a Luciana Dummar no jornal O POVO, e ela fez uma pergunta que casa com a sua. Ela disse "o que é que o jornal O POVO pode fazer pela UFC na comemoração dos seus 70 anos?" Eu disse, olha, vou usar uma figura de linguagem, eu gostaria que O POVO ajudasse a gente a colocar a UFC no colo de volta da sociedade cearense. E aí, essa semana, quando foi lançado um dos projetos efetivos que é o da Caravana, eu elaborei um pouco mais a história do colo. Quando você traz uma coisa no seu colo é porque você nutre, você cuida, você se importa, você quer ver crescer, você quer ver florescer. Como fazer isso? Primeiro eu acho que é a sociedade de fato entender todo o alcance do que a Universidade faz. A história do mercado, na verdade, nem o mercado sabe.
Eu tenho muita relação com empresas e normalmente coisas ligadas mais a tecnologia. E é impressionante que por mais que a gente tente fazer visitas, estágios, tente chegar lá, as pessoas não conhecem o que é produzido aqui dentro da Universidade e o potencial disso para os seus negócios e para a sociedade de uma maneira geral. A primeira coisa nessa pergunta de base aí, de atrair de novo os jovens, é conhecer. A gente só ama aquilo que a gente conhece. Como fazer conhecer é um desafio aí grande. E aí eu acho que o Custódio está trilhando uma via que é muito interessante, que é fisgar pela arte e pela cultura, fisgar a atenção da sociedade pela arte e pela cultura.
A gente realizou o concerto de Natal no fim do ano e, digamos assim, não bombou no sentido de que não lotou exatamente, mas foi uma presença de público que os funcionários daqui se surpreenderam, porque eles que têm essa comparação dos últimos eventos que foram realizados. Uma coisa interessante, eu não contei, mas aproximadamente metade do público não era público da Universidade, era público externo. E eu acho tem que fisgar por aí, nesse sentido uma parceria com os meios de comunicação em massa, como é o caso do jornal O POVO, é fundamental.
Parece ser na visão do jovem uma carreira muito longa, muito sacrificada, que requer muitos sacrifícios até você chegar num padrão de consumo e de conforto, que muitas vezes, sendo um youtuber, você consegue
OP - Nunca tivemos uma reitora na UFC. Nessa nova gestão, o professor Custódio anunciou paridade entre homens e mulheres. Na sua opinião, essa paridade vai trazer benefícios práticos para a comunidade acadêmica como um todo?
Diana - Nós nunca tivemos sequer uma vice-reitora, se você for na galeria tem uma mulher, de fato, que assumiu
Aí eu acho que também é o fisgar, de puxar o fio da meada não só para a questão de gênero que talvez seja a bola da vez mais sentida, mas para as questões das pessoas com deficiência, dos negros, dos indígenas, enfim, esse contingente que é invisibilizado e que não conseguiu chegar, sequer botar a cabeça, assim pra fora, muitas vezes mesmo no nível técnico você tem essa invisibilização.
Então, eu acho que foi um convite assim pra dar essa visibilidade, talvez começando pela questão de gênero, pra essa fração da sociedade que tem muita coisa a dizer. E aí eu disse: ‘Tá bom’ (risos). É um desafio grande por tudo que a gente já falou a respeito, os modelos de gestão que a gente está habituado. Ah, o reitor é antes de tudo um embaixador da sua Universidade, pra mim, pessoalmente, tem sido um exercício sair da execução para uma função mais de estrategista, e ao mesmo tempo manter a motivação de quem de fato vai executar, sabendo que não sou eu que vou executar.
Isso pra mim é um desafio, mas é um desafio que eu aprendo muito com ele, eu fico impressionada com o poder de articulação que ele (Custódio) tem nos mais diferentes setores. Claro, que ele tem um viés mais voltado pra arte, pra cultura, pra filosofia, pras ciências humanas, o meu é mais pras áreas tecnológicas e científicas, mas nisso a gente se complementa e a gente aprende mutuamente um com o outro.
OP - Sobre Inteligência Artificial, a UFC está estudando alguma ferramenta para identificar plágio?
Diana - Está no radar, como utilizar Inteligência Artificial em benefício do progresso da ciência e não como um atalho. Está no radar da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, nós temos um um centro de referência de inteligência artificial que foi iniciado na gestão anterior, mas que a gente está apoiando, obviamente, porque ele tem muitas conexões, inclusive com a universidade chinesa de Nankai, que é a nossa parceira do Instituto Confúcio.
Eles com a parte, digamos, técnica e a pró-reitoria com as questões mais ligadas à ética, que passa muito por aí. É aquela velha história, né? Qualquer coisa pode ser um veneno ou pode ser um remédio. Essa questão da ética está na ordem do dia também dentro da ciência, porque além da questão do uso indevido da inteligência artificial, tem várias questões aí ligadas a autorias indevidas, a padrões de citação.
Pra você ter uma ideia, não sei se eu vou fugir, mas enfim. Quando eu voltei do doutorado, qual é a produção do pesquisador? A primeira produção, mas não a única, são artigos científicos publicados em revistas e que são referendados pelos pares, quem analisa aquele artigo e diz "merece ou não merece ser publicado" com o próprio pares. E esse sistema era relativamente bem equilibrado. Até que passou-se a utilizar esse critério como um critério de promoção em alguns países, de remuneração. Por exemplo, na China se você publica um artigo na "Science", você vai ter um bônus no seu salário de tantas unidades monetárias. Quando abre isso aí, virou a corrida do ouro, né? Aí o que que acontece? Você começa a usar de práticas não éticas para inflar a sua produção, e agora o pessoal está inflando também o número de citações.
É, tipo assim, ó, eu vou publicar um trabalho e vou citar o teu artigo, mas tu cita no meu, viu? Às vezes sem ter qualquer relação, isso está no radar também, na questão da integridade acadêmica e da ética. Mas é uma é uma questão que com as ferramentas da inteligência artificial podem ser até mais agudas ainda pro lado não desejado.
OP - Na pandemia, ao passo que tivemos muito avanço com a necessidade de produção de vacinas em tempo recorde, também tivemos muitas fake news, discursos antivacina. Como foi ser cientista no período em que o presidente tinha manifestações anticiência?
Diana - Foi muito difícil porque polarizou muito, e a questão deixou de ser uma questão científica e passou a ser uma questão de paixões em crenças pessoais. Compreensível porque todo cientista é um ser humano, mas por outro lado foi muito triste ver cientistas que negavam dados científicos a bem de uma crença pessoal ou de uma ideologia pessoal. Então, quando o próprio presidente da República referendava posturas anticiência, isso acirrava ainda mais, digamos assim, os ânimos. Foi uma época, de fato, muito difícil para a comunidade científica, não só com os não cientistas, mas dentro dela própria.
OP - Como a senhora vê essa "onda" anticiência pelo mundo? Podemos dizer que a UFC também foi afetada por esse movimento?
Diana - Eu creio que a onda anticiência pelo mundo em geral vem com um pacote completo vinculado a outras crenças, e com outros penduricalhos ligados às crenças religiosas muitas vezes ligados a crenças pessoais quanto a costumes, à pauta de costumes. E a UFC obviamente também foi afetada por esse movimento, principalmente na medida em que a gestão anterior foi uma gestão apoiada e alinhada com o discurso do Governo Federal que claramente no último mandato foi anticiência.
OP - Nesta nova gestão, como busca, combater o movimento anticiência?
Diana - Perpassa várias pró-reitorias, e aí eu destacaria a reitoria de pesquisa e pós-graduação e a Pró-Reitoria de Relações Institucionais, o apoio e o fortalecimento a programas de popularização da ciência e de difusão científica. Isso já se dava de maneira individual através da rádio Universitária, através das redes sociais da própria Universidade, através de projetos individuais, de podcasts de muitos professores, mas é intenção da gestão atual sistematizar, reunir, potencializar e criar sinergia entre essas várias iniciativas de popularização da ciência.
Nada resiste à verdade, então através do colégios de estudos avançados, através dessas iniciativas que existem, inclusive através da iniciativa da Caravana 70 anos, que é uma promoção entre a Universidade Federal e a Fundação Demócrito Rocha, a gente também pretende lançar luzes sobre o que se faz dentro da Universidade e, portanto, combater em grande medida, essa tendência anticiência que se observa em geral no mundo.
A diferença entre adsorção e absorção é sutil. No caso do fenômeno que é campo de estudo da professora Diana, há uma deposição em uma superfície, sem solubilização do material, como no caso da absorção, com B. Para se ter uma ideia, os bons adsorventes têm áreas superficiais da ordem de milhares de metros quadrados em um grama, segundo ela. A produção desses materiais em toneladas envolve diferentes áreas de conhecimento.
Além da rede de apoio familiar e doméstica, a professora citou a importância do grupo de pesquisa quando uma integrante passa a ser mãe. Os estudantes, os colaboradores e os colegas têm papel fundamental na acolhida dessa mulher quando ela retorna ao trabalho.
O fortalecimento a programas de popularização da ciência e de difusão científica são uma das apostas da nova gestão da UFC para combater o movimento anticiência.
Diana Azevedo é pesquisadora PQ-1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com experiência em adsorção e processos de separação. Foi chefe de departamento, coordenadora do curso de graduação e do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Química, vice-diretora e diretora do Centro de Tecnologia da UFC. Em 2020, fundou a Sociedade Brasileira de Adsorção.
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