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Russo Passapusso: "Ninguém consegue parar o Carnaval"
Reportagem Seriada

Russo Passapusso: "Ninguém consegue parar o Carnaval"

Líder do grupo BaianaSystem, o cantor, compositor e pesquisador Russo Passapusso relembra trajetória - da infância na roça às multidões de Carnaval: "Quando estamos no Carnaval nos sentimos vivos"

Russo Passapusso: "Ninguém consegue parar o Carnaval"

Líder do grupo BaianaSystem, o cantor, compositor e pesquisador Russo Passapusso relembra trajetória - da infância na roça às multidões de Carnaval: "Quando estamos no Carnaval nos sentimos vivos"
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Em 2020, o grupo BaianaSystem publicou no YouTube um clipe remix da música “Cabeça de Papel”, gravado com o Tropkillaz. O material, porém, teve DNA cearense. Filmado no Conjunto Residencial José Euclides, no bairro Jangurussu, o clipe foi assinado pelo Vetinflix, projeto audiovisual voltado para produção na periferia de Fortaleza.

No vídeo, destaque para o personagem “Cabeça de Papel”, interpretado pelo artista e influenciador digital cearense Leo Suricate. O clipe foi lançado quatro dias antes da apresentação do BaianaSystem no Carnaval de Fortaleza. Nos últimos anos, esses elementos - a cearensidade, o Carnaval, olhares para novas histórias e o próprio BaianaSystem - se entrelaçaram.

Russo Passapusso é cantor, compositor, pesquisador e integra a banda BaianaSystem(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Russo Passapusso é cantor, compositor, pesquisador e integra a banda BaianaSystem

Na verdade, também se mesclaram com o líder do grupo: Roosevelt Ribeiro de Carvalho, mais conhecido como Russo Passapusso, 42 anos.

Cantor, compositor e pesquisador, o artista, tão lembrado pela energia junto ao BaianaSystem em apresentações que “cheiram” a Carnaval, desenvolveu ligação especial com Fortaleza, a ponto de fazer mentoria para uma banda local na Escola Porto Iracema das Artes.

Como afirma, descobriu a cidade “por meio de um grito” marcante, vindo do próprio Leo Suricate.

Conhecido pela mistura de ritmos como hip-hop, reggae, arrocha e samba de Recôncavo em suas composições, Russo Passapusso já trabalhou em telemarketing e em uma loja de discos de vinil. Admirador da cultura Sound System, é também entusiasta dos contatos — nas ruas, nos estúdios, em qualquer lugar.

Fundador do coletivo SoundSystem Ministéreo Público, o baiano é muito atuante na cena musical contemporânea brasileira, tendo gravado com artistas como Gilberto Gil, Elza Soares, Margareth Menezes, Karina Buhr e tantos outros. Na trajetória solo, tem dois álbuns, intitulados “Paraíso da Miragem” (2014) e “Alto da Maravilha” (2022).

Em entrevista ao O POVO realizada na Escola Porto Iracema das Artes em contexto de lançamento do quinto disco do BaianaSystem, "O Mundo dá Voltas", em janeiro, Russo Passapusso relembrou sua história, da infância na roça ao “comando do bloco carnavalesco Navio Pirata” de mares de gente. Apesar de também se considerar “do São João”, destaca a força dos festejos carnavalescos e enfatiza: “Ninguém consegue parar o Carnaval”.

 

 

O POVO - Fazemos essa entrevista em Fortaleza, Cidade na qual você e o BaianaSystem desenvolveram relação mais próxima, de shows em festivais nos últimos três anos a lançamento de clipe na Capital com músicos cearenses. Qual ligação você observa com a Cidade e o que de "América Latina" enxerga na Capital?

Russo Passapusso - Minha relação com Fortaleza começou certa vez, quando vim tocar e encontrei um “ser humaninho” que ia me entrevistar, chamado Léo Suricate. Começou ali. Ali entendi o sotaque, a história, os amores, os desamores, o humor, as depressões, as angústias, as euforias, tudo através daquela primeira conversa.

Foi uma entrevista. Íamos tocar. Ele foi nos entrevistar, acho que fazia parte do evento. Então, foi ali que conheci Fortaleza. Através de Jangurussu, que foi minha porta de entrada. Depois disso, fui convidado pela Escola Porto Iracema das Artes para fazer uma tutoria com um grupo de Maracanaú. Então, são Jangurussu e Maracanaú os primeiros nomes que me veem à mente.

Os repórteres Miguel Araújo e Lara Montezuma entrevistaram Russo Passapusso em janeiro de 2025, quando BaianaSystem estava sendo cogitado para ser atração do Carnaval de Fortaleza(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Os repórteres Miguel Araújo e Lara Montezuma entrevistaram Russo Passapusso em janeiro de 2025, quando BaianaSystem estava sendo cogitado para ser atração do Carnaval de Fortaleza

Depois o Grupo Garajal, que é uma manifestação própria da história popular tradicional. E, depois, a partir do movimento de pesquisar música para fazer o trabalho com essa história do humor, porque Léo Suricate tinha isso, um humor político, essa relação toda. Esses são os meus afetos para depois entrar no lugar.

Primeiro, a gente vê gente, depois a gente vê o lugar, o ambiente, a praia, esse tipo de coisa, onde essas pessoas estão inseridas. Então, veio nesse caminho. Quando o conheci, era antes da pandemia. Depois que o Baiana veio tocar aqui o Leo fez participação, era numa época que estava no intervalo da pandemia. Era uma festa para a cidade, afinal, tinha muita gente perto da praia.

Entramos para tocar, e as pessoas queriam pular a grade. Eu tive que falar para não pularem, mas a galera que estava na frente tinha acesso, então era separado das pessoas. Tive que descer e ficar próximo delas, vi as pessoas perto da praia. São lembranças muito fortes.

E Leo entrou, e era um momento em que a polícia e o exército estavam com tanques, uma coisa louca na cidade. Quase sitiada. Era uma situação conflitante na cidade, culturalmente falando. Ele pegou o microfone e gritou: "Fiquem vivos!".

Isso se tornou um grande elo com a Cidade. Olhei para ele, olhei para a galera, para as pessoas da Cidade, e falei: "Cara, o que é isso?”. Via tanques, as pessoas querendo pular, políticos, ambulantes, então ali vi Cidade. Vi necessidade quando fui para Maracanaú, Jangurussu. E quem estava passando necessidade era quem estava gritando “fiquem vivos” para os outros. Então, veio de um grito. Foi o primeiro grito para eu conhecer a Cidade.

Para terminar esse recorte, essa relação de "Fique vivo" com a luta, a poesia, a escola, coincidiu que eu já estava lá, tinha ido para ver as histórias no Jangurussu, crianças tocando violão, vi tudo acontecendo ali. Chamamos eles para fazer um clipe antes de eu vir para a escola, que era um clipe de “Catraca”, falando sobre o excesso de ônibus, a Cidade, e conheci a Mumutante, maravilhosa.

"Eu conheci Fortaleza foi com as pessoas, e por lugares específicos. Essa gente, esse povo, foi o que fortaleceu muito o meu entendimento da Cidade e o que me fez apaixonar por ela."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Eu conheci Fortaleza foi com as pessoas, e por lugares específicos. Essa gente, esse povo, foi o que fortaleceu muito o meu entendimento da Cidade e o que me fez apaixonar por ela."

De repente, na criação do roteiro desse clipe, juntamos um monte de artistas em um estúdio que era o fundo da casa de uma pessoa. Eu achei que só ia encontrar Léo, Mumutante e Fulano. Daqui a pouco, eram tantas pessoas que eu pensei: “Eita, o que está acontecendo aqui? Isso é muito bom. É muito precioso. Vocês não acham isso em todo lugar. É muito forte”.

E isso me fez mergulhar mais no processo da Massafeira, porque eu queria saber qual era o prenúncio disso em termos de movimento musical e cultural, porque é muito potente, pela variedade, multidisciplinaridade, diversidade, identidade… Foi quando coincidiu com a Escola.

Ela me chamou aqui no Porto para fazer um trabalho com um grupo de rap que era palhaçaria (O Cheiro do Queijo) também. Aí, pronto. Lembrei de todo o processo. Comecei a mergulhar, entender e conhecer Abu da Pereba, e todo esse processo nessa cidade dormitório onde ninguém dorme. Eles começaram a mostrar as poesias.

Eu vinha para a Escola e ia para lá, depois voltava de lá para cá, para ver como sofriam para chegar aqui. Eles me levaram no QG para o pensamento, que é importantíssimo, que é o lugar de JR, o rapper e ponto de cultura que faz um grupo chamado Sertão Rap, e que é uma potência. Ele começou a contar histórias.

Então, quando vocês me perguntam como eu conheci a Cidade, foi com as pessoas, e por lugares específicos. Essa gente, esse povo, foi o que fortaleceu muito o meu entendimento da Cidade e o que me fez apaixonar por ela.

O POVO - Dentro da sua formação, quais foram as principais políticas públicas que pavimentaram o seu caminho?

Russo - Vim de rádio comunitária. O meu sonho era esse, falar numa rádio em que o “invisível” ia chegando no ouvido das pessoas por meio daquelas ondas. Um sonho anterior aos 20 anos. Lauro de Freitas, Salvador, fazia programas para penitenciárias ali perto, fazia feiras culturais onde ia galera do pagode, pessoas colocavam barraquinhas na praça, toda aquela relação direta com o povo.

Eu vim da cultura SoundSystem com um projeto chamado Mutirão Mete Mão, inspirado em uma iniciativa no Rio de Janeiro que visitava favelas. Vimos isso lá e levamos para Salvador. Basicamente, compramos uma caixa de som, entrávamos em uma periferia e essa periferia ia se fazendo.

Os grafiteiros do projeto pintavam o bairro, íamos para as escolas, falávamos o que era um toca-discos, vinil, como fazer uma rima, dávamos aulas de música, as crianças olhavam e depois iam para a praça da cidade. Colocavam o reggae e começava-se a fazer música em cima daquilo. As pessoas passavam pela feira, olhavam e assim juntava gente.

Naturalmente as pessoas levavam seus tambores de samba-reggae e do nada tinha um grupo que tocava e dançava. Eu olhava aquilo e falava: “Esse já é um processo natural, coletivo e culturalmente forte”. Fomos para várias favelas de Salvador fazendo esse trabalho chamado Ministereo Público — porque, se tocássemos em bairros mais nobres da cidade, iriam confiscar nosso som. Entretanto, se tocássemos na periferia, ninguém ligaria.

"O mesmo grafiteiro que estava apanhando da polícia pintava a geladeira de um morador — porque ele pedia."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "O mesmo grafiteiro que estava apanhando da polícia pintava a geladeira de um morador — porque ele pedia."

Então, com esse trabalho, ensinávamos como fazer produção, como ser DJ, o que era scratch, os grafiteiros pintavam as casas, geladeiras… O mesmo grafiteiro que estava apanhando da polícia pintava a geladeira de um morador — porque ele pedia. Depois, fazíamos os eventos e as pessoas dos grupos musicais apareciam. Do nada eu descobria que tinha um grupo de samba-reggae naquele lugar, por exemplo.

Então, meu processo com essa relação do saber cultural, do saber social, veio através da rádio comunitária e desse processo com a música. Fora isso, os outros lugares que fui convidado para falar, para dialogar, tudo veio em ênfase no trabalho que faço no Carnaval.

Temos cuidado com a segurança pública nessa relação, pelo mar de gente, Navio Pirata e tudo que é difícil de se guiar. Já dei formações internas para empresas para falar sobre racismo e diversas outras questões. Então, fica dentro desse campo. As escolas também já me chamaram, mas era formação de comunicação tecnológica, além de outras ações pontuais.

A trajetória de Russo Passapusso começou na rádio comunitária: "Eu não cantava, eu queria ser esse cara do rádio."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A trajetória de Russo Passapusso começou na rádio comunitária: "Eu não cantava, eu queria ser esse cara do rádio."

O que acho mais interessante é a rádio comunitária, que foi uma força. Uma vez recebi a ligação de uma mãe: "Olha, meu filho está preso aí do lado, e a rádio pega lá. Toca ‘Ela Partiu’, do Tim Maia”. Eu falava: “Alô, alô, música e cultura negra para formação black de música, cultura e consciência negra, contribuindo para o bem-estar de seus ouvidos. Aqui vai… Dona Maria mandou um grande beijo para você. Com você, ‘Ela partiu’...”.

Se eu quisesse, depois botava para tocar Racionais MC’s. Então, era essa minha brincadeira. Eu não cantava, eu queria ser esse cara do rádio.

 

 

O POVO- Você falou sobre a sua trajetória na rádio comunitária, mas, antes disso, quais são suas memórias? O que lembra dos sons da sua infância que ajudaram a trilhar o seu caminho?

Russo - Vou resumir: menino do interior. Nasci em Feira de Santana — só nasci, porque minha mãe queria que eu surgisse perto da capital, mas eu era de Senhor do Bonfim. Passei por Juazeiro, passei por outros lugares, Santo Antônio de Jesus, minha lida sempre foi para o interior.

"Morei na casa de amigos e fiquei um tempo na rua. Foi dentro desse ciclo que a música me salvou."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Morei na casa de amigos e fiquei um tempo na rua. Foi dentro desse ciclo que a música me salvou."

Meu pai tinha uma deficiência visual, trabalhava na roça. Minha mãe trabalhava no banco. De repente, o sonho de morar na capital, para mudar de vida. Aqueles altos financiamentos da vida inteira, quase cinco gerações para pagar um apartamento, e minha mãe e minha irmã foram para Salvador. Vou para lá.

Meu pai é atropelado. Minha família se despedaça e eu sou despejado dessa casa. E aí entro na cidade de Salvador para fazer música, para fazer esse tipo de coisa. Morei na casa de amigos e fiquei um tempo na rua. Foi dentro desse ciclo que a música me salvou. 

Foi assim que comecei a compor o trabalho “Paraíso da Miragem”, que eu não sabia serem músicas que eu estava compondo, mas era um grito artístico que estava vindo para mim. Primeiramente, o que fiz foi “Flor de Plástico”, que é uma música que fala sobre o falecimento, mas que as pessoas hoje falam sobre coisas delas.

Foi o primeiro elo que tive que entender. “Estou ouvindo isso ou fiz isso? Estou pensando essa música ou essa música veio de algum lugar?”. Foi aí que comecei a ter esse elo espiritual também.

O POVO - Em uma entrevista, você disse que chegou a enfrentar preconceito ao começar a se apresentar em Salvador, pois tinha sonoridade e sotaque diferentes. Disseram para você se colocar no seu lugar. Como esse cenário impactou você?

Russo - Tudo teve impacto. Foi só impacto. Pá, pá, pá (risos). O que acontece é que, quando cheguei na capital com um sotaque muito puxado de Senhor do Bonfim (“dí”, “tí”, “carinha”), Salvador sempre teve uma opressão do Rio de Janeiro em relação a como se comportar.

O chiado da palavra, o jeito de falar tia, enfim, o meu jeito de falar era perseguido — tanto porque eu era preto quanto porque eu era uma pessoa do interior. Às vezes, mais perseguido porque era do interior pelos próprios pretos, então virava uma coisa muito doida. Há essa relação muito forte na minha estrutura.

"Comecei a me libertar, ganhando força para superar a opressão e o preconceito, seja por ser do interior ou por ser preto e estar lutando pelas histórias todas da vida."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Comecei a me libertar, ganhando força para superar a opressão e o preconceito, seja por ser do interior ou por ser preto e estar lutando pelas histórias todas da vida."

De repente aparece um negócio chamado Manguebeat, e aí vi o Chico Science, vi pessoas de Recife, que o negócio explodiu e estava passando na MTV. Percebi que era um movimento cultural e as próprias pessoas de Salvador estavam imitando o “Manguebítí”. Pensei: "Uau, então meu sotaque agora é bonito? Isso agora está sendo valorizado?".

Esses sotaques, essas histórias… fui muito salvo pelo Manguebeat para conseguir fazer desafogar minha música sertaneja. No "Paraíso da Miragem", essas canções que eu fazia, que eram de violão e sempre ouvindo muito Paulo Diniz, Antônio Carlos e Jocafi, Rosinha de Valença, Taiguara, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Ednardo… tem muita gente que posso citar.

No fim das contas, como eu trabalhava em uma loja de discos, aquilo que eu via nos discos e livros eu queria reproduzir. Comecei querer me reproduzir na minha história como se fosse cada coisa daquele disco. Assim, comecei a me libertar, ganhando força para superar a opressão e o preconceito, seja por ser do interior ou por ser preto e estar lutando pelas histórias todas da vida.

O POVO - É interessante como sua trajetória é marcada por colaborações, tanto na carreira solo quanto no BaianaSystem. Como essas parcerias ajudam a contar sobre você enquanto músico?

Russo - Tenho uma frase de Nelson Rodrigues que acho muito boa: "Eu tiro os outros por mim." Outra frase que adoro é: "Eu multidão". O rádio me fez entender o senso de comunidade. “Multiplicados somos mais fortes” (trecho da música "Capim Guiné”). Temos pedaços de todo mundo.

Gosto muito do sentido de continuidade da música. Sou parte de algo que abriu portas para mim, como o Manguebeat, que abriu portas para o meu sotaque e para minha forma de compor. No final das contas, tinha um elo muito forte.

Engraçado, logo o Manguebeat, de Recife, que tem uma lei que não pode tocar axé music, para valorizar a cultura deles - que me deu a permissão de ser eu, como interiorano, em Salvador. Essas relações são muito fortes.

"Eu sou eu, multidão. Eu sou eu, porque tenho todas as memórias das outras pessoas dentro de mim."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Eu sou eu, multidão. Eu sou eu, porque tenho todas as memórias das outras pessoas dentro de mim."

Eu sou eu, multidão. Eu sou eu, porque tenho todas as memórias das outras pessoas dentro de mim. Em poucos momentos me vejo, e quando me vejo estou solitário. Quando não me vejo estou com todo mundo, estou consciente. Minha música é feita assim, não consigo fazer de outra forma.

O enclausuramento tecnológico e pandêmico, para mim, é uma doença. Eu não consigo. Tem gente que adora, consegue. Faz a música em um computador e fala que a favela venceu. Eu não consigo. Eu não consigo vencer sozinho. Então minha música é coletivista, tem que ter um senso de comunidade.

Eu olho para os outros. Sou reflexo de outras pessoas. Penso sempre que um dia não estarei aqui, mas se a música permanecer, estarei dentro de outras pessoas. Como a primeira música que fiz foi sobre a morte de alguém, eu consegui trazer vida através dessa memória. Acredito que música, disco, vídeo, foto, tudo isso é memória.

O POVO - As suas músicas — e do BaianaSystem também, evidentemente — trazem, além da sonoridade e da energia, mensagens sociais importantes. Como conciliar esses dois lados para que nenhum deles perca a potência em uma festa na rua?

Russo - Achava que o Paraíso da Miragem era dentro de casa, em que eu estava lá dentro e, lá fora, na rua, era o BaianaSystem. Depois, começou a se misturar de uma forma tão linda. O próprio Antônio Carlos, que eu queria encontrar, estava no Baiana.

Mas eu lembrei também que sou do São João. Sou visto como um cara do Carnaval, mas eu sou do São Jão. Essa é a minha verdadeira face. Forró, guerra de espada, aquela coisa toda. Fui habituado a isso. Esse era meu Carnaval.

Quando você entra nas casas das pessoas, conversa, conhece a cidade toda, isso faz parte da ocupação que era muito forte para mim. Isso costura minha memória musical até hoje. Vejo um cordão umbilical muito forte da rua para a casa e da casa para a rua.

"Antes eu separava a casa da rua. Hoje, não. Hoje, sou uma pessoa de janela aberta, vejo as coisas transitando."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Antes eu separava a casa da rua. Hoje, não. Hoje, sou uma pessoa de janela aberta, vejo as coisas transitando."

Vejo uma distorção e um medo pela questão da segurança, as grades que prendem, as janelas que fecham e lá fora essa separação. Só que essa separação só gera mais medo e mais terror. Ter elos que possam trazer a rua à sua casa acho que diminui um pouco as frustrações sobre esse momento que a gente vive, de tanta depressão em relação à segurança e tudo isso.

Antes eu separava a casa da rua. Hoje, não. Hoje, sou uma pessoa de janela aberta, vejo as coisas transitando. Esse novo disco do BaianaSystem fala muito sobre isso, assim como “O Futuro Não Demora”.

É engraçado, porque "Paraíso da Miragem", um trabalho solo, deu luz ao "Alto da Maravilha". “O Futuro Não Demora”, como BaianaSystem, levou ao “O Mundo Dá Voltas”. É contando uma história que a coisa vai se costurando. São mundos que vêm da minha cabeça e são ampliados dentro disso.

 

 

O POVO - À medida que nos aproximamos dos Carnavais, acompanhamos os debates complexos da época. Em Salvador, por exemplo, temos a luta dos cordeiros e aqui, em Fortaleza, segue sendo uma questão a divisão entre a festa pública e privada. A partir da experiência de uma década de Navio Pirata, quais são os caminhos imprescindíveis para tornar o Carnaval acessível?

Russo - Ouvir o povo da ocupação das ruas, inicialmente. Claro, há iniciativas públicas para abrir os espaços, e projetar os lugares onde o Carnaval vai acontecer é importante, mas acredito na força do povo. Acredito que o Carnaval é uma manifestação humana, não apenas uma relação com o Estado. Ninguém consegue parar o Carnaval.

Quem está em cima de um camarote está lá porque quer ver o povo livre, festejando, e o seu auge é se sentir do povo, porque quando ele chega em casa ele fala que “estava lá embaixo”. É inerente a todo mundo isso, o momento de querer se sentir “o povo”. Acho muito bonito o Carnaval por causa disso.

"Quem não gosta de Carnaval e está em casa também está fazendo seu micro-Carnaval, porque é um momento de descanso, de reflexão, de sair daquela confusão… não podemos vê-lo apenas como a manifestação que acontece na rua."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Quem não gosta de Carnaval e está em casa também está fazendo seu micro-Carnaval, porque é um momento de descanso, de reflexão, de sair daquela confusão… não podemos vê-lo apenas como a manifestação que acontece na rua."

Eu tinha muito medo do Carnaval, mas existe a relação do capital dentro disso tudo, que é a forma de se fazer dinheiro com as cordas, com os blocos, mas é isso que está tendo que se moldar ao povo, não o contrário.

Salvador é um exemplo disso. Houve uma falência das cordas anteriormente. O próprio Furdunço, onde o BaianaSystem surge, é um dia em que os blocos não têm cordas, onde tocam aquelas pessoas que não estariam muito no estereótipo da relação carnavalesca, e o Baiana explode e cresce naquela situação. É indomável o entendimento do público do que é o Carnaval.

A gente estende isso aos micro-carnavais. Quem não gosta de Carnaval e está em casa também está fazendo seu micro-Carnaval, porque é um momento de descanso, de reflexão, de sair daquela confusão… não podemos vê-lo apenas como a manifestação que acontece na rua.

Entretanto, essas pessoas que fazem “êxodos” fazem “êxodos de Carnaval”, dessa cultura. Então, estendo essa consciência do Carnaval para todo esse processo, para os micros, os macros, as ocupações das ruas e a manifestação que é popular - onde o capital tenta se infiltrar.

O POVO - No ano que celebramos as quatro décadas do axé music, vemos uma cantora do gênero retirar o nome de orixá de uma canção. Quando suas músicas retratam e reverenciam religiões de matriz africana, como elas podem atuar diretamente no movimento contrário à intolerância religiosa?

Russo - Eu não falo pelos outros. Quando quero abordar uma religião da qual não participo, não falo pelos outros, chamo alguém que entende do assunto. Temos muito cuidado com a propriedade intelectual, religiosa, social e espiritual.

Quando falo sobre a América Latina, chamo pessoas como Claudia Manzo, que veio do Chile e passou por todo esse processo. Sou uma pessoa que vem do sertão-favela, não venho de uma favela-capital. Minha compreensão de favela é roça. Minha época de necessidade foi na roça. É outro processo.

"Acredito muito no processo universalista, que é procurar o que há de melhor em todas as religiões. O que tem de ruim, as distorções, as falhas, eu simplesmente acho desnecessário."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Acredito muito no processo universalista, que é procurar o que há de melhor em todas as religiões. O que tem de ruim, as distorções, as falhas, eu simplesmente acho desnecessário."

Aí chega Vandal, canta com o Baiana e fala das favelas e dos pretos de Salvador. Nas relações religiosas, a participação de Mateus Aleluia… Acredito muito no processo universalista, que é procurar o que há de melhor em todas as religiões. O que tem de ruim, as distorções, as falhas, eu simplesmente acho desnecessário.

O POVO - Gosto da percepção de divulgar este trabalho como um disco "de pessoas", pois, de alguma forma, o Baiana sempre trouxe um destaque para tudo aquilo que é humano. Como vocês ampliaram essa questão da identidade ao longo dos álbuns? Como esta percepção de comunidade é firmada neste disco?

Russo - Continuidade. É como se eu estivesse escrevendo uma discografia para quando não estiver mais aqui. Como falei, o “Paraíso da Miragem” se relaciona com o “Alto da Maravilha”, e “O Futuro Não Demora” é continuado por “OXEAXÉEXU”, na pandemia, que criou uma ruptura. Parecia que nada mais ia rolar. Quando acabou, a continuidade com “O Mundo Dá Voltas”. Vejo dessa forma.

"A pandemia nos mostrou o quanto precisamos uns dos outros. Nunca precisamos tanto dos outros como nesse período."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "A pandemia nos mostrou o quanto precisamos uns dos outros. Nunca precisamos tanto dos outros como nesse período."

Nesse álbum veio mais gente ainda. Quando você faz algo respeitando a propriedade intelectual, religiosa, as pessoas se sentem seguras a estarem com você. Quando você trata uma pessoa bem na sua casa, ela volta. É essa relação que acho forte. É esse estado seguro para as pessoas contribuírem.

A pandemia nos mostrou o quanto precisamos uns dos outros. Nunca precisamos tanto dos outros como nesse período. Por isso que se explodiu em um processo mais coletivo ainda. É esse limiar que amarra cada vez mais a necessidade de fazer música coletiva. Hoje, os artistas, com essa relação de ganhar dinheiro fazendo tudo, ganhando cliques, desfragmenta as coisas. Isso desumaniza a nossa vivência. É um contrafluxo disso.

Tudo isso que falei que desumaniza gera doenças com as quais já estamos convivendo e que são extremamente agressivas. Doenças mentais acarretam doenças físicas. A tristeza pode gerar câncer, depressão. A ansiedade faz o coração bater rápido, síndrome do pânico — parada cardíaca. A alimentação tem a ver com isso, com a natureza. Cuidar da natureza é plantar, e plantar são pessoas.

Vejo um ciclo muito grande de sobrevivência para entender onde a música e o processo musical no qual estou inserido funcionam. Hoje, há muitos artistas solo, as premiações privilegiam isso. O coletivo hoje vira quase uma manifestação política. Militar por estar com as pessoas.

Por outro lado, quando estamos no Carnaval, com todo mundo, nos sentimos vivos. Para resumir, é isso: é uma forma de se sentir vivo. A música é coletiva, porque é uma forma de se sentir vivo. Além disso, estendo ao encontro geracional com o surgimento da aceleração da tecnologia, a gente não pode perder o fio da meada.

Pessoas com mais de 70 anos tem que estar com pessoas de 20 anos. Pessoas de 40 anos com pessoas de oito anos. Isso tem que ser feito dessa forma, para tirarmos uma identidade e pararmos de falar sobre “nova música”.

A música se renova. Não é quem chegou agora que tem que ser, até porque o nosso país, daqui um tempo, terá mais pessoas idosas que novas. Precisamos criar políticas para envelhecermos com saúde e renovar a cultura.

O POVO - Quando você fala da grande família que o BaianaSystem formou, são inúmeras comemorações ao longo desses 15 anos. Quão difícil foi selecionar as participações para este álbum, como as de Anitta e Emicida, e o que buscaram apresentar sonoramente?

Russo - Tem um termo que uso que é “Imãgético”, a mistura de “imã” com “imagético”. A imagem trouxe as pessoas. O disco tinha uma história contada antes. “Praia do Futuro” é descer para a praia, “Porta-retrato da Família Brasileira” é a volta das famílias para suas comunidades, “Magnata” é sobre dinheiro… Essa história já estava sendo costurada antes do processo musical.

"Não queremos números ou estatísticas; queremos reunir todos como uma família musical, uma constelação artística onde todos são valorizados igualmente."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Não queremos números ou estatísticas; queremos reunir todos como uma família musical, uma constelação artística onde todos são valorizados igualmente."

Foram três anos fazendo o disco. Nesse, focamos em gente. As pessoas se aproximaram de nós naturalmente pelos temas. Se converso com o Gilberto Gil e ele não tem relação com aquele tema, podia simplesmente só conversar. Mas, se ele tem, no meio disso digo que tenho uma música para ele.

Com todo mundo que conversei, era sobre um tema. As pessoas foram fazendo naturalmente. Não existiu “feat”. É natural, porque é da história da vivência do processo. Nunca mais vou conseguir fazer um disco desse, porque foram três anos vivendo essa história. Pesquisa profunda.

Viajei para museu na Colômbia para saber sobre a América Latina. Essas participações se aproximaram de formas muito naturais. Gil, porque não poderia ser outra pessoa. Cláudia Manzo, porque ela traz consigo o portunhol e estava nessa pesquisa. Emicida, porque já estava envolvido na discussão de “A Laje”.

Eu já estava há 15 anos no meio dessas pessoas. Elas confiaram em nós, porque não queremos nada dos outros. Não queremos números ou estatísticas; queremos reunir todos como uma família musical, uma constelação artística onde todos são valorizados igualmente. Queremos que a menina que tocou violino seja igual à Anitta ou ao Emicida.

Entendo que há uma pessoa na Orquestra Sinfônica que toca um instrumento enorme, e o esforço para transportá-lo e se apresentar é imenso, muitas vezes maior do que o de um MC para rimar, por mais que fale coisas tão pesadas.

No fim, todos vão embora, enquanto ela fica com seu contrabaixo acústico, morando na periferia, enfrentando dificuldades para voltar para casa de Uber. Imagina viver isso constantemente. É uma loucura e extremamente custoso. Queremos, de fato, valorizar todos. É isso que estamos fazendo. Em todas as fotos, seja com Anitta ou outros artistas, todos estão ali, e aí é música desse padrão.

"Há sempre alguém lá atrás que não ouviu direito, mas só pulou porque quem está na frente pulou primeiro."(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal "Há sempre alguém lá atrás que não ouviu direito, mas só pulou porque quem está na frente pulou primeiro."

O POVO - Nesses últimos tempos, o BaianaSystem atravessou algumas efemérides, como o uma década de Navio Pirata e os 15 anos da banda. Quais contribuições você acha que a banda trouxe para a música brasileira?

Russo - O BaianaSystem é uma banda de caminhão, que coloca o coração em um caminhão. O “Navio Pirata” é um caminhão, que vira uma metáfora por causa do “mar de gente”. O “mar de gente” é onde o “Navio Pirata” (o caminhão) passa.

Só que, o som, quando eu falo, chega primeiro em quem está na frente e depois em quem está atrás. O som é físico. Ele bate nas paredes e ninguém sabe para onde ele vai. Quando um trio elétrico toca, a música atinge primeiro uma pessoa e depois se propaga para as outras. É uma onda sonora que atravessa os corpos das pessoas.

Surgiu então a metáfora: há sempre alguém lá atrás que não ouviu direito, mas só pulou porque quem está na frente pulou primeiro. Isso é muito interessante. Essa metáfora fortalece nosso entendimento da música brasileira como um laboratório musical.

As pessoas que fazem parte dele são seres humanos que entram ali para cantar, colaborar, dançar e ouvir. Quem ouve a música é tão importante quanto quem a canta, porque senão não haveria razão para cantar ou tocar. O BaianaSystem é um laboratório experimental de música, cada vez mais de música brasileira, que segue a ideia de ser uma música sulamericana, espanhola, português, “pretoguês”, pensada e recriada a todo o momento.

Nossa intenção é fazer a música para ficar na “garrafa” e chegar em outros lugares. Isso faz parte de qualquer construção musical. A importância dos dez anos do "Navio Pirata" e dos 15 anos do BaianaSystem está em retornar à energia que tínhamos no início, como uma criança que vê ou sente algo pela primeira vez.

É isso que queremos: não criar algo novo apenas por criar, mas resgatar a sensação de ver a cor verde novamente, de experimentar um sabor doce outra vez. Para isso, precisamos nos desapegar cada vez mais, nos limpar, beber água para entender esse nosso paladar. Não queremos substituir, porque existe o passado que o futuro ainda não alcançou.

 

 


 

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