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Adilson Moreira: "A raça agora é um debate público no Brasil"
Reportagem Seriada

Adilson Moreira: "A raça agora é um debate público no Brasil"

Jurista brasileiro e especialista em direito antidiscriminatório fala sobre importância de comitês de promoção da igualdade racial em órgãos públicos, destacando o papel fundamental na superação do racismo

Adilson Moreira: "A raça agora é um debate público no Brasil"

Jurista brasileiro e especialista em direito antidiscriminatório fala sobre importância de comitês de promoção da igualdade racial em órgãos públicos, destacando o papel fundamental na superação do racismo
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Capa do livro Racismo Recreativo, do jurista e pesquisador Adilson Moreira(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Capa do livro Racismo Recreativo, do jurista e pesquisador Adilson Moreira

Ser um agente de transformação social. Eis o que motivou o jurista Adilson Moreira ao ingressar no curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1994. O curso, conta ele, não tinha professor negro nem o debate sobre discriminação racial estava na pauta.

Diante dessa realidade, Adilson se viu com propósito de buscar o conhecimento e se tornar especialista em direito antidiscriminatório e das relações raciais, ensinado, na época, apenas fora do País.

Mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, Adilson construiu uma trajetória se especializando na temática. É autor dos livros Racismo Recreativo e Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica, com o qual foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020, na categoria Ciências Sociais.

Em dezembro de 2024, o advogado esteve no lançamento do Comitê de Promoção e Defesa da Igualdade Étnico-Racial da Defensoria Pública do Ceará (DPCE) e conversou com O POVO sobre essas questões que permeiam o cenário do racismo no Brasil. 

O POVO - O senhor veio a Fortaleza para participar da primeira formação do Comitê de Promoção e Defesa da Igualdade Étnico-Racial da Defensoria Pública do Ceará. Qual é a importância de um grupo como este dentro de um órgão jurídico público?

Adilson Moreira - A importância de um comitê dessa natureza dentro desse órgão público específico que é a Defensoria Pública, obviamente tem uma importância tremenda porque como todos nós sabemos a Defensoria tem um papel central na representação de pessoas que estão em uma situação de desvantagem. Ela tem um papel protetivo, tem um papel central no processo da garantia de todos ao exercício do direito do acesso à Justiça, que é um dos direitos fundamentais mais importantes que nós temos.

É importante reconhecer o fato de que a mera existência desses direitos, a existência dessas atribuições constitucionais conferidas à Defensoria não significa necessariamente que esse órgão está desempenhando essas funções da melhor forma possível, da maneira mais eficaz possível. Isso porque o racismo é um sistema de dominação social que opera de forma complexa. Ele, por um lado, impõe desvantagens às pessoas, não é, obviamente a grupos minoritários, mas o racismo tem essa dimensão institucional, mas ele também tem uma dimensão ideológica.

Uma das características da operação do racismo no Brasil é a negação da sua existência. Na verdade, o racismo é um sistema de desvantagem que opera de forma muito complexa. Ele cria desvantagens de acesso à educação, à saúde, ao trabalho, acesso à Justiça e quando você não tem a compreensão adequada do funcionamento desses processos. 

A existência de comitês dessa natureza em quaisquer órgãos públicos são muito importantes, não apenas para o exercício para proteção e efetividade do exercício da instituição, mas a própria instituição é formada por seres humanos. A própria cultura institucional, a própria prática institucional pode dar vazão a esse problema. Também é importante que iniciativas como essas existam, inclusive, para proteger as pessoas que trabalham dentro da instituição.

O jurista Adilson Moreira, 66 anos, é natural de São Paulo e é autor do livro Racismo Recreativo, da coleção Feminismos Plurais(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE O jurista Adilson Moreira, 66 anos, é natural de São Paulo e é autor do livro Racismo Recreativo, da coleção Feminismos Plurais

OP - O senhor tem visto essa experiência de grupos para discutir igualdade racial no meio jurídico em outras instituições? Como tem sido?

Adilson - Esse debate sobre a igualdade racial e justiça racial são cada vez mais mais presente no Brasil. Essa é uma consequência interessante dos programas de cotas raciais porque pessoas negras começaram a entrar nessas instituições e são beneficiadas. Elas se tornam promotoras, advogadas, defensoras e etc.

Agora, elas também começam a fazer política institucional, começam a trabalhar para que essas próprias instituições encampem a luta pela justiça racial. Eu trabalho também com a implementação de programas de diversidade, então eu também atendo empresas que estão preocupadas em expandir a diversidade de raça e gênero e orientação sexual dentro dos seus quadros.

OP - O senhor tem uma trajetória acadêmica que passa por Harvard, Berkeley e Yale. Como foi o seu caminho até essas universidades? E como foi passar por elas? O que viu lá?

Adilson - Eu fui pra faculdade de Direito porque eu tinha esse sonho adolescente, que eu ainda tenho, na verdade, de poder transformar o mundo. Eu fui para a faculdade de Direito com o objetivo de ser um agente de transformação social.

Chegando na realidade com a qual eu me deparei quando eu cheguei na faculdade de Direito, no caso na UFMG, eu não tinha nenhum professor negro e eu passei cinco, seis horas por dia ouvindo as pessoas falando sobre direitos disso, direito àquilo, etc., eu nunca ouvia ninguém explicando os motivos pelos quais as pessoas não têm acesso a direitos.

Eu nunca ouvi ninguém falando ou explicando o que é discriminação. Um dos motivos, razões e explicações para esse fato é porque essas disciplinas, direito antidiscriminatório e direito das relações raciais não são ensinadas no Brasil. Elas foram desenvolvidas nos Estados Unidos, elas existem em universidades norte-americanas, mas não no Brasil.

Desde a graduação, eu tinha esse propósito de ir para os Estados Unidos para estudar e aprender essas disciplinas. Me tornar um especialista em direito antidiscriminatório e em direito das relações raciais e voltar para o Brasil e atuar aqui. Primeiro eu fui para a Faculdade de Direito da Universidade de Yale como pesquisador-visitante. Eu fui trabalhar com o professor William Neescreed.

Depois eu me candidatei aos programas de mestrado em Harvard, Berkeley, Columbia, Nova York etc. O meu objetivo, na verdade, era ir para Berkeley porque eles têm um programa de mestrado em Teoria Crítica Racial. Não fui aceito, mas fui aceito em outras instituições. E Harvard era a universidade que tinha um programa mais sólido de pesquisas nesta área.

Esse interesse de ir para instituições norte-americanas é uma consequência mesmo da minha vontade de me tornar um especialista em uma área que não existia no Brasil, que não era suficientemente desenvolvida no Brasil.

O meu trabalho e as minhas obras têm sido nesse sentido. Escrever obras que sistematizam essas disciplinas. Nós temos uma infinidade de normas que regulam e que protegem as pessoas contra práticas discriminatórias.

Nós temos uma pluralidade de normas que regulam as relações raciais, mas as pessoas não sabem como tratar essas normas. Elas acham que são normas e não parte de uma disciplina que opera a partir de uma lógica específica que tem objetivos específicos e metodologias específicas. Minha experiência nessas instituições foi espetacular, fantástica e eu aprendi tremendamente.

Adilson Moreira é mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley (2022) (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Adilson Moreira é mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley (2022)

OP - A discussão de raça no Brasil é diferente da que acontece nos Estados Unidos, por exemplo. Aqui parece que ainda há um constrangimento em se falar sobre, de modo geral. Quando vai para as massas. Como o senhor avalia essas diferenças na abordagem?

Adilson - É curioso observar a convergência e a divergência relacionada ao debate racial nos Estados Unidos. Entre as décadas de 60 e 80 havia um debate racial muito claro. Era o período da luta dos negros norte-americanos por direitos civis, era o período de lideranças, como Martin Luther King, Malcolm X e Bayard Rustin e várias outras pessoas. Esse movimento foi vitorioso.

Em 1964, surge o Civil Rights Act que acaba com o sistema de segregação racial. Alguns anos depois o direito ao voto é universalizado e a legislação protetiva. Mas, no final da década de 80, esse consenso sobre a questão da responsabilidade coletiva pela situação dos negros, o consenso sobre a necessidade de criar medidas para diminuir as consequências das práticas discriminatórias que sempre existiram naquele país, 300 anos de escravidão mais quase cem anos de segregação, esse consenso parou de existir.

No final da década de 80, começa a surgir um discurso muito similar ao nosso discurso da democracia racial. A ideia é: “Olha, o sistema de segregação racial que existia nesse país acabou. E como as leis segregacionistas deixaram de existir, o racismo acabou.

O racismo não tem mais nenhuma relevância, as pessoas negras, asiáticas, indígenas, etc., não são impedidas de exercer direitos. Se elas não conseguem ter acesso a oportunidades, isso é culpa delas. Então, nós brancos, não precisamos ter nossos direitos diminuídos em função de ações afirmativas e coisas dessa natureza”.


Desde a década de 80, nós vemos nos Estados Unidos a formação dessa ideia, desse discurso da color blindness, da ideia de que justiça racial significa neutralidade racial, que uma sociedade racialmente justa é uma sociedade na qual a raça não é utilizada de forma alguma, nem para beneficiar negros. No Brasil tem sido o contrário desde a década de 80.

Na década de 80, nós temos o fim da ditadura militar, a rearticulação do movimento negro e a luta incessante do movimento negro para promover níveis maiores de inclusão racial. Nós temos uma Constituição que criminaliza o racismo, que estabelece obrigações positivas às instituições estatais, entre elas promover a inclusão de grupos minoritários.

Nós temos pela primeira vez na história, a proteção de grupos quilombolas e grupos dos povos originários. A raça agora é um debate público no Brasil. Lá nos Estados Unidos está ocorrendo o contrário. Lá nós estamos observando o aparecimento de dezenas de projetos de lei que proíbem a discussão sobre raça. Em alguns estados, como Texas, por exemplo, os livros de história não mencionam mais a escravidão ou dizem que a escravidão foi um processo benéfico e coisas dessa natureza.

Aqui no Brasil, não é a extrema direita que ainda nega a existência da relevância do racismo, mas só que tem que essa resistência está sendo vencida, enquanto que nos Estados Unidos, especialmente agora com a decisão da Suprema Corte que acabou com ações afirmativas, a questão racial está sendo colocada de escanteio.

Adilson Moreira defende as ações afirmativas como meio de garantia de acesso à educação e ao trabalho, que são direitos fundamentais, são direitos sociais (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Adilson Moreira defende as ações afirmativas como meio de garantia de acesso à educação e ao trabalho, que são direitos fundamentais, são direitos sociais

OP - Existe um retrocesso, então?

Adilson - Indiscutivelmente.

OP - E em relação ao Brasil, o senhor acredita que a gente ainda está atrasado nessa discussão? Quanto seria esse atraso?

Adilson - Não estou exatamente certo se nós podemos pensar essa questão a partir de termos de atraso ou não, mas em termos de conscientização. O nível de conscientização no Brasil sobre o debate racial, sobre a importância da justiça racial é cada vez maior.

E novamente o tipo de cultura jurídica presente no país determina em grande parte as direções que esse debate é tomado. Para nós negros brasileiros, do ponto de vista estritamente jurídico, foi mais fácil convencer os nossos tribunais sobre a necessidade de ações afirmativas.

Isso porque as ações afirmativas são meios de garantia de acesso à educação e ao trabalho. Educação e trabalho são direitos fundamentais, são direitos sociais. Quando nós olhamos na justificação dos tribunais, do Supremo Tribunal Federal, quando reconhecemos a constitucionalidade de ações afirmativas, a ideia é que isso é um direito fundamental. 

O Estado tem uma obrigação positiva de garantir acesso a esses direitos. Essa categoria não existe nos Estados Unidos. A ideia de direitos sociais, isso não existe. A ideia de que o Estado tem o dever de garantir direitos materiais, isso não existe dentro da construção.

A ideia de ação afirmativa, ela sempre foi pensada e discutida a partir de uma perspectiva muito mais limitada do que o debate no Brasil. Nos Estados Unidos, ações afirmativas elas sempre designam e sempre foram pensadas a partir de uma lógica protetiva.

O racismo existe e nós precisamos impedir que pessoas negras sejam excluídas de oportunidades profissionais ou materiais por causa do racismo. Essa dimensão também está presente no Brasil, mas afirmativas têm sido definidas pelos nossos tribunais como uma como medidas legalmente, constitucionalmente e legítimas para atingir objetivos políticos determinados pela nossa Constituição.

Como nós temos uma base legal muito mais ampla para proteger esses esse tipo de medida, foi mais fácil, entre milhões de aspas, convencer à população, a sociedade e o sistema judiciário da necessidade de implementação, porque a discussão não é restrita apenas a esse caráter negativo da igualdade.

OP - E antes, o que o senhor viu e viveu na infância, na escola, que o levou a essa trajetória?

Adilson - Uma das primeiras lembranças que eu tenho da escola foi uma aula na qual a professora perguntava para alunos e alunas o que eles queriam ser quando crescessem. E eu disse que queria ser astronauta e aquilo criou uma gargalhada generalizada entre e meus colegas brancos.

E por que? “Oh lá um preto astronauta, você nunca vai conseguir, etc e tal”. E a professora virou para mim e disse: “Mas você acha que você não deveria ter assim escolhas ou objetivos mais realistas?” Por que essa pergunta era uma pergunta visceralmente racista? Porque só nós estamos falando de população periférica.

Eram todas pessoas periféricas, estudando numa escola periférica, numa escola que oferecia educação de baixa qualidade. Éramos todos crianças brancas e negras que tinham lares, que enfrentaram toda sorte de problema, pais desempregados, mães desempregadas, crianças que eram criadas ou só pelas suas mães, na maioria dos casos, crianças que tinham problemas de alcoolismo dentro da família e assim, ou seja, as chances de nós conseguirmos terminar o primeiro grau, eram remotas.

Então por que ela, os alunos brancos que eu quero ser médico, eu quero ser engenheiro, isso era visto como natural e o aluno negro que queria ser astronauta, era motivo de risada? Eu não sei o que aconteceu na vida dessas pessoas, mas eu estou certo que nenhum deles foi estudar em Harvard. 

Adilson Moreira é jurista brasileiro e especialista em direito antidiscriminatório e das relações raciais(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Adilson Moreira é jurista brasileiro e especialista em direito antidiscriminatório e das relações raciais

Essa é uma das lembranças que eu tenho de pessoas negras que sofrem, que é a desqualificação. Que é a sociedade estar delimitando, limitando o seu repertório identificatório, o seu repertório de objetivos. "Isso não é para você, não é?" Eu não tinha nenhuma intenção de ser advogado, eu queria ser cantor de ópera, eu cantei em corais durante dez anos.

Mas quando chegou aos 17, 18 anos e eu fui fazer testes em conservatórios, "você é negro, como é que você vai ser cantor de ópera?". "Você já viu algum cantor de ópera negro?" Eu disse já! E citei os nomes, inclusive. Mas foi peremptório. "Isso aqui não é lugar para você, não é?"

Nós negros periféricos, nós que somos negros periféricos, pobres, gays, com deficiência, ou seja, nós que somos a minoria da minoria da minoria, estamos sempre aleijados de oportunidades. Eu sempre tive uma personalidade muito reativa. Não, isso não vai ficar assim. Eu tô vendo nosso colega com aquele livro ali, Racismo recreativo. [Diz fazendo referência ao jornalista Bruno de Castro, da Defensoria Pública do Ceará, que acompanhava a entrevista.]

Esse livro é uma obra acadêmica baseada em pesquisa empírica, não é? Eu li centenas de decisões judiciais que falam sobre crimes de injúria. Agora, isso também é uma vingança pessoal, sabe? Isso também é uma forma de você demonstrar ao poder estabelecido, desnudar ao poder estabelecido, como o sistema de opressão racial opera neste País.

OP - Professor, e quando foi a virada de chave para sua entrada no direito antidiscriminatório?

Adilson - Desde sempre. Eu entrei na faculdade com o propósito de operar como agente de transformação social. E no terceiro período, eu fui selecionado para o projeto Polos Reprodutores de Cidadania, que era um projeto de cooperação entre a faculdade de direito e a prefeitura de Belo Horizonte. O objetivo era mapear grupos e lideranças sociais e ter consciência de quais eram os mecanismos que impediam estes grupos diversos de terem acesso a oportunidades.

Os membros do grupo foram trabalhar com vários grupos sociais e eu fui trabalhar com a população em situação de rua e quase todas essas pessoas eram negras e com algum problema de saúde mental. Eram mulheres negras, homossexuais e transexuais negros. Muitos deles com algum tipo de dependência química, com algum problema depressivo, transtornos bipolares e coisas dessa natureza, sabe?

Então essa minha experiência individual como homem negro periférico e também a observação da situação de exclusão, não é? Porque eu ainda tive pai e mãe, todos os meus irmãos e irmãs foram para a universidade. Eu ainda estou em uma situação melhor do que essas pessoas.

Minha ideia sempre foi ‘eu preciso fazer alguma coisa para todo mundo’. Então, já que eu estou na faculdade de direito vou estudar direito constitucional, sabe? Eu vou estudar direito público, que são disciplinas que permitirão que eu possa de uma forma ou de outra contribuir para melhoria das condições de vida dessas pessoas.

Para Adilson Moreira, uma das características da operação do racismo no Brasil é a negação da sua existência(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Para Adilson Moreira, uma das características da operação do racismo no Brasil é a negação da sua existência

OP - Em Racismo recreativo, da coleção Feminismos Plurais, o senhor esmiuça vários conceitos do racismo. Como esse conceito de racismo recreativo se entrelaça com o discurso público?

Adilson - Eu utilizei essa expressão pela primeira vez de uma forma meio aleatória. Eu estava dando uma entrevista para a Folha de S.Paulo e aí eles me pediram para que eu explicasse os motivos pelos quais torcedores jogavam bananas para os jogadores negros. E aí eu disse ‘acho que isso é um tipo de racismo recreativo’, sabe? Não tinha a menor ideia do que eu queria falar com isso.

Aí um aluno me mandou uma decisão judicial na qual a ofensa, a injúria racial, assumiu a forma de uma piada racista. E comecei a fazer uma pesquisa para ver se encontrava outros casos similares e encontrei centenas.

OP - Um dos pontos interessantes que o senhor discute é o conceito de microagressões. O que são esses atos e como eles são podem ser vistos no dia a dia?

Adilson - Vou dar um exemplo concreto. Eu estava em um supermercado que atende pessoas ricas. Havia pessoas brancas na minha frente e a caixa: "Bom dia, a senhora encontrou tudo que precisava? Olha, se a senhora não encontrar, a senhora pode preencher esse formulário em 24 horas ou no máximo 48 horas, esse produto estará aqui".

Quando chegou a minha vez, ela disse "CPF na nota", em um tom mais agressivo. Então veja, eu posso processar alguém porque perguntou se eu queria o CPF na nota? Não. Não há nenhuma norma que criminalize isso. Mas agora isso é uma expressão de animosidade, de desdém, de agressividade

Ou seja, é uma microrregressão. É todo ato, mensagem, gesto, que não é suficientemente grave para gerar um processo judicial, mas que expressa ódio e desprezo, não é? É condescendência ou indiferença pelas pessoas.

Adilson Moreira é autor de Racismo Recreativo, da coleção Feminismos Plurais(Foto: Mackenzie/Divulgação)
Foto: Mackenzie/Divulgação Adilson Moreira é autor de Racismo Recreativo, da coleção Feminismos Plurais

OP - Por que o racismo recreativo ainda é tão tolerado?

Adilson - Ele é uma política cultural que opera por meio do uso estratégico do humor racista. O humor racista permite que pessoas brancas e instituições controladas por pessoas brancas possam expressar ódio, desprezo e condescendência.

Mas ele também permite que essas pessoas brancas e instituições controladas por elas, mantenham uma imagem social positiva, porque parte do pressuposto de que o humor, toda e qualquer forma de humor é sempre benigno.

Então, nós temos dentro da nossa da cultura pública brasileira, primeiro a coisa que negros não merecem respeito. Segundo, a coisa que negros não têm nenhuma dignidade que precisa ser protegida pelo poder judiciário ou pelas instituições sociais de maneira geral, sabe? Então, a tolerância ao racismo recreativo é uma consequência direta do desprezo racial preponderante na nossa sociedade.

OP - Tivemos um caso emblemático há alguns anos da delegada Ana Paula Barroso, que foi alvo de racismo em uma loja da Zara. Este ano, o gerente foi condenado a um ano, um mês e 15 dias de serviço comunitário. O que me parece é que os juízes não veem relevância no racismo. Na sua experiência, isso é verdade? Como o senhor avalia essa questão?

Adilson - Isso é verdade, né? Veja só, quando nós lemos essas decisões judiciais, nós vemos claramente que os juízes são pessoas brancas e que estão operando para proteger outras pessoas brancas.

Um dos primeiros casos que eu cito no livro é de um grupo de gerentes homens brancos que se vestiram de membros da Ku Klux Klan numa festa de Natal e foram constranger os funcionários negros.

Os funcionários protestaram e foram todos demitidos. Eles processaram a empresa e o juiz disse que aquilo não poderia ser um ato de racismo, porque todos eles tinham um curso superior. Então parte significativa do nosso sistema judiciário opera dessa maneira.

Adilson Moreira com as repórteres Bárbara Mirele e Mirla Nobre(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Adilson Moreira com as repórteres Bárbara Mirele e Mirla Nobre

OP - Como a perspectiva do feminismo negro desafia os paradigmas tradicionais e do direito constitucional e propõe alternativas para combater a exclusão social e a desigualdade racial?

Adilson - Nós temos uma Constituição que tem um caráter muito progressista. É uma constituição que tem um programa de transformação social que está presente no artigo primeiro da Constituição, que está presente no artigo 3°, nos artigos 5º e 6°, no artigo 170 e vários outros.

Por que esse programa constitucional não é efetivado? Um dos motivos é pela leitura liberal feita desse texto. São leituras formalistas, positivistas, que interpretam essa ou aquela provisão constitucional e separada de todo o resto. Então, nós temos um texto constitucional progressista lido e interpretado a partir de uma perspectiva conservadora ou reacionária.

E o que feministas negras, indígenas e asiáticas — que estão em menor número — estão dizendo? É que essas essas perspectivas liberais existem para proteger a mera liberdade individual, que é o que a direita quer nos convencer, elas são falsas e impedem o avanço da igualdade no Brasil e na sociedade.

A relevância do feminismo negro é importante porque que é uma epistemologia alternativa, sabe? E que pode trazer contribuições significativas para que nós, operadores do direito, entendamos todos esses processos responsáveis pela exclusão social.

OP - O que precisamos fazer para avançar nessa pauta para a discussão da igualdade racial aqui no País?

Adilson - Nós precisamos estudar o direito antidiscriminatório e aprender a identificar os motivos responsáveis pelo fato, não é? Precisamos entender os motivos pelos quais essas mesmas pessoas que batem palma para o policial que joga o negro da ponte da ponte, ficam mortificadas quando uma mulher branca é morta. Então, nós precisamos ler a Constituição e precisamos discutir e debater que tipo de programa a sociedade brasileira quer criar.

 


 

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