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Maria da Natividade: "Lula nunca foi comunista"
Reportagem Seriada

Maria da Natividade: "Lula nunca foi comunista"

Maria da Natividade foi a primeira presidente na retomada do Sindicato dos Bancários, um dos mais importantes do Ceará na redemocratização. Ela fala da trajetória da esquerda no Estado e do passado e o futuro do comunismo

Maria da Natividade: "Lula nunca foi comunista"

Maria da Natividade foi a primeira presidente na retomada do Sindicato dos Bancários, um dos mais importantes do Ceará na redemocratização. Ela fala da trajetória da esquerda no Estado e do passado e o futuro do comunismo
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Os comunistas são uma ameaça, apontam os discursos conservadores no Brasil de hoje — e em vários lugares do mundo. Assim como era seis décadas atrás, quando Maria da Natividade dava os primeiros passos na política, no Liceu do Ceará, e acompanhava as manifestações puxadas por Carlos Augusto Lima Paz, o Parangaba. Ela cursava o ginásio — como na época eram denominados os anos finais do atual ensino fundamental. Estava prestes a testemunhar o início da ditadura militar.

Natividade veio a se aproximar da mais tradicional entre as forças políticas da esquerda: o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o partidão. A referência era Luís Carlos Prestes.

A esquerda era perseguida e se dividia entre concepções. Havia stalinistas, maoístas, trotskistas. Os que seguiam União Soviética, China, Cuba ou Albânia. Houve os que decidiram pegar em armas. Diferenças que ela considera secundárias frente ao objetivo principal.

Maria da Natividade é militante do PCB, foi presidente do Sindicato dos Bancários e candidata a governadora do Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Maria da Natividade é militante do PCB, foi presidente do Sindicato dos Bancários e candidata a governadora do Ceará

As organizações de esquerda atuavam na clandestinidade, mas Natividade foi para a linha de frente da militância pública quando a ditadura ainda estava de pé e nem havia a anistia. No ABC paulista, o movimento sindical se reorganizava em torno dos metalúrgicos, de Luiz Inácio Lula da Silva.

A efervescência tomou conta do Brasil. No Ceará, uma das primeiras e principais entidades de trabalhadores a se reorganizarem foi o Sindicato dos Bancários. Em 1979, Maria da Natividade assumiu a presidência ao derrotar o comando dos chamados "pelegos".

Ela conta essa história e a das muitas divisões pelas quais passou a esquerda. Em 1962, quando PCB e PCdoB se dividiram. Ou em 1980, no racha que levou Prestes a sair do partidão. Novamente na fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT). E ainda em 1992, quando a direção decidiu mudar a denominação do PCB para Partido Popular Socialista (PPS), o atual Cidadania.

Maria da Natividade conversa com Érico Firmo(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Maria da Natividade conversa com Érico Firmo

Houve, então, uma disputa dos antigos militantes para recuperar a sigla tradicional. Ela lamenta que as divisões tenham impedido muitas transformações. Ao evitar se estender sobre uma dessas brigas, ela resume sobre o que estava em jogo: poder.

Natividade aborda a trajetória do movimento comunista e os estigmas envolvidos. Afirma que o partido está crescendo. E rebate os críticos da direita que associam o presidente Lula ao comunismo. "Lula é social-democrata".

 

 

O POVO - Quando eu falei com a senhora para combinar a entrevista, a senhora estava no Ipu?

Maria da Natividade - Estava no Ipu, eu sou do Ipu, gosto de ir para lá. Quase todo mês eu vou lá, acho muito bom. É tão frio, rapaz. Está muito frio, gelado, sabe? De noite, tinha que dormir de cobertor mesmo, desse brabo, viu? Tu é acostumado com isso?

OP - Sou não. Sou muito acostumado é com quentura. A bica voltou a ter água?

Natividade - O problema da bica, sabe o que é? Eles prendem as águas lá por cima, que é para irrigação. É um crime. E os riachões estão quase secos.

OP - Antigamente, se dizia que mesmo na seca, a bica seguia com água caindo.

Natividade - Sim, porque ela tem uma nascente muito poderosa lá em cima. Da nascente, o percurso para a bica não é tão grande. Então, aquela água era constante.

'Foi em 1963, que a gente veio para cá para estudar no Liceu. Naquela época da ebulição, sabe, aquela coisa política, aquelas passeatas estudantis.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'Foi em 1963, que a gente veio para cá para estudar no Liceu. Naquela época da ebulição, sabe, aquela coisa política, aquelas passeatas estudantis.'

OP - Quando a senhora veio para Fortaleza?

Natividade - Olha, a minha avó morava aqui, e nós éramos os únicos membros da família, tanto do pai como da mãe, que morávamos no interior. Os filhos, os irmãos do meu pai, foram para o Sudeste, os da minha mãe para o Norte.

É uma história bem interessante, essa história do Norte, na época ainda da guerra, e da borracha. Aí, nós ficamos aqui. Aí, minha avó depois foi morar aqui em Fortaleza, e ficava nesse trânsito Fortaleza-Ipu, Fortaleza-Ipu, Fortaleza-Ipu, sabe? Então, a gente não tem aquela data fixa de ter morado lá e morado aqui, sabe?

OP - A senhora ficava vindo para Fortaleza?

Natividade - É, ficava aqui, lá. Minha avó tinha um hotel ali na rua Senador Pompeu, chamado Hotel Bahia. Era de frente ali onde é aquela loja da maçonaria, entre Castro e Silva e Senador Alencar.

OP - Seus estudos, onde foram?

Natividade - Eu estudei uma época aqui, mais quando eu era menor. Mas eu estudei no Ipu até, naquela época era o ginásio, até o terceiro ano ginasial. Depois, nós viemos para cá mais definitivo. Minha mãe era muito doente, ela adoeceu muito cedo, e isso nos trouxe para cá em definitivo. Quer dizer, definitivo assim, de vez, porque aqui tinha mais recurso.

Então, foi em 1963, que a gente veio para cá para estudar no Liceu. Naquela época da ebulição, sabe, aquela coisa política, aquelas passeatas estudantis. A gente morava na (rua) Tereza Cristina (centro de Fortaleza). Ai, que coisa! Lá vem! Quem comandava mais aquilo era o Parangaba.

Vocês são mais novos, não se lembram. Já ouviu falar do Parangaba (Carlos Augusto Lima Paz)? Era o líder estudantil do Liceu. Todas aquelas passeatas, o Parangaba estava na frente. E a gente acompanhava, acompanhei muito o movimento estudantil nessa época.

OP - A escola política da senhora foi o Liceu?

Natividade - Foi o Liceu. O Liceu era o máximo, sabe? O Liceu era aquele colégio referência, não só política, que formava. Um colégio de referência em termos educacionais também.

 

 

Os conservadores, eles sempre estão em todo canto, né? (Risos)

- Maria da Natividade

 

OP - O Liceu tinha várias correntes políticas. Tinha o pessoal do Parangaba, o pessoal da esquerda, mas tinha os conservadores também, não é?

Natividade - Tem. Aliás, os conservadores, eles sempre estão em todo canto, né? (Risos)

OP - A senhora chegou ao Liceu ainda antes da ditadura.

Natividade - Foi, antes da ditadura. Aí veio o golpe militar, em 1964, fechou tudo. Ficou aquela coisa muito tenebrosa, para todo mundo. Aí a repressão baixou muita coisa. Quando foi em 1967, fim de 1967, eu fui passar uma temporada no Rio de Janeiro. No AI-5 (Ato Institucional número 5, o mais duro de toda a ditadura), eu estava lá no Rio de Janeiro, em 1968. Aquela passeata dos 100 mil, estava lá. Fizemos um bom trabalho até 1970 lá.

'O Liceu cresceu demais, não tinha como absorver todo aquele público estudantil que procurava, então a solução foi criar os anexos.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'O Liceu cresceu demais, não tinha como absorver todo aquele público estudantil que procurava, então a solução foi criar os anexos.'

OP - Nessa época, a senhora era uma pessoa que participava, mas tinha algum envolvimento já com organizações?

Natividade - Não, não, não. Era só aquele movimento dos estudantes mesmo. A gente seguia, mas eu não era filiada a nenhum partido, não pertencia a nenhuma organização.

OP - Antes de ir para o Rio de Janeiro, como foi acompanhar, ainda aqui, aquele começo da ditadura?

Natividade - Em 1964, depois em 1965, 1966, 1967, quando eu estava por aqui, a gente tinha aquele envolvimento, mas não era aquele envolvimento orgânico.

OP - A senhora estava no Liceu ainda?

Natividade - Estava no Liceu. E depois fui para os anexos do Liceu também. O Liceu cresceu demais, não tinha como absorver todo aquele público estudantil que procurava, então a solução foi criar os anexos. Aí fui para os anexos.

OP - Naquele primeiro momento da ditadura, o que era possível perceber que estava acontecendo?

Natividade - Olha, é tal história. A gente tem uma visão meio turva da coisa. Acabou-se tudo, acabou-se o movimento. Mas aqui, o que de fato era a ditadura mesmo, o que ela vinha a ser, o que ela veio a ser, o que ela veio a trazer para esse país, a gente não tinha aquela visão muito clara. Eu, pelo menos, não tinha.

A gente vai crescendo, vai amadurecendo, depois é que a gente absorve mesmo. Por exemplo, eu só absorvi mesmo depois do AI-5, 1968, que a gente começou a pertencer a grupos mais organizados, a gente começou a ler mais, a gente começou a participar mais efetivamente, aí a gente viu o que era a ditadura. Foi exatamente em 1968.

Jovem picha a fachada do Teatro Municipal do Rio de Janeiro durante a passeata dos 100 Mil, em 26 de junho de 1968 (Foto: Kaoro/CPDoc)
Foto: Kaoro/CPDoc Jovem picha a fachada do Teatro Municipal do Rio de Janeiro durante a passeata dos 100 Mil, em 26 de junho de 1968

OP - Por que a senhora foi para o Rio de Janeiro?

Natividade - Olha, eu tenho muitos parentes lá, muitos parentes. Como eu te disse, os parentes dos irmãos do meu pai, eles foram todos para aquela região lá, Rio de Janeiro, Minas Gerais, mas depois se concentraram em Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro era um deslumbre, né? Não obstante a ditadura, que foi horrível, aquela época. E aí, eu fui passar um tempo lá, acabei passando mais de dois anos.

OP - A senhora foi à Passeata dos 100 mil?

Natividade - Ah, eu estava lá. Interessante, tem uma foto na revista Fatos e Fotos, que hoje não existe mais, eu estou bem na frente lá (risos), na capa. Apareci lá na capa, por acaso. Estava a passeata belíssima, foi uma coisa belíssima. Que a gente não via.

Manifestantes na avenida Presidente Vargas, centro do Rio de Janeiro, na Passeata dos 100 Mil, em 26 de junho de 1968(Foto: Acervo Memorial da Democracia)
Foto: Acervo Memorial da Democracia Manifestantes na avenida Presidente Vargas, centro do Rio de Janeiro, na Passeata dos 100 Mil, em 26 de junho de 1968

Muitos estudantes, muita gente no meio da rua, aquele centro do Rio de Janeiro ficou tomado de gente (em 26 de junho de 1968). Lá vem a cavalaria, lá vêm eles. Quer dizer, aquela coisa que doía dentro. Foi uma coisa belíssima, aquela passeata, aquela passeata.

OP - Como foi que a senhora começou a se aproximar de organizações, de grupos organizados?

Natividade - Olha, aí a gente começa a participar, começa a ouvir as pessoas, tem os amigos, amigo de escola, amigo disso, e a gente vai para aquela tendência onde a gente acha as ideias mais centradas, as ideias mais corretas, e a gente vai se aliando com essas pessoas, com esses grupos. Tudo esfacelado, né, tudo clandestino, mas a gente vai se alinhando naquele pensamento que a gente acha mais adequado.

Maria da Natividade é militante do PCB, foi presidente do Sindicato dos Bancários e candidata a governadora do Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Maria da Natividade é militante do PCB, foi presidente do Sindicato dos Bancários e candidata a governadora do Ceará

OP - A primeira aproximação foi com qual?

Natividade - Toda vida foi, eu sempre me aproximei do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Tinha um local onde a gente morava, lá no Rio de Janeiro, a gente morava lá na Vila Isabel, tinha um senhor, seu Luiz, ele já morreu, ele era do Banco do Brasil. E a nossa referência de partido era o seu Luiz, sabe? Era uma coisa muito interessante. Nós não éramos, organicamente, filiados a partido, mas a gente participava muito de coisas. Bem interessante.


 

O PCB, sem querer desmerecer as pessoas que militam nas outras organizações, sempre foi aquele partido que realmente tinha aquela linha centrada, que ainda hoje faz medo... sabe?

- Maria da Natividade

 

OP - Luís Carlos Prestes ainda era a grande figura?

Natividade - O Prestes sempre foi a figura máxima do partido. Aí, quando veio a anistia, estava todo mundo na Europa. Quer dizer, o PCB foi esfacelado. Mataram quase todo mundo do Comitê Central, foi uma coisa terrível.

Por quê? Porque o PCB, sem querer desmerecer as pessoas que militam nas outras organizações, que todo mundo tem seu mérito, mas sempre foi aquele partido que realmente tinha aquela linha centrada, que ainda hoje faz medo... sabe? Por quê? Porque ele é centrado. O que é dito, sabe o que faz, avalia bem direitinho.

Então, quando vieram, o pessoal estava todo pela Europa, e eles já vinham com ideias de... sei lá, ideias diferentes do que seria aquela ideia que a gente sempre teve. Mais ligada à social-democracia. E o Prestes não concordava com aquilo. Aí houve aquele primeiro racha. Quando o Prestes chegou aqui, já estava no racha, em 1980. Lamentamos profundamente, porque o Prestes sempre foi uma referência.

Luís Carlos Prestes(Foto: Arquivo Nacional)
Foto: Arquivo Nacional Luís Carlos Prestes

O Prestes é uma figura histórica, né? Figura histórica. Não só depois da Coluna Prestes, que ele rompeu com muita coisa, mas por toda a trajetória dele dentro do partido, com aquela linha correta, que ele nunca desviou. E houve esse racha. A grande maioria que sobrou de Comitê Central que se formou rompeu, e o Prestes ficou.

Aí criaram o que a gente chama dos prestistas. Mas aí foi aquele movimento incipiente. Porque tem uma coisa que a gente sempre sabe: a organização é a organização. Tem aquela pessoa, sempre tem aquele líder que comanda e tal e tal, mas às vezes, quando ele rompe com aquilo, é ruim para todo mundo, principalmente para quem sai.

OP - Já tinha havido antes o racha do PCdoB...

Natividade - O do PCdoB foi em 1962. Esse foi um racha dentro do PCB mesmo.

OP - E quem saiu?

Natividade - Quem saiu foi o Prestes. Aí ficou o PCB.

OP - Os prestistas eram ainda dentro do PCB?

Natividade - Não, saíram. Aí ficou o PCB, o pessoal do PCB. Aí depois, em 1992, rachou de novo. Um grande racha.

OP - Quando foi criado o PPS (Partido Popular Socialista, atual Cidadania).

Natividade - Aí foi o outro grande racha. Esse aí foi terrível. Porque aí saíram Roberto Freire e todo aquele pessoal que vinha de muito tempo. Pessoas de referência dentro do partido. O que sobrou da ditadura, que estava reconstruindo o partido. Aí foi horrível. Foi horrível.

OP - Na época da ditadura, hoje está até voltando, mas tinha um estigma muito grande em ser comunista. Como era lidar com isso? Até com a família.

Natividade - Todo mundo, né? Tu imagina o que é uma mídia pesada. Porque como é que você mantém um país tão desigual? No mundo, nenhum país tão desigual. Uns têm muito e o resto não tem nada.

Como é que você mantém isso e as pessoas se acomodam? Porque joga tudo na cabeça das pessoas.

Então, para eles, era terrível deixar o partido com as suas ideias aí solto, jogando ideias, conversando com as pessoas. E eles jogaram esse estigma em cima das pessoas. Comunista era aquele bicho horrível. Aquela história que diz que comia criancinha. 

 

 

Essa dissidência, do meu ponto de vista, era tudo no secundário, não era no primário

- Maria da Natividade

 

OP - Quando o senhora começa a se envolver, havia as discussões, as dissidências, quem defendia Stalin, a linha maoísta, a guerra popular, os os trotskistas. Como era o debate entre as correntes?

Natividade - Olha, aí é tal história. Cada corrente dessas que se formava, principalmente depois da ditadura, quando foi instalado o golpe, que pessoas achavam que a gente tinha vencido pela guerrilha e tal.

O PCB, não. Eles têm mais força do que a gente. Se a gente entrar na guerrilha agora, nós não temos força suficiente, nós vamos ser aniquilados. Como foi. As histórias, terríveis, terríveis. Foram quase aniquilados.

E essa dissidência, do meu ponto de vista, era tudo no secundário, não era no primário. Porque o primário o que é? Transformar esse país, criar um tipo de sociedade diferente, um tipo de sociedade onde você pode participar, onde você pode realmente ser gente.

'(O primário é) Transformar esse país, criar um tipo de sociedade diferente, um tipo de sociedade onde você pode participar, onde você pode realmente ser gente.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES '(O primário é) Transformar esse país, criar um tipo de sociedade diferente, um tipo de sociedade onde você pode participar, onde você pode realmente ser gente.'

OP - A divergência era na forma de agir?

Natividade - Na época da ditadura: vamos para a guerrilha, vamos para a guerrilha. Você pega cem pessoas, aí vai fazer uma guerrilha num país imenso desses. Aí, desses grupos que entraram na guerrilha, cada um tinha uma visão diferente de como seria essa guerrilha. Foi tudo aniquilado, esmagado, terrívelmente esmagado.

OP - Mas era difícil se entender, apesar de secundário.

Natividade - Não, e não se entendia, não. Não se entendia, não. Cada um fazia o que achava conveniente. Infelizmente. E aí, como a gente diz, sempre tem o dedo para dividir. Já imaginou se esse povo estivesse todo junto, mesmo com repressão. Estava bem diferente, né?

OP - A sua atuação se voltou para o meio sindical.

Natividade - É, aí quando foi em 1978, nós formamos uma chapa do Sindicato dos Bancários, disputamos a eleição, ganhamos da delegada que estava lá há muito tempo.

OP - Quando a senhora se tornou bancária?

Natividade - Em 1974, no Banco do Brasil. Eu entrei no Ipu, depois vim para cá (Fortaleza). Foi no Banco do Brasil do Ipu. Nós formamos uma chapa, fomos vitoriosos e ficamos lá durante três mandatos.

Fizemos um bom trabalho. Nós tínhamos um grupo no Brasil todo e tivemos muitas conquistas, muito interessante essa luta que nós tivemos no movimento sindical.

Maria da Natividade conversa com Érico Firmo(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Maria da Natividade conversa com Érico Firmo

OP - Essa eleição dos bancários era ainda na ditadura, na mesma época em que ocorria o movimento dos operários do ABC. Como era, ainda na ditadura, o movimento sindical se reorganizando?

Natividade - Exatamente. Aqui no Ceará, aqui e no Brasil todo, nós conseguimos um feito bem interessante. Nós conseguimos, quando ganhamos o sindicato, nós juntamos os cacos do que tinha ainda de pessoas autênticas, de pessoas realmente comprometidas com o movimento e fizemos, assim, uma frente grande, sabe? E essa frente foi bem interessante.

Depois transformou-se em uma frente sindical e no Brasil todo aconteceu isso. E foram fazendo essa frente e nós resgatamos o movimento sindical. Foi um resgate histórico.

OP - O Sindicato dos Bancários não deixou de existir durante a ditadura, mas chegou a sofrer intervenção, não é?

Natividade - Olha, teve intervenção, em 1964, José de Moura Beleza era o presidente, era um cara muito bacana, muito bom. Ele foi preso, inclusive. Foi até candidato a prefeito de Fortaleza (em 1962).

Ele ficou sem os direitos políticos, e ficou morando em São Paulo, eu acho que Ribeirão Preto era a cidade que ele morava. Depois vieram aquelas intervenções que eles fizeram lá. Botavam quem eles queriam, não tinha eleição direito, não tinha nada, né? Só mesmo pra constar.

OP - Como conseguiram montar a chapa e ganhar o sindicato?

Natividade - Foi meio complicado, porque era ditadura, não tinha nem a anistia ainda, a anistia foi logo depois. Mas a ditadura, oficialmente, ela terminou em 1985, isso era 1978. Nós conseguimos, a ferro e fogo, pegar pessoas para formar essa chapa. Formamos a chapa.

'(O Sindicato dos Bancários era) referência e a gente era um polo centralizador, tudo que acontecia, acontecia lá dentro do sindicato.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES '(O Sindicato dos Bancários era) referência e a gente era um polo centralizador, tudo que acontecia, acontecia lá dentro do sindicato.'

Não era aquela chapa que a gente queria, de pessoas mais ideologicamente formadas. Mas foi o possível. E com essa chapa, nós fizemos. Pegamos o sindicato estraçalhado, não tinha nada. Para você ter ideia, a posse foi em agosto, 9 de agosto.

Quando foi em novembro, dezembro, ninguém tinha dinheiro para pagar décimo terceiro (salário). Não tinha dinheiro, não tinha nada para pagar o décimo terceiro. Até o médico que trabalhava lá, doutor Silva, ele emprestou dinheiro pra gente (risos).

Aí veio o imposto sindical e nós começamos a sindicalizar gente, começamos a sindicalizar, sindicalizar, o sindicato cresceu, se transformou no maior sindicato aqui do Norte e Nordeste.

OP - Se tornou referência até para a reorganização dos outros sindicatos.

Natividade - Referência e a gente era um polo centralizador, tudo que acontecia, acontecia lá dentro do sindicato.

 

 

Na agência do Ipu, do interior, nós tínhamos lá, salvo engano, 118 funcionários no Banco do Brasil. Hoje tem 6.

- Maria da Natividade

 

OP - A chapa conseguiu reunir esses grupos que eram separados?

Natividade - Não tinha nem grupo, não estou dizendo? Não tinha mais, estava estraçalhado. Todo mundo com medo, sabe? Tinha duas pessoas, uma até do PCdoB, mas estava com os direitos políticos cassados, não podia nem se filiar ao sindicato. E pegando pessoas, bancários comuns, pessoas boas, pessoas corretas, pessoas autênticas, mas que não eram filiadas a nenhum partido.

OP - A categoria dos bancários passou por muitas transformações, primeiro com os caixas eletrônicos, hoje com os aplicativos, enfim. Mas nessa época, ser bancário era uma categoria com status na sociedade. Isso também foi um fator que deu respaldo para o sindicato para ir para o enfrentamento, ir para a sociedade?

'Hoje tem pouco bancário, pouquíssimo bancário. Quantas vezes você vai à sua agência? Não precisa.'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'Hoje tem pouco bancário, pouquíssimo bancário. Quantas vezes você vai à sua agência? Não precisa.'

Natividade - Porque tudo era manual. Eu fui trabalhar lá no Ipu, uma agência do Ipu, do interior, uma cidade de 40 e poucos mil habitantes (41.081, conforme o Censo 2022), nós tínhamos lá, salvo engano, 118 funcionários no banco. Hoje tem 6 (risos).

Naquela época, tudo era manual. Hoje você pega aqui o seu celular, você manda um pix para quem você quiser, a pessoa recebe na hora. Ia mandar uma ordem de pagamento: para quem é? "Para fulano". Escrevia. Ia num malote, o malote chegava a Fortaleza, daqui ia para o destino, 15 dias depois a pessoa recebia aquela ordem de pagamento.

Você imagina o que é isso? Tudo manual? Aí, realmente, era uma categoria forte, grande, poderosa. Hoje tem pouco bancário, pouquíssimo bancário. Quantas vezes você vai à sua agência? Não precisa. (Pega o celular) Olha aqui, não sei o que é isso aqui, você faz tudo numa coisa dessa aqui. Tudo, tudo, tudo.

OP - Nas eleições seguintes, já tinha os grupos se reorganizando.

Natividade - Já, já tinha os grupos se reorganizando, nós tivemos oposição. Aí na segunda também, oposição.

OP - E depois, quando se organiza a CUT (Central Única dos Trabalhadores), há a divisão dos grupos que estavam na diretoria até então.

Natividade - É, porque nós começamos a organizar uma comissão nacional pró-CUT. São histórias longas, e eu tenho que contar essa história depois. Porque eu participei desde o começo. Nós criamos em nível nacional uma comissão nacional pró-CUT. Tinha uns estados em que a gente já estava se organizando com o que restou da ditadura, e em nível nacional, essa comissão nacional pró-CUT.

Aí houve um racha lá, um racha horrível. Foi uma coisa, assim, terrível. Isso é uma coisa muito séria, tem que ser contada essa história bem direitinho, agora o espaço é muito pequeno pra gente contar a história verdadeira, como é que foi. Aí houve isso aí.

'(O cerne das divergências em relação ao CUT) O cerne foi esse, poder, mas para chegar a isso tinha as nuances, sabe?'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES '(O cerne das divergências em relação ao CUT) O cerne foi esse, poder, mas para chegar a isso tinha as nuances, sabe?'

Depois, nós tentamos fazer outra central sindical, mas também não tivemos êxito, porque tinha o Joaquinzão (Joaquim dos Santos Andrade) lá em São Paulo, que era um pelegão, do Sindicato dos Metalúrgicos, mas que tinha um poder muito grande. Era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, era um sindicato imenso, o maior sindicato da América Latina, muito poder.

Eu sei que não deu certo, acabou não dando certo (Joaquinzão liderou a criação da Central Geral dos Trabalhadores, CGT). E a CUT ficou só, sozinha, com muito apoio, com muita coisa internacional. Aí já vinha também, aí criaram o PT, mas aí já é outra história, que é uma história meio complicada.

OP - Mas o que foi o cerne da divergência em relação à CUT?

Natividade - Poder. O cerne foi esse, poder, mas para chegar a isso tinha as nuances, sabe? Mas era só poder.

OP - De controle dos sindicatos?

Natividade - Controle dos sindicatos, sim. Controle dos sindicatos, sim.

OP - Nessa época já ocorria a reorganização dos partidos, o PT surgindo, outros partidos, mas os partidos comunistas não eram permitidos ainda, né?

Natividade - Não. Aí depois legalizou-se o Partido Comunista, a Constituinte legalizou o Partido Comunista, mas o Partido Comunista ainda esfacelado ainda, muito esfacelado. Como você bem salientou no começo, tinha aquele estigma ainda muito forte. Quando foi em 1990, a gente estava já se fortalecendo, o partido, aí houve um racha, em 1992. Lá se vai de novo, começa tudo de novo.

Maria da Natividade é militante do PCB, foi presidente do Sindicato dos Bancários e candidata a governadora do Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Maria da Natividade é militante do PCB, foi presidente do Sindicato dos Bancários e candidata a governadora do Ceará

OP - Antes da Constituição, o PCB estava abrigado dentro do PMDB ainda?

Natividade - É, a gente se abrigou dentro do PMDB, porque a gente não tinha legenda e o partido era clandestino. Todo mundo era filiado ao PMDB. A gente dizia que a gente era os carregadores de piano do pessoal do PMDB (risos). Carregando os pianos deles, para eles tocarem lá em cima.

OP - A senhora participou da organização do PSDB aqui também, em 1988?

Natividade - Olha, foi o seguinte. Nós tivemos várias divergências também dentro do PCB, tá entendendo? E aí a Moema São Thiago tinha brigado com o PDT, era do Brizola, sabe? E surgiu o negócio do PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira).

Ela me chamou, eu passei um tempo lá com ela, a gente ficou lá. Uma época, entendeu? Mas é aquela história, né? Muita gente saiu, o PCB se esfacelou. Eu gosto muito da Moema. Não obstante, ela teve um passado de luta e de glória, depois brigou com o Brizola. Mas são aqueles partidos burgueses, sabe? Que a gente estava neles porque não tinha para onde ir.

OP - Depois a senhora voltou para o PCB.

Natividade - PCB.

OP - E houve essa divisão de 1992. Dá para dizer que essa foi das piores?

Natividade - Olha, essa foi... Ninguém sabe nem qual foi pior. Com o Prestes foi terrível, né? Porque todo dia voltando, com a anistia, dava para a gente ter reconstruído um partido muito bom, aí não deu. Aí, em 1992, racha tudo de novo, e ficou muito pouca gente no PCB.

Para resgatar a sigla, precisou entrar na Justiça, precisou para fazer uma série de coisas. Porque resgatou-se a sigla e hoje ainda está batalhando! Para esse partido. O partido está crescendo! Cheio de jovens, está muito bom, sabe? Quer dizer, está num crescimento bem interessante.

OP - Como foi ser candidata a governadora, em 2010?

Natividade - A gente se candidata, a gente lança sempre chapa, que é para ter oportunidade para dizer para as pessoas que nós estamos vivos e que a nossa proposta é essa. Não entra muito na cabeça das pessoas, de repente, não, mas fica aquela visão.

OP - Tarcísio Leitão era candidato a senador.

Natividade - Era, Tarcísio Leitão.

OP - Era outra figura que estava presente na reorganização do Sindicato dos Bancários.

Natividade - Toda vida, toda vida.

OP - E hoje, o que o PCB defende?

'Qual é a perspectiva desse jovem, me diga? Principalmente de periferia, qual é a perspectiva que ele tem?'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES 'Qual é a perspectiva desse jovem, me diga? Principalmente de periferia, qual é a perspectiva que ele tem?'

Natividade - Olha, o que nós defendemos sempre é o socialismo. Porque, me diga uma coisa, como é que está essa sociedade? Hoje, nós estamos vendo, quem manda no mundo hoje são esses grandes. Tem uma família que tem um terço do PIB do mundo, os Rothschild. Um terço do PIB do mundo. Sete famílias, riquíssimas, casam entre si para não dividir.

Aí nós temos os reis, as cabeças coroadas da Europa. Até o Vaticano está nesse meio aí. Vamos invadir fulano. Quem manda no mundo. Está se criando outra tendência aí, que é mais à direta do que essa. São dois polos, tudo dentro do capitalismo.

Agora, me diga uma coisa. Nós temos hoje uma sociedade, não só aqui. Aqui nós somos um país periférico. Nós estamos em crescimento, diz que nós somos emergentes, mas a gente não passa disso. Nós somos um país riquíssimo, mas por todas as circunstâncias, nós temos 70% de uma população carente.

Qual é a perspectiva desse jovem, me diga? Principalmente de periferia, qual é a perspectiva que ele tem? E de classe média também, qual é a perspectiva? O que que ele vai fazer da vida? Ele termina a faculdade, ele conclui. Desses 70%, uns 20% logram êxito, naquele esforço imenso que eles fazem.

Quem está absorvendo esse pessoal? Nós temos hoje no Brasil esses comandos vermelhos, disso, aquilo, aquilo outro, que está absorvendo esses jovens. A sociedade, o capitalismo, ele excluiu demais, concentrou demais e excluiu. Como é que vai para frente um negócio desse? Me diz.

OP - Nessa realidade hoje, que tem Bolsonaro, muita gente dizendo: "Ah, o Lula é comunista", como é que a senhora...

Natividade - Lula nunca foi comunista, Lula é social-democrata, né? (Jair) Bolsonaro além de tudo é doido, né? (Risos) E tá aí o Lula e eu não sei não. Nós temos mais dois anos do governo Lula. O que ele pode fazer é muito pouco. Quer dizer, ele podia fazer mais se ele rompesse com o estabelecido. Aí ele não rompe. Porque a política dele é dentro do capitalismo. E vamos ver aí o que é que dá, né?

Maria da Natividade conversa com Érico Firmo(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Maria da Natividade conversa com Érico Firmo

OP - A senhora falou das divisões que houve desde os anos 1960. A senhora acha que, para a esquerda, podia ser diferente?

Natividade - O mundo era outro se a gente tivesse conseguido isso, né? Eu acho que era outro. Nós somos um país importante na geopolítica do mundo. Um país riquíssimo, o nosso, com uma população superpobre.

OP - Por que as divisões que prevaleceram até hoje?

Natividade - Eu achava muito interessante, o Tarcísio Leitão dizia assim (imitando o jeito de falar com ênfase de Leitão): "O dedo do inimigo lá dentro". Era o dedo do inimigo (risos).

Eu tô terminando de ler o livro Cachorros (Alameda, 2024). Interessantíssimo. Os cachorros eram pessoas que faziam as suas organizações. Depois de uma tortura, de uma coisa, iam servir de informantes para a repressão. Aí eles mesmo chamavam os cachorros, né? Aí joga cachorro dentro de uma organização dessa, de todo jeito, vocês estão entendendo? É fogo.

 

 

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