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Dom Joaquim Mol: "Continuamos com a candeia de Francisco nas mãos a iluminar caminhos"
Reportagem Seriada

Dom Joaquim Mol: "Continuamos com a candeia de Francisco nas mãos a iluminar caminhos"

Nomeado pelo papa Francisco como bispo coadjutor da diocese de Santos, referência na Pastoral do Povo da Rua e no debate sobre comunicação e direitos humanos na Igreja, dom Joaquim Mol fala sobre o legado do pontífice, os rumos da teologia da libertação na América Latina e a missão de construir uma Igreja sinodal e profética em tempos de divisão

Dom Joaquim Mol: "Continuamos com a candeia de Francisco nas mãos a iluminar caminhos"

Nomeado pelo papa Francisco como bispo coadjutor da diocese de Santos, referência na Pastoral do Povo da Rua e no debate sobre comunicação e direitos humanos na Igreja, dom Joaquim Mol fala sobre o legado do pontífice, os rumos da teologia da libertação na América Latina e a missão de construir uma Igreja sinodal e profética em tempos de divisão
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Em um momento de luto para a Igreja Católica com a morte do Papa Francisco, Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, nomeado em fevereiro pelo pontífice como bispo coadjutor da diocese de Santos, em São Paulo, compartilha reflexões profundas sobre o legado do papa latino-americano que sonhou uma Igreja pobre para os pobres.

Em entrevista concedida algumas semanas depois de uma passagem por Fortaleza, Dom Mol — reconhecido por sua atuação junto aos mais vulneráveis e sua visão progressista — traça caminhos para o futuro da teologia da libertação.

O bispo referencial nacional para a Pastoral do Povo da Rua também comenta sua chegada a Santos depois de quase 20 anos como bispo auxiliar da arquidiocese de Belo Horizonte. E reforça, ainda, a necessidade de uma comunicação que teça relações de fraternidade em uma sociedade marcada por fragmentações.

Para Dom Joaquim Mol, o desafio da Igreja é seguir iluminando os lugares escuros empunhando a “candeia de Francisco”.

 

O POVO+ — Dom Mol, com a partida do Papa Francisco, o mundo se despediu de uma liderança espiritual que marcou profundamente a Igreja com sua postura acolhedora, seu compromisso com os mais vulneráveis e sua coragem profética. Como o senhor avalia o legado de Francisco e de que maneira sua mensagem continuará guiando o caminho da Igreja — inclusive o seu próprio ministério?

Dom Joaquim Mol — O legado do Papa Francisco é de uma amplitude difícil de mensurar. Vamos precisar de tempo para identificar tudo o que ele deixou e mais tempo ainda para colocar em prática ao menos uma parte do seu legado.

Há um legado eclesial, de reforma da Igreja, que só se realizará pela força da conversão da Igreja, das pessoas, dos processos e das funções, dos membros da hierarquia e dos leigos e leigas, para que a Igreja seja pobre para os pobres, expresse a misericórdia de Deus e comprometa-se, efetivamente, com a ecologia integral.

Há um legado deixado para as sociedades, para que aceitem o imperativo da ética, igualdade e da fraternidade que faz de todos irmãos e irmãos; é como revolver o humus da transformação da sociedade para que nasçam coisas novas.

Há um legado para o planeta/humanidade, ou seja, um salvando o outro, porque sem planeta não há humanidade e sem humanidade não há casa comum.

É um legado que pode ser resumido em um silogismo que ele criou: “primeirear”.

ParaTodosVerem: Dom Joaquim Mol, bispo da Igreja Católica, aparece em pé apoiado em uma cadeira. Ele é um homem branco idoso, alto, magro, calvo e usa óculos de grau. Como não está em nenhuma celebração, veste uma camisa branca e uma calça preta, sem a batina(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA ParaTodosVerem: Dom Joaquim Mol, bispo da Igreja Católica, aparece em pé apoiado em uma cadeira. Ele é um homem branco idoso, alto, magro, calvo e usa óculos de grau. Como não está em nenhuma celebração, veste uma camisa branca e uma calça preta, sem a batina

Ele primeireou, pôs-se à frente, envolveu-se, acompanhou, esticou horizontes, venceu obstáculos: primeiro papa latino-americano, primeiro jesuíta, primeiro inserir mulheres e leigos em funções antes só ocupada por homens e clérigos.

Primeiro a definir a evangelização como “tornar o Reino de Deus presente no mundo”, primeiro a processar e punir hierarcas da Igreja envolvidos em escândalos, primeiro, às vésperas de alguns natais, a reunir a cúria romana para “lavar roupas”.

Ele acentuou de maneira contundente a centralidade de Jesus na Igreja, o cuidado dos pobres e do planeta.

Ele avançou muito, mas a estrutura da Igreja continua pesada e resistente. Mas continuamos com a candeia de Francisco nas mãos a iluminar caminhos.

Esse pode ser o projeto de todos aqueles que exercem ministérios na Igreja, servidora da humanidade, como ensina o Vaticano II: empunhar candeias em lugares escuros.

OP+ — A humanidade de Francisco, sempre tão visível, inclusive nas fragilidades do corpo, deixou um testemunho poderoso. Que lições mais profundas ficam para a Igreja e para os fiéis a partir da vida e da morte do Papa? Como seguir encarnando uma Igreja próxima dos pobres, como ele tanto sonhou?

Dom Joaquim Mol — Sendo pobre para e com os pobres. Não tem outro jeito. O caminho dos pobres é o caminho para todos. A força de Francisco estava em que ele era autêntico, associava sua palavra aos seus gestos e vice-versa.

Isso o fez uma “encíclica” viva e ambulante; mas ele não era o caminho, ele indicava o caminho, que é o Evangelho de Jesus.

Igreja próxima dos pobres acudindo-os e colaborando nas transformações da sociedade e do mundo, não é uma escolha para ninguém da Igreja, precisa ser uma convicção, um projeto de vida, porque é um compromisso assumido, antes, por Jesus Cristo.

ParaTodosVerem: Dom Joaquim Mol aparece de frente para o papa Francisco, ambos com os braços apoiados um no outro em saudação. Dom Mol foi nomeado pelo papa em fevereiro de 2025, quando o pontífice já encontrava-se internado para tratar problemas respiratórios(Foto: Reprodução/Redes sociais)
Foto: Reprodução/Redes sociais ParaTodosVerem: Dom Joaquim Mol aparece de frente para o papa Francisco, ambos com os braços apoiados um no outro em saudação. Dom Mol foi nomeado pelo papa em fevereiro de 2025, quando o pontífice já encontrava-se internado para tratar problemas respiratórios

OP+ — Em sua trajetória, o senhor já declarou que “malditas sejam todas as elites”, citando Chomsky ao comentar o desprezo de parte da elite brasileira pelos pobres. Essa percepção se manteve desde que o senhor assumiu a missão como bispo referencial da Pastoral do Povo da Rua? Na sua análise, o que mais precisa ser transformado hoje: a estrutura social que empurra as pessoas para a rua ou a mentalidade que as invisibiliza?

Dom Joaquim Mol — A aparofobia, repulsa, nojo, rechaço aos pobres está presente no mundo e nunca foi tão visível. Ela é praticada no Brasil sobretudo por parte da elite brasileira, compostas de segmentos de classes médias e de classes altas, agarradas ao modelo “casa grande e senzala”.

Basta andar pelas cidades e campos no Brasil e constatar. O povo em situação de rua no Brasil soma mais de 300 mil pessoas.

É preciso fazer não pequenas reformas na sociedade brasileira, mas transformações substanciais, em todos os setores, para que ela seja visivelmente fraterna e solidária, mas sobretudo justa, não um pouco justa, mas simplesmente justa.

OP+ — Sua chegada à Diocese de Santos como bispo coadjutor representa uma nova etapa. O que o senhor espera construir com a comunidade local e de que forma pretende dar continuidade ao trabalho de Dom Tarcísio Scaramussa?

Dom Joaquim Mol — Já tenho o Povo de Deus da Diocese de Santos no meu amor pastoral e evangelizador, na minha disposição para escutar muito e verdadeiramente, escutar indo ao encontro, vendo, contemplando, descobrindo riquezas, servindo, tocando a dor dos que sofrem, certo de que é o toque na carne de Cristo, vivendo assim a alegria de evangelizar.

Dom Tarcísio é um irmão de muitos anos. Conhecer a realidade da Diocese junto com ele, que a conhece tão bem, será um exercício de sinodalidade e um contentamento pastoral.

OP+ — Dom Mol, o senhor esteve em Fortaleza, capital de uma terra profundamente atravessada pela fé popular que é o Ceará. São José, Padre Cícero, Menina Benigna, São Francisco de Canindé e os festejos juninos em Barbalha são apenas algumas expressões disso. Que impressões guarda do povo cearense e de sua religiosidade? O que mais o marcou nessa última visita?

Dom Joaquim Mol — Não pude ter contato com a prática da religiosidade do povo do Ceará. Sei, todavia, que é um povo sedento da vivência da fé, que o sustenta na vivência do cotidiano muitas vezes desafiadores e quase insuportáveis.

Nesta visita fui encontrar-me com as pessoas que dão vida ao Movimento Igreja em Saída, tão inusitado quanto bem definido: desde 2013, quando Papa Francisco, agora falecido e agraciado especialmente pelo Senhor, iniciou o seu pontificado.

Existe também o Observatório Eclesial Brasil, que desde a mesma época, dedica-se a analisar em profundidade a Igreja sob a sabedoria e os ensinamentos de Francisco.

Marcou-me muito um encontro com líderes de todos os segmentos da Igreja, leigas e leigas, consagrados e consagradas, ministros ordenados; homens e melhores, mais novos e mais velhos, todos numa sinfonia em tom maior de esperanças sendo materializadas na prática do amor, da justiça e da paz.

ParaTodosVerem: O bispo Dom Mol aparece com um livro em uma das mãos enquanto lê. A outra mão está levantada com a palma a mostra, como se orasse para alguém(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA ParaTodosVerem: O bispo Dom Mol aparece com um livro em uma das mãos enquanto lê. A outra mão está levantada com a palma a mostra, como se orasse para alguém

OP+ — Sua visita a Fortaleza foi motivada por uma palestra sobre os caminhos da teologia da libertação na América Latina e no Caribe. Nesse contexto em que perdemos uma das maiores vozes pastorais do continente, como o senhor enxerga os rumos da teologia da libertação hoje? Quais caminhos ela ainda pode e deve abrir?

Dom Joaquim Mol — Enquanto houver pobres e injustiçados, pessoas feridas em sua dignidade e em sua inteireza humana, trabalhando pela libertação de todas as escravidões, do pecado e da morte, a libertação se escreverá em forma de teologia, como uma necessidade de saciar a sede e a fome de Deus e da irmandade entre as pessoas.

Deus nos fez para a liberdade, pois é para a liberdade que Cristo nos liberou. Toda a história bíblica da salvação é história da libertação, que chega ao seu ponto alto quando do alto da cruz Jesus se entrega completamente, para completamente ressuscitar, de modo que, pelo batismo, morremos com ele para o pecado e com ele ressurgimos para a vida nova.

Os rumos da teologia da libertação estão vinculados, essencialmente, com as libertações que são praticadas. É preciso libertar para abrir horizontes para essa teologia.

OP+ — Bispo, o senhor é conhecido por seu posicionamento claro em defesa dos direitos humanos e da justiça social. Em tempos de polarização, como equilibrar esse compromisso profético com a necessidade de diálogo dentro de uma Igreja que abriga também setores mais conservadores?

Dom Joaquim Mol — O compromisso, ou melhor dizendo, a dimensão profética da fé é inerente ao batismo, quando todos participam do mistério de Jesus como sacerdotes (serviço do altar, dos sacramentos), profetas (serviço da libertação das escravidões e do anúncio do Reino) e pastoral (serviço do outro, da educação da fé).

Se a sociedade hoje, como em outros tempos, mais do que polarizada, está dividida, assim como está fraturada a Igreja, os esforços de diálogos para ajudar na recomposição de uma nova sociedade e de uma Igreja sinodal, com espaço para todos, não deve ser visto como antagônico ao compromisso profético, antes, é o diálogo que se reveste de profecia.

Todo diálogo a favor da Igreja Conciliar, de uma ou de outra forma, é profético, porque cimenta na prática da vida o desejo profundo de Jesus para que todos sejam um.

OP+ — A comunicação é uma bandeira que o senhor carrega com força, inspirada inclusive na noção do Papa Francisco sobre a “arte da tecelagem”. Como o senhor vê a comunicação como ferramenta de comunhão e de escuta em tempos tão fragmentados?

Dom Joaquim Mol — A comunicação é mais do que uma ferramenta, ela é estratégica; como ferramenta ela facilitar o tecimento das relações, que são consolidadas na medida em a comunicação incorpora as relações e as relações incorporam a comunicação.

A contínua e renovada implementação da eclesiologia do Concílio Vaticano II, tarefa permanente da Igreja, ganha com a comunhão que a ajuda a ser Igreja Conciliar, dado que a comunhão será a communio em favor da Igreja concilium.

Nesse sentido, podemos afirmar que a escuta favorece a communio, e a escuta entendida como atendimento ao que é escutado, favorece a concilium.

OP+ — Em um mundo digital onde as redes sociais moldam comportamentos e opiniões, inclusive no campo religioso, o senhor tem refletido sobre a atuação dos chamados “influenciadores católicos”. Que desafios e possibilidades essa nova paisagem oferece à evangelização? Como manter a essência da mensagem do Evangelho nesse contexto?

Dom Joaquim Mol — A influência digital gerou o profissional chamado influenciador digital. Ser influenciador é, antes de qualquer coisa, uma profissão, que implica acordo, contrato, patrocínio, investimento, lucro.

Muitas pessoas ganham a vida sendo influenciadores digitais; outras muitas ficam ricas e riquíssimas praticando a influência digital; e há os que, além do poder econômico, buscam o poder político.

Os influenciadores digitais católicos são também profissionais. Eles têm um projeto pessoal, às vezes associado a outros influenciadores semelhantes e às vezes recebendo orientação de seus fomentadores com vistas à monetização do que fazem e de seus condicionadores políticos.

ParaTodosVerem: Dom Joaquim aparece de perfil conversando, com expressão sorridente(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA ParaTodosVerem: Dom Joaquim aparece de perfil conversando, com expressão sorridente

O discurso religioso, da fé e da devoção é completamente livre e ao gosto dos consumidores desse produto. Dito dessa forma, a Igreja não precisa de influenciadores digitais da fé ou da religião.

Mas se pensarmos em influenciadores que aceitem ser evangelizadores digitais católicos, que seguem as orientações da Igreja, por meio da CNBB, que sejam profunda e verdadeiramente comprometidos com o Concílio Vaticano II, com o magistério da Igreja, com sua doutrina, em estrita comunhão com os seus bispos locais e sejam eles mesmos preparados para o exercício desse tipo de evangelização, farão grande bem. Simples assim.

 

 

 

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