Perda de aproximadamente R$ 50 milhões em receitas. O valor é a soma da estimativa negativa de Ceará e Fortaleza. A cifra representa o impacto e as mudanças provocadas pela pandemia do novo coronavírus um ano depois dos primeiros casos no Estado. A chegada da Covid-19 atingiu em cheio o futebol cearense, que precisou se adaptar à realidade de estádios vazios, protocolos sanitários rígidos e cofres esvaziados.
A paralisação dos jogos durou quatro meses, entre março e julho. Apesar da retomada do calendário, a proibição de público tirou uma das principais receitas para os clubes: a bilheteria. Concomitantemente, houve perda com programa de sócio-torcedor, lojas e patrocinadores. O impacto em equipes com menor investimento foi ainda maior, com a necessidade de intervenção da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), federações e órgãos públicos para amenizar o prejuízo e garantir a participação em competições.
No cenário de mudança, o presidente do Ceará, Robinson de Castro, explica que o clube precisou buscar crédito para fechar o fluxo financeiro, intensificar as ações visando o torcedor e gerar novas receitas. "A bilheteria foi a que teve o maior impacto. O sócio até manteve boa arrecadação, não vai ser o dobro do que tivemos (em 2019), mas se tornou aceitável. A estimativa é de perda de R$ 20 milhões. Mesmo assim, a gente termina o ano de forma sadia. A gente tende a ter superávit nesse fim de ano, mesmo com o problema financeiro", afirmou o dirigente.
O mandatário alvinegro ressalta a importância da gestão no enfrentamento da crise provocada pela pandemia. Para ele, o futebol cearense é escola para o Brasil. "Não só Ceará e Fortaleza, você vê exemplos de clubes menores que acabam seguindo uma escola, enraizando boas práticas."
Camilo (ao centro), recebeu Robinson de Castro e Marcelo Paz (à direita)
A principal mudança no campo desportivo neste período de um ano, pontua Robinson, foi a evolução de clubes considerados menos tradicionais no cenário nacional. "A pandemia acelerou processos. Acho que houve uma repaginação, foi determinante para alguns clubes. Equipes como o Ceará vão estar em vantagem". Dentro da revolução que o futebol teve de enfrentar, essa nova hierarquia de forças tende a ser um dos únicos aspectos que deve ficar, depois de controlada a crise como um todo.
Presidente do Fortaleza, Marcelo Paz reforça dois impactos significativos. O primeiro na atmosfera do jogo, devido aos estádios vazios. "Em todos os momentos, nos mais difíceis e de glória, a torcida esteve presente enchendo o estádio. Com a pandemia, não é possível e é um 'dificultador' pra gente. Uma das nossas forças não está", disse ele. Em 2019, o Tricolor teve a segunda maior média de público do Brasil.
O segundo é o aspecto financeiro. "Não só bilheteria, mas diversas rendas com o público, como camarote, ativações comerciais, loja. Chegamos a ter 35 mil sócios. Agora são 12 mil. Houve queda vertiginosa de faturamento do clube. Chega a R$ 30 milhões a perda de receitas", lamenta.
Os dirigentes acreditam que o cenário atual do futebol, resultado da pandemia da Covid-19, não deve mudar em 2021. As perspectivas sobre receitas de bilheterias são pessimistas. "Eu não acredito que tenhamos público em 2021. Só vão ser permitidos grandes públicos, isso inclui o futebol, quando tiver toda a população vacinada. Não vai estar até o fim do ano", projeta Marcelo Paz. "A volta ao estádio é imprevisível", acrescentou Robinson.
Mauro Carmélio aponta um estreitamento de laços entre federação, Governo e Clubes
O Governo do Estado, por meio da Secretaria do Esporte e da Juventude (Sejus), e a Federação Cearense de Futebol (FCF) estreitaram laços e atuaram em parceria na condução do esporte junto aos clubes em meio à pandemia da Covid-19. Entre as ações, houve o custeio de testes para os clubes, a elaboração de protocolo sanitário, as intervenções pela retomada dos jogos e a ajuda a equipes com menor investimento.
Um ano após as primeiras confirmações de contaminação no Estado, os desafios de conduzir o futebol cearense continuam, como a falta de público nos estádios. O veto à presença de torcedores nas arenas faz parte do protocolo de retomada do esporte. Por enquanto, o retorno das torcidas sequer é cogitado no Ceará.
"Nós não estamos nem ventilando essa possibilidade. Estamos aguardando a autoridade sanitária. Todos os passos são dados com o aval da autoridade sanitária. Infelizmente, enquanto não tiver um número muito grande de pessoas imunizadas pela vacina, temos que ter cautela e evitar a aglomeração, pensar na saúde da população e sacrificar um pouco mais a festa do estádio", afirmou o secretário de Esporte do Estado, Rogério Pinheiro.
As pautas de esporte relacionadas à pandemia foram adotadas na rotina do titular da Pasta. Em um ano, as reuniões sobre o assunto viraram constantes na gestão do secretário. O discurso de conscientização se tornou prioridade.
"Esse momento é de mudança. Temos que evitar ao máximo a aglomeração e dar prioridade máxima ao esporte individual e aberto. Contribuímos com federações, ligas e ONGs para a reabertura consciente. Participamos de várias reuniões. Fomos participando de intermediações até que pudéssemos construir o entendimento com validade da autoridade sanitária", resume, sobre a rotina durante a crise.
Presidente da FCF, Mauro Carmélio explica que houve mudança na administração do futebol após o impacto da Covid-19. Além do aspecto financeiro, o foco dos clubes passou a ser a execução do esporte e o controle da pandemia.
"Dentro do futebol cearense, não teve impacto maior de contágio, desde os clubes da Série A ao amador. Estamos sempre orientando e conversando. Foi um novo modo de administrar. Fazíamos futebol para os torcedores (no estádio), mas não temos mais. O torcedor não pode ficar mais no estádio vendo com seus olhos, admirando e adorando os jogadores. É uma situação totalmente diferente."
Mauro ressalta a existência de problemas financeiros nos clubes, decorrentes da falta de público, mas evita fazer qualquer projeção sobre a retomada dos torcedores aos estádios. Planejar a volta das torcidas no atual cenário é irresponsabilidade, resume o presidente da FCF.
"Está muito caro, as despesas são grandes. O Governo liberou o pagamento de aluguel do estádio (Castelão). A situação com patrocinadores está difícil para os clubes. Com responsabilidade e cautela, vamos aperfeiçoar o trabalho que vem sendo feito desde março do ano passado para que tenhamos um futebol seguro", disse ele.
Ygor de Castro, torcedor do Ceará, durante partida no Castelão antes da pandemia
Um ano de saudade. É o sentimento que representa os torcedores impedidos de ver e apoiar a equipe do coração presencialmente no estádio. O Castelão, palco de festas calorosas com uso de mosaicos, bandeirões e artefatos pirotécnicos, perdeu parte fundamental da alegria vivenciada na partida de futebol com arquibancadas vazias. O tom silencioso do Gigante da Boa Vista em meio à pandemia da Covid-19 soa estranho para um ambiente que se acostumou a viver de barulho, comemorações, pulos e gritos.
Segundo maior estádio da Capital, o Presidente Vargas viveu intensa atividade durante a primeira onda do novo coronavírus. Mas nada de jogo: o equipamento foi transformado provisoriamente em hospital de campanha.
Com a proibição de público nos estádios, os torcedores precisaram se adaptar a nova rotina. A televisão se tornou a companheira dos fanáticos para acompanhar o clube querido. Em vez da arena, o ambiente restrito de casa passou a ser o cenário principal para desafogar as paixões.
Gloria Emanuelle tem a tatuagem do Leão no braço
Torcedora do Fortaleza, a vendedora Gloria Emanuelle, 21 anos, perdeu um dos principais prazeres do cotidiano. "Era o momento de esquecer o estresse. O mais cruel foi essa questão de não poder nem assistir o jogo do seu time presencialmente. Tudo pra mim gira, em grande parte, em torno do Fortaleza. Foi bem difícil", conta ela.
Emanuelle passou a assistir os jogos do Tricolor em casa ou na residência de amigos. Um ano sem pisar no Castelão, ela sente saudade até do "empurra-empurra" para entrar no estádio em partidas de grande público.
"Pra mim, a maior emoção é estar ali torcendo, vibrando com o nosso time, o calor humano. Eu nunca deixava de assistir os jogos no estádio. Era lei", afirma.
Torcedor do Ceará, o administrador Ygor de Castro, 25 anos, conta que sempre surge o assunto sobre a saudade de ir ao estádio nos grupos de torcedores no WhatsApp. Após um resultado importante, alguém levanta o questionamento: "E se esse jogo tivesse tido torcida?".
"O que mais sinto saudade é do momento do gol. É bem diferente no estádio, a gente pula, abraça quem não conhece. Em casa, a gente levanta da cadeira, faz uma comemoração", comenta ele.
A rotina do torcedor alvinegro foi impactada com a volta do futebol sem público. "É a pior parte. Tinha dia de jogo que eu já ia para o trabalho levando uma roupa na bolsa para ir depois ao estádio. Havia aquela sensação: 'hoje vai ter jogo e eu vou estar lá'. A televisão não consegue passar a mesma emoção."
Paulão treina em casa esperando a retomada da temporada
Protagonistas da partida de futebol, os jogadores sofreram o impacto direto da pandemia da Covid-19. Rotina alterada, adesão ao rígido protocolo, testes semanais, salários reduzidos e estádios vazios estão entre as mudanças no cotidiano do atleta.
Para o zagueiro e capitão do Fortaleza, Paulão, a relação entre jogador e torcida precisou ser readaptada. Ele lembra ainda todo o processo que os jogadores enfrentaram, desde o período de treinos on-line para manter a forma durante a paralisação, o retorno aos treinamentos por etapas seguindo rígido protocolo até a retomada das partidas dentro de uma nova estrutura por causa do vírus, como a falta de público, uso de máscaras, testes constantes, distanciamento e aferição de temperatura pré-jogo.
"As principais mudanças foram em relação à convivência. Hoje em dia (o que faz falta) é muito mais a presença do torcedor nos estádios. Faz grande diferença. Falando do Fortaleza, a torcida é essencial. Sabíamos que nesse momento o estádio estaria com, no mínimo, 50 mil, 60 mil pessoas", afirma.
O xerife tricolor explica que o ambiente online se tornou o meio de conexão entre jogadores e torcedores. "O torcedor tem sido presente nas redes sociais. A gente recebe o abraço da torcida de maneira muito positiva. Mas sabemos também que tudo isso tem que ser feito, muitas vidas foram perdidas. É essencial essa distância, e estamos dispostos a ficar o tempo que for necessário distante do nosso torcedor para que muitas vidas possam seguir", diz ele.
Presidente do Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado (Safece), Marcos Gaúcho diz que a associação mantém doações de cestas básicas e ajuda financeira para pagamento de conta de energia para atletas em situação de vulnerabilidade. O impacto maior veio no início da pandemia, quando houve bastante desinformação e a paralisação dos campeonatos.
"Rolou desemprego em massa. O impacto financeiro foi imediato. Houve um efeito cascata. O medo e o receio continuam até hoje", comentou Marcos.
O Sindicato mantém ações de conscientização aos atletas. No período de retomada dos jogos, foram realizadas lives para levar informação aos jogadores, como a de explicação dos protocolos sanitários que teve a participação do infectologista Roberto da Justa.
Richard é o goleiro titular do Ceará
Goleiro titular do Ceará, Richard conta sobre as mudanças na rotina e os hábitos incorporados na pandemia. "Quando chego em casa, deixo o sapato do lado de fora. A gente procura tirar as peças de roupa, lavar bem as mãos e sempre tomar banho quando chega em casa. Quando vou ao mercado, esterilizo as coisas quando volta para a casa. No clube, o tempo todo é de máscara. Só tira para ir ao campo. A gente vai ter que se adaptar ao novo mundo", comentou.
Contratado em 2019, o atleta vivenciou a festa da torcida do Ceará nas arquibancadas a favor e contra, quando defendia outras equipes. A falta da massa de torcedores é bastante sentida pelo arqueiro. "Nossa torcida é apaixonado, comparece aos jogos. Creio que esses derrotas que a gente vem tendo (recentemente), esses empates, com o apoio do torcedor poderia ter sido um resultado diferente. É aprender com o momento e se adequar".
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