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O "novo normal" do futebol um ano após o início da pandemia
Reportagem Seriada

O "novo normal" do futebol um ano após o início da pandemia

A chegada da Covid-19 atingiu em cheio o futebol cearense, que precisou se adaptar à realidade de estádios vazios, protocolos sanitários e finanças reduzidas. O cenário atípico promete mexer com a hierarquia do esporte
Episódio 9

O "novo normal" do futebol um ano após o início da pandemia

A chegada da Covid-19 atingiu em cheio o futebol cearense, que precisou se adaptar à realidade de estádios vazios, protocolos sanitários e finanças reduzidas. O cenário atípico promete mexer com a hierarquia do esporte
Episódio 9
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Perda de aproximadamente R$ 50 milhões em receitas. O valor é a soma da estimativa negativa de Ceará e Fortaleza. A cifra representa o impacto e as mudanças provocadas pela pandemia do novo coronavírus um ano depois dos primeiros casos no Estado. A chegada da Covid-19 atingiu em cheio o futebol cearense, que precisou se adaptar à realidade de estádios vazios, protocolos sanitários rígidos e cofres esvaziados.

A paralisação dos jogos durou quatro meses, entre março e julho. Apesar da retomada do calendário, a proibição de público tirou uma das principais receitas para os clubes: a bilheteria. Concomitantemente, houve perda com programa de sócio-torcedor, lojas e patrocinadores. O impacto em equipes com menor investimento foi ainda maior, com a necessidade de intervenção da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), federações e órgãos públicos para amenizar o prejuízo e garantir a participação em competições.

No cenário de mudança, o presidente do Ceará, Robinson de Castro, explica que o clube precisou buscar crédito para fechar o fluxo financeiro, intensificar as ações visando o torcedor e gerar novas receitas. "A bilheteria foi a que teve o maior impacto. O sócio até manteve boa arrecadação, não vai ser o dobro do que tivemos (em 2019), mas se tornou aceitável. A estimativa é de perda de R$ 20 milhões. Mesmo assim, a gente termina o ano de forma sadia. A gente tende a ter superávit nesse fim de ano, mesmo com o problema financeiro", afirmou o dirigente.

O mandatário alvinegro ressalta a importância da gestão no enfrentamento da crise provocada pela pandemia. Para ele, o futebol cearense é escola para o Brasil. "Não só Ceará e Fortaleza, você vê exemplos de clubes menores que acabam seguindo uma escola, enraizando boas práticas."

Camilo (ao centro), recebeu Robinson de Castro e Marcelo Paz (à direita)
Foto: Carlos Gibaja/Gov.CE
Camilo (ao centro), recebeu Robinson de Castro e Marcelo Paz (à direita)

A principal mudança no campo desportivo neste período de um ano, pontua Robinson, foi a evolução de clubes considerados menos tradicionais no cenário nacional. "A pandemia acelerou processos. Acho que houve uma repaginação, foi determinante para alguns clubes. Equipes como o Ceará vão estar em vantagem". Dentro da revolução que o futebol teve de enfrentar, essa nova hierarquia de forças tende a ser um dos únicos aspectos que deve ficar, depois de controlada a crise como um todo.

Presidente do Fortaleza, Marcelo Paz reforça dois impactos significativos. O primeiro na atmosfera do jogo, devido aos estádios vazios. "Em todos os momentos, nos mais difíceis e de glória, a torcida esteve presente enchendo o estádio. Com a pandemia, não é possível e é um 'dificultador' pra gente. Uma das nossas forças não está", disse ele. Em 2019, o Tricolor teve a segunda maior média de público do Brasil.

O segundo é o aspecto financeiro. "Não só bilheteria, mas diversas rendas com o público, como camarote, ativações comerciais, loja. Chegamos a ter 35 mil sócios. Agora são 12 mil. Houve queda vertiginosa de faturamento do clube. Chega a R$ 30 milhões a perda de receitas", lamenta.

Os dirigentes acreditam que o cenário atual do futebol, resultado da pandemia da Covid-19, não deve mudar em 2021. As perspectivas sobre receitas de bilheterias são pessimistas. "Eu não acredito que tenhamos público em 2021. Só vão ser permitidos grandes públicos, isso inclui o futebol, quando tiver toda a população vacinada. Não vai estar até o fim do ano", projeta Marcelo Paz. "A volta ao estádio é imprevisível", acrescentou Robinson.

 

 

Um ano após início de pandemia, volta do público ao estádio não é nem cogitado pelas autoridades

Mauro Carmélio aponta um estreitamento de laços entre federação, Governo e Clubes
Foto: DEÍSA GARCÊZ/Especial para O POVO
Mauro Carmélio aponta um estreitamento de laços entre federação, Governo e Clubes

 

O Governo do Estado, por meio da Secretaria do Esporte e da Juventude (Sejus), e a Federação Cearense de Futebol (FCF) estreitaram laços e atuaram em parceria na condução do esporte junto aos clubes em meio à pandemia da Covid-19. Entre as ações, houve o custeio de testes para os clubes, a elaboração de protocolo sanitário, as intervenções pela retomada dos jogos e a ajuda a equipes com menor investimento.

Um ano após as primeiras confirmações de contaminação no Estado, os desafios de conduzir o futebol cearense continuam, como a falta de público nos estádios. O veto à presença de torcedores nas arenas faz parte do protocolo de retomada do esporte. Por enquanto, o retorno das torcidas sequer é cogitado no Ceará.

"Nós não estamos nem ventilando essa possibilidade. Estamos aguardando a autoridade sanitária. Todos os passos são dados com o aval da autoridade sanitária. Infelizmente, enquanto não tiver um número muito grande de pessoas imunizadas pela vacina, temos que ter cautela e evitar a aglomeração, pensar na saúde da população e sacrificar um pouco mais a festa do estádio", afirmou o secretário de Esporte do Estado, Rogério Pinheiro.

As pautas de esporte relacionadas à pandemia foram adotadas na rotina do titular da Pasta. Em um ano, as reuniões sobre o assunto viraram constantes na gestão do secretário. O discurso de conscientização se tornou prioridade.

"Esse momento é de mudança. Temos que evitar ao máximo a aglomeração e dar prioridade máxima ao esporte individual e aberto. Contribuímos com federações, ligas e ONGs para a reabertura consciente. Participamos de várias reuniões. Fomos participando de intermediações até que pudéssemos construir o entendimento com validade da autoridade sanitária", resume, sobre a rotina durante a crise.

Presidente da FCF, Mauro Carmélio explica que houve mudança na administração do futebol após o impacto da Covid-19. Além do aspecto financeiro, o foco dos clubes passou a ser a execução do esporte e o controle da pandemia.

"Dentro do futebol cearense, não teve impacto maior de contágio, desde os clubes da Série A ao amador. Estamos sempre orientando e conversando. Foi um novo modo de administrar. Fazíamos futebol para os torcedores (no estádio), mas não temos mais. O torcedor não pode ficar mais no estádio vendo com seus olhos, admirando e adorando os jogadores. É uma situação totalmente diferente."

Mauro ressalta a existência de problemas financeiros nos clubes, decorrentes da falta de público, mas evita fazer qualquer projeção sobre a retomada dos torcedores aos estádios. Planejar a volta das torcidas no atual cenário é irresponsabilidade, resume o presidente da FCF.

"Está muito caro, as despesas são grandes. O Governo liberou o pagamento de aluguel do estádio (Castelão). A situação com patrocinadores está difícil para os clubes. Com responsabilidade e cautela, vamos aperfeiçoar o trabalho que vem sendo feito desde março do ano passado para que tenhamos um futebol seguro", disse ele.

 

A saudade de torcer no estádio

 

Ygor de Castro, torcedor do Ceará, durante partida no Castelão antes da pandemia
Foto: Acervo pessoal
Ygor de Castro, torcedor do Ceará, durante partida no Castelão antes da pandemia

Um ano de saudade. É o sentimento que representa os torcedores impedidos de ver e apoiar a equipe do coração presencialmente no estádio. O Castelão, palco de festas calorosas com uso de mosaicos, bandeirões e artefatos pirotécnicos, perdeu parte fundamental da alegria vivenciada na partida de futebol com arquibancadas vazias. O tom silencioso do Gigante da Boa Vista em meio à pandemia da Covid-19 soa estranho para um ambiente que se acostumou a viver de barulho, comemorações, pulos e gritos. 

Segundo maior estádio da Capital, o Presidente Vargas viveu intensa atividade durante a primeira onda do novo coronavírus. Mas nada de jogo: o equipamento foi transformado provisoriamente em hospital de campanha.

Com a proibição de público nos estádios, os torcedores precisaram se adaptar a nova rotina. A televisão se tornou a companheira dos fanáticos para acompanhar o clube querido. Em vez da arena, o ambiente restrito de casa passou a ser o cenário principal para desafogar as paixões.

Gloria Emanuelle tem a tatuagem do Leão no braço
Foto: Aurelio Alves/ O POVO
Gloria Emanuelle tem a tatuagem do Leão no braço

Torcedora do Fortaleza, a vendedora Gloria Emanuelle, 21 anos, perdeu um dos principais prazeres do cotidiano. "Era o momento de esquecer o estresse. O mais cruel foi essa questão de não poder nem assistir o jogo do seu time presencialmente. Tudo pra mim gira, em grande parte, em torno do Fortaleza. Foi bem difícil", conta ela.

Emanuelle passou a assistir os jogos do Tricolor em casa ou na residência de amigos. Um ano sem pisar no Castelão, ela sente saudade até do "empurra-empurra" para entrar no estádio em partidas de grande público.

"Pra mim, a maior emoção é estar ali torcendo, vibrando com o nosso time, o calor humano. Eu nunca deixava de assistir os jogos no estádio. Era lei", afirma.

Torcedor do Ceará, o administrador Ygor de Castro, 25 anos, conta que sempre surge o assunto sobre a saudade de ir ao estádio nos grupos de torcedores no WhatsApp. Após um resultado importante, alguém levanta o questionamento: "E se esse jogo tivesse tido torcida?".

"O que mais sinto saudade é do momento do gol. É bem diferente no estádio, a gente pula, abraça quem não conhece. Em casa, a gente levanta da cadeira, faz uma comemoração", comenta ele.

A rotina do torcedor alvinegro foi impactada com a volta do futebol sem público. "É a pior parte. Tinha dia de jogo que eu já ia para o trabalho levando uma roupa na bolsa para ir depois ao estádio. Havia aquela sensação: 'hoje vai ter jogo e eu vou estar lá'. A televisão não consegue passar a mesma emoção."

 

Futebol sem torcida: como os jogadores encararam se adaptaram ao "novo normal"

 

Paulão treina em casa esperando a retomada da temporada
Foto: DEÍSA GARCÊZ/Especial para O POVO
Paulão treina em casa esperando a retomada da temporada

Protagonistas da partida de futebol, os jogadores sofreram o impacto direto da pandemia da Covid-19. Rotina alterada, adesão ao rígido protocolo, testes semanais, salários reduzidos e estádios vazios estão entre as mudanças no cotidiano do atleta.

Para o zagueiro e capitão do Fortaleza, Paulão, a relação entre jogador e torcida precisou ser readaptada. Ele lembra ainda todo o processo que os jogadores enfrentaram, desde o período de treinos on-line para manter a forma durante a paralisação, o retorno aos treinamentos por etapas seguindo rígido protocolo até a retomada das partidas dentro de uma nova estrutura por causa do vírus, como a falta de público, uso de máscaras, testes constantes, distanciamento e aferição de temperatura pré-jogo.

"As principais mudanças foram em relação à convivência. Hoje em dia (o que faz falta) é muito mais a presença do torcedor nos estádios. Faz grande diferença. Falando do Fortaleza, a torcida é essencial. Sabíamos que nesse momento o estádio estaria com, no mínimo, 50 mil, 60 mil pessoas", afirma.

O xerife tricolor explica que o ambiente online se tornou o meio de conexão entre jogadores e torcedores. "O torcedor tem sido presente nas redes sociais. A gente recebe o abraço da torcida de maneira muito positiva. Mas sabemos também que tudo isso tem que ser feito, muitas vidas foram perdidas. É essencial essa distância, e estamos dispostos a ficar o tempo que for necessário distante do nosso torcedor para que muitas vidas possam seguir", diz ele.

Presidente do Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado (Safece), Marcos Gaúcho diz que a associação mantém doações de cestas básicas e ajuda financeira para pagamento de conta de energia para atletas em situação de vulnerabilidade. O impacto maior veio no início da pandemia, quando houve bastante desinformação e a paralisação dos campeonatos.

"Rolou desemprego em massa. O impacto financeiro foi imediato. Houve um efeito cascata. O medo e o receio continuam até hoje", comentou Marcos.

O Sindicato mantém ações de conscientização aos atletas. No período de retomada dos jogos, foram realizadas lives para levar informação aos jogadores, como a de explicação dos protocolos sanitários que teve a participação do infectologista Roberto da Justa.

Richard é o goleiro titular do Ceará
Foto: Stephan Eilert/Ceará SC
Richard é o goleiro titular do Ceará

Goleiro titular do Ceará, Richard conta sobre as mudanças na rotina e os hábitos incorporados na pandemia. "Quando chego em casa, deixo o sapato do lado de fora. A gente procura tirar as peças de roupa, lavar bem as mãos e sempre tomar banho quando chega em casa. Quando vou ao mercado, esterilizo as coisas quando volta para a casa. No clube, o tempo todo é de máscara. Só tira para ir ao campo. A gente vai ter que se adaptar ao novo mundo", comentou.

Contratado em 2019, o atleta vivenciou a festa da torcida do Ceará nas arquibancadas a favor e contra, quando defendia outras equipes. A falta da massa de torcedores é bastante sentida pelo arqueiro. "Nossa torcida é apaixonado, comparece aos jogos. Creio que esses derrotas que a gente vem tendo (recentemente), esses empates, com o apoio do torcedor poderia ter sido um resultado diferente. É aprender com o momento e se adequar".

Assista à série "Atravessar a pandemia"

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