Arte que dá vida à cidade com diversidade de cores e formas, o grafite funciona ainda como uma poderosa ferramenta social. O artista brasileiro Rafael Santos, mais conhecido como Odrus, se apropria desse lado da arte urbana para dar visibilidade a causas que, por muitas vezes, são silenciadas.
Natural de Brasília, Odrus é um artista visual e grafiteiro surdo de 41 anos que busca dar evidência tanto à luta da comunidade surda quanto à causa das pessoas com deficiência (PcD) e pessoas periféricas a partir das obras que produz nos muros das cidades por onde passa, inclusive por Fortaleza.
Rafael é visto como uma referência dentro da comunidade surda devido à sua história com o grafite e o impacto positivo proporcionado por ele na vida de jovens surdos, que, a partir de seu trabalho, passaram a aderir a essa arte urbana.
Às vezes, percebo que algumas pessoas andam meio tristes e cabisbaixas e, quando olham para o meu trabalho, passam a se sentir melhor, com mais ânimo. O grafite ajuda a pacificar os lugares
Por volta dos seis anos de idade, o interesse do pequeno Rafael pelo mundo da arte começou a desabrochar a partir do contato com gibis.
Ainda pequeno, ele olhava aqueles desenhos impressos nas páginas das histórias em quadrinhos e, gostando do que via, já arriscou os primeiros traços do que viria a ser sua própria identidade artística.
A partir dali, ele se manteve na prática do desenho por vários anos, até a adolescência. No entanto, o jovem parou de desenhar aos 15 anos em função do enfrentamento a um período difícil e conturbado na vida.
Três anos depois, aos 18, o rapaz voltou às atividades artísticas - agora, com consciência de que o desenho poderia ser uma esperança na sua vida. Naquele momento, ele se encontrou no grafite e resolveu aderir àquela arte urbana.
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Aos poucos, surgia o Odrus (anagrama da palavra "surdo"), nome esse que Rafael escolheu para batizar sua versão profissional e artística.
Desde 2001, o grafiteiro, que se considera o primeiro surdo do Brasil a atuar profissionalmente nessa área, vem desenvolvendo seu trabalho com essa arte, utilizando-a principalmente como ferramenta de transformação social.
O grafite carrega consigo diversos atributos relacionados não apenas ao artista que o produz, mas também à sociedade e ao público que o observa nos muros, paredes e estruturas das zonas urbanas. Essa técnica é um meio de expressão de quem a pratica e, sobretudo, um instrumento de visibilidade social.
Para os grafiteiros, o grafite é uma oportunidade de mostrar ao mundo suas expressões e sentimentos mais genuínos por meio dos traços, cores e formas estampados no concreto das cidades. Emoções, desejos, identidades e lutas são exemplos de elementos transmitidos por meio desta arte, a partir do olhar do artista e do impacto gerado no público.
Para além das mãos que sacodem as latas de tinta, os olhos através dos quais o grafite é visto são parte importante nos processos dessa criação. O público consome o que está nos muros e é impactado pelas mensagens transmitidas pelos grafiteiros, mesmo que não queira, em um primeiro momento. Assim, o grafite ganha uma "releitura" a cada vez que é visto e interpretado por algum transeunte.
Em entrevista ao O POVO, feita em Libras, Odrus explica que é possível evidenciar narrativas e lutas sociais por meio do grafite. As causas pelas quais ele batalha e leva para as ruas das cidades são as da comunidade surda e da periferia.
"Lá no início, eu pensei comigo mesmo: 'eu sou surdo, e posso expressar por meio do grafite a causa da minha comunidade'. Foi aí que eu passei a adaptar minhas artes para aspectos que remetessem tanto a essa luta quanto a características da periferia", diz Odrus.
Mãos, sinais da língua brasileira de sinais (Libras), letras, pessoas e animais são alguns dos elementos que predominam nos grafites de Odrus. Ele utiliza da técnica para mostrar ao público a presença de indivíduos surdos e periféricos em diversos espaços na cidade e na arte.
O grafite dá ao artista a liberdade de expressar as próprias ideias por meio dos traços de tinta, que ganham vida e formas nos moldes de ferro, concreto e vidro das cidades.
Odrus se aproveita dessa propriedade da técnica para deixar sua marca nos muros e assim levar as demandas da comunidade surda para o cotidiano daqueles que passam pelos espaços onde o artista realiza suas intervenções.
Para Odrus, que tem mais de duas décadas de experiência com o grafite, essa expressão artística é uma ferramenta que tem forte impacto na vida das pessoas.
"Eu sinto que o grafite mudou a minha vida e também posso perceber que ele mudou a vida de outras pessoas ao meu redor. Por exemplo, se crianças periféricas aprenderem o grafite, a vida delas pode ser salva, evitando que elas sofram influências erradas"
Ele conta que já ensinou técnicas dessa arte urbana para detentos ao ir trabalhar em uma penitenciária. Em relato exclusivo ao O POVO, ele revela que se sentiu emocionado quando uma dessas pessoas o encontrou por acaso depois de um tempo e contou como aquele ensino proporcionado por Odrus tinha se tornado uma esperança para ela.
O artista conta com um longo currículo de experiências relacionadas a uma perspectiva de serviço social da arte, sendo convidado e parceiro de uma série de Organizações Não Governamentais (ONG), entidades do terceiro setor e até mesmo de festivais que promovem a acessibilidade.
Seja em ações de ressocialização ou com proposito de empoderar artistas PcDs como o Festival PcD, Odrus leva leveza, inspiração e força por meio da arte.
"Ser artista é ter a liberdade de reunir cores que simbolizam a diversidade através da arte visual. Expressar o conceito que não somos diferentes pela condição imutável ou corpos deficientes, somos complementar assim como as cores [...] juntos somos mais potentes.
"
Por causa do grafite, o artista brasiliense teve a oportunidade de viajar para diversos estados brasileiros e para outros países, levando consigo o próprio trabalho para mostrá-lo às pessoas daqui e de fora do País.
Odrus, aliás, veio a Fortaleza em fevereiro de 2024. Ele foi convidado para integrar a programação do aniversário de 10 anos da Rede Cuca. Ele atuou em atividades dentro e fora do cronograma de celebração da década de existência da rede.
Durante o evento, o artista conduziu um bate-papo sobre produção artística em artes visuais no Cuca Mondubim, além de compartilhar com o público a própria história de vida e trajetória na cena do grafite. O momento foi de troca de experiências entre Odrus e os alunos de cursos da Rede Cuca presentes.
Ao encerrar o bate-papo, ele conduziu o público à área de piscina do equipamento cultural. Em um muro azul, o grafiteiro começou a dar forma às letras que compõem o próprio nome artístico: "Odrus". Dado o contexto aquático daquele ambiente, peixes e bolhas também ganharam espaço ao redor das letras.
Rafael também deixou sua arte estampada no Cuca Jangurussu e na Praia do Futuro durante a passagem por Fortaleza. Os grafites feitos por ele na capital cearense, como de costume, carregam consigo elementos referentes à periferia e à comunidade surda.
O artista fez também parcerias com grafiteiros cearences, como Mils e Tubarão, integrantes do VTS Crew (grupo Viciados em Tinta Spray). Eles fizeram uma rota pelo litoral de Fortaleza, indo desde a Beira Mar até a Praia do Futuro, onde Mils e Odrus fizeram uma arte conjunta de grafite em um muro.
Para além do Brasil, ele já esteve na África do Sul, no Canadá, na Espanha, nos Estados Unidos, na França, nos Países Baixos e no Panamá, onde participou de eventos com outros grafiteiros e artistas visuais internacionais.
O público, segundo o artista visual, reage de diferentes formas quando se depara com as suas produções. "As pessoas costumam me falar 'nossa, que bonito esse grafite' ou então 'eu me senti emocionado vendo essa arte' e eu fico muito feliz com isso", relata Odrus.
"Um local que, antes, era sem graça e vazio pode mudar com as cores do grafite, que tornam aquele ambiente mais alegre e cheio de vida"
O artista explica ainda que entende os elogios e relatos recebidos como uma resposta positiva àquelas mensagens que ele deixa marcadas nos muros e espera que isso continue acontecendo por onde quer que ele passe.
Além das marcas deixadas nos muros, Odrus explica que deseja deixar marcas positivas na sociedade e nas pessoas inspiradas por ele, principalmente os jovens.
"Faço questão de motivá-los e de oferecê-los ajuda, pois quero que eles se encontrem na área e, com conselhos que eu posso dar a eles, mais jovens poderão movimentar o grafite", externa o artista.
Participar de mais projetos e eventos voltados para a inclusão de pessoas com deficiência e periféricas no mundo da arte é uma das perspectivas de Odrus para o futuro da própria carreira.
Ele espera que sua representatividade também impacte nas estruturas dos locais aos quais ele vai, trazendo luz à necessidade de adaptações para o acesso de diferentes corpos a esses ambientes.
Seu desejo maior é "que, no futuro, haja mais inclusão e acessibilidade nos espaços, tanto para pessoas surdas quanto para PcD. É preciso que haja intérpretes em eventos culturais por exemplo. Não somente no Brasil, mas em todo o mundo".
Esta e outras páginas da internet em português podem ser vistas também em Libras por meio da ferramenta VLibras, realizada pela parceria entre o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MP) por meio da Secretaria de Tecnologia da Informação (STI), e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Para utilizá-lo, basta instalar a extensão no computador a partir deste link. Após a instalação, basta arrastar o cursor sobre o texto que deseja ser lido para selecioná-lo e clicar com o botão direito. A opção de tradução será exibida logo em seguida. O sistema também está disponível para download em dispositivos móveis.
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