Apenas uma atriz que busca viver em paz, alegria e amor. Assim se descreve Karla Sofía Gascón, protagonista do filme recordista de indicações ao Oscar 2025. Modesta, brilhante e geniosa, a grande estrela de Emilia Pérez, já acumula 84 prêmios em festivais mundo afora, entre eles quatro Globos de Ouro.
O musical de direção francesa entrou para a história como o filme não falado em inglês mais indicado ao Oscar, concorrendo a 13 estatuetas. Sucesso atribuído a Gascón, a primeira mulher transgênero indicada à categoria de Melhor Atriz.
Ao receber a notícia da indicação, a atriz agradeceu em seu perfil no X utilizando um sutra da flor de lótus ligada ao budismo de Nichiren: “Muito obrigada. Me refugio no lótus da lei maravilhosa”.
Budista Nichiren há mais de vinte anos, a voz calma em seus discursos transparece a paz que conquistou durante sua firme trajetória, mesmo quando precisa tratar de assuntos como transfobia e ataques de ódio.
No Brasil para divulgar seu trabalho no musical Emilia Pérez, a atriz foi questionada sobre como conquistar um público já manifestou sua antipatia com a obra que concorre com o filme brasileiro de Walter Salles, também indicado ao Oscar.
Muito tranquila e risonha, ela comentou adorar o Brasil e diz ser apaixonada por Vini Junior, Pelé, Endrik, caipirinha, Tribalistas e Turma da Mônica. Para lidar com brasileiros, pede em tom carinhoso: “Fernanda Torres, me ajude com essa gente”.
A leveza é constante mesmo após a onda de transfobia que a atriz passou a sofrer com o sucesso de Emilia Pérez.
“Sinto uma alegria profunda por ter nascido em uma sociedade em que lutamos pelos nossos direitos e saímos às ruas por eles. Um orgulho profundo pela proteção de uma justiça que cria leis que defendem contra o ódio e a discriminação, que não questionam, mas tenta compreender seus cidadãos”, escreveu na rede X, local em que compartilha diariamente sua luta por respeito.
Nascida em 1972, Karla é natural da Espanha, filha de uma família simples do município de Alcobendas, na província e comunidade de Madrid. Foi em sua cidade natal, aos 19 anos, que conheceu a esposa, Marisa Gutierrez, com quem é casada e tem uma filha.
Marisa, ao contrário de Karla, leva uma vida mais reservada. Ela é discreta, evita dar entrevistas e aparece pouco na mídia. Suas raras aparições se limitam a eventos, quando acompanha a esposa, e nas redes sociais de Karla, que costuma compartilhar momentos felizes com a família.
Karla se descobriu atriz aos 16 anos, época em que foi estudar interpretação na Escola de Cinematografia de Madri (Ecam). Começou a carreira no final da década de 1980, na revista musical El águila de fuego. Mas destacou-se mesmo atuando em séries e novelas.
Estreou na televisão com a série Él súper, da emissora Telecinco. Em seguida participou também da série El pasado es mañana. Em todos os seus trabalhos antes de transicionar, enfileirou personagens em telenovelas e filmes de apelo popular.
A convite do diretor mexicano Julián Pastor, Karla mudou-se para o México em 2009, época em que a carreira alavancou. Destacou-se com sua atuação nas séries Corazón Salvaje (2009) e El Señor de los Cielos (2013). Estreou nos cinemas com Los Nobles - Quando Os Ricos Quebram a Cara (2013), grande sucesso de bilheteria no México.
Em 2018 publicou seu primeiro livro autobiográfico, Karsia, Una historia extraordinaria, em que assumia se identificar como mulher transgênero. Na mesma época retornou a Madri para iniciar sua transição de gênero. Pouco tempo depois voltou ao México para participar do Master Chef Celebrity e da série Rebeldes, da Netlix.
Durante a campanha de seu livro, feita principalmente no México, a atriz conta como o processo de transição não foi fácil, mas não foi impossível. “Estou há um ano em toda essa mudança. Tem sido muito satisfatório. Talvez eu devesse ter feito isso antes, mas não me arrependo. Acho que falta mais um ano para completar um ciclo que, na verdade, nunca termina”.
"A quem mais me feriu, pois ninguém pode ferir mais do que quem te ama", dedicatória do livro autobiográfico Karsia, Una historia extraordinaria
A notícia da transição de Karla chocou na mesma intensidade que inspirou. Ela iniciou o processo de transição aos 45 anos, mas já sabia que era mulher desde os quatro, afirmou em entrevistas.
Por meio das redes sociais, a atriz compartilha um pouco do dia a dia da família com os 191 mil seguidores. Em seu livro bibliográfico, Karla conta como a esposa, com quem é casada há 34 anos, e a filha lidaram com a transição: “Verdadeiros exemplos de inclusão”.
Durante os períodos após o anúncio da sua transição, Karla sempre foi muito atacada por escolher transicionar mesmo tendo uma filha. No entanto, a atriz conta que o processo com ela foi o mais tranquilo: “Antes tinha um pai, agora tem uma mãe”, comentou.
Como mãe, Karla também sempre tomou cuidado para não tornar a filha alvo de exposição excessiva. Foi pensando na segurança dela, explicou Karla, que escolheu desativar seu perfil no X, após ser alvo de acusações de racismo e xenofobia semanas depois das anunciações do Oscar.
Conheça alguns trabalhos de Karla Sofía Gascón
Após a transição, Karla participou de poucos trabalhos como atriz, por isso grande parte do seu catálogo profissional é composta por personagens masculinos.
Emilia Pérez foi seu primeiro papel de grande destaque, em toda a carreira, angariando muita visibilidade ao seu trabalho. A atriz comentou em entrevistas que, com o sucesso, pretende expandir seus horizontes: “No segundo dia após ganhar o prêmio em Cannes, já tinha em mãos o roteiro do meu próximo filme."
Em 2024, Karla Sofía Gascón abrilhantou o mundo do cinema interpretando Emilia Pérez no drama musical de mesmo nome. Por seu trabalho, este ano ela recebeu a indicação ao Oscar na categoria de Melhor Atriz.
Na campanha pela estatueta, Karla Sofía tanto se envolveu como foi envolvida em polêmicas, inclusive e, principalmente, com a brasileira Fernanda Torres. As duas foram vítimas do tribunal revisionista da internet. Fernanda pediu desculpas públicas por usar
Karla Sofa Gáscón mergulhou no epicentro do furacão. Na lista, as manifestações racistas em suas redes aparecem no topo. Falas contra o islã, George Floyd, o corpo da cantora Adele e até a política de diversidade do Oscar carimbaram o rótulo de racista na atriz.
Neste domingo, 2 de fevereiro, em entrevista à CNN espanhola, Carla pediu desculpas por tuítes classificados de racistas. "Minhas mais sinceras desculpas a todas as pessoas que podem ter se sentido ofendidas pelas formas que me expressei no passado, presente e futuro", manifestou-se. Ela também disse que não é racista. "Fui julgada, condenada, crucificada e apedrejada sem julgamento e sem a opção de me defender".
O certo é que a trajetória da protagonista de Emilia Pérez leva a pecha. Resta aguardar se ela levará o Oscar.
Em Emilia Pérez, sob a direção de Jacques Audiard, Karla interpreta um chefe do narcotráfico mexicano, o “Manitas”, que quer se submeter clandestinamente a uma cirurgia de afirmação de gênero para fugir da vida violenta que vive.
Jacques Audiard contou em entrevistas que seu plano original era que um homem interpretasse Manitas antes da transição, mas Karla o teria convencido de que ela deveria fazer o papel por completo.
“Até hoje não sei onde termina Emilia e começa Karla Sofía. Pense que imaginei o personagem muito mais jovem, mas, no final, Emilia ganhou peso, uma história cheia de bagagens ao ser interpretada por Gascón. No momento em que a vi, soube que era ela”, comentou o diretor do longa.
O roteiro inusitado rendeu 213 indicações em prêmios no mundo inteiro e 84 vitórias. Entre as premiações mais notáveis estavam o Festival de Cannes, o Globo de Ouro, o Critics Choice Awards e o BAFTA Awards.
Apesar do reconhecimento internacional, o filme também acumula polêmicas e más avaliações nas principais plataformas e agregadores de críticas cinematográficas.
Na Rotten Tomatoes, o filme tem uma estrela e meia de avaliação, com nota 1.6, considerada muito baixa. Já no Letterboxd a avaliação melhora, mas segue baixa, com nota 2.3.
As principais críticas apontam para uma visão eurocêntrica da sociedade mexicana. O filme francês, apesar de se passar na Cidade do México, não foi gravado na cidade e conta com um elenco majoritariamente não mexicano.
O público também aponta que, apesar da premissa inicial do filme, o enredo não tem relação com questões da transexualidade. Já que o narcotraficante Manitas escolhe se tornar mulher não por se reconhecer como tal, mas apenas para fugir da polícia.
As críticas ao longa tornaram-se ainda mais intensas após as anunciações do Oscar. O filme, que estreou no Brasil no dia 30 de janeiro, mal chegou e já desagrada o público geral. Parte da rejeição, pode-se dizer, também se deve ao filme concorrer diretamente com o filme brasileiro, Ainda Estou Aqui, em algumas categorias.
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O Brasil estava em clima de Copa do Mundo aguardando ansiosamente os indicados ao Oscar no dia 23 de janeiro de 2025. A esperança era que o filme protagonizado por Fernanda Torres sob direção de Walter Salles recebesse indicações.
O longa brasileiro foi nomeado para duas categorias, Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro; e Fernanda Torres conseguiu a tão merecida indicação à categoria de Melhor Atriz. Prêmio que concorre ao lado da amiga, Karla Sofía Gascón.
Assim como era de se esperar, daquele momento em diante todos indicados que não eram Ainda Estou Aqui e Fernanda Torres viraram “inimigos na nação”, e a onda de ataques começou.
Emilia Peréz foi um dos assuntos mais comentados no Twitter (X) Brasil, nem sempre em tom respeitoso. Karla Gascón, o rosto do longa francês, passou a sofrer ataques ainda mais cruéis do que os direcionados ao filme. Ela passou a sofrer transfobia.
"Eu adoro o Brasil. Acho que o público da internet não é o público de verdade. Emilia Pérez é um filme maravilhoso. Ainda estou aqui com certeza também é. Eu adoraria que Emilia Pérez fosse brasileira. Eu adoraria. Porque já senti o amor do público brasileiro quando fiz Rebelde. Um dos públicos mais maravilhosos que existem é o brasileiro", comentou a atriz em entrevistas.
Sobre estar concorrendo com Fernanda em um das categorias mais importantes de um grande prêmio muito, Karla diz não enxergar a brasileira como rival, pois na arte não existem rivais.
“Não a vejo como concorrência. Eu a vejo como uma atriz com quem eu adoraria trabalhar, porque é uma atriz maravilhosa que coloca todo o seu talento à disposição do trabalho. Espero que, algum dia, possamos trabalhar juntas”, comentou Karla sobre sua relação com Fernanda.
Após as entrevistas da atriz espanhola durante a campanha de Emilia Peréz no Brasil, Fernanda Torres publicou um vídeo em suas redes sociais pedindo respeito.
As duas atrizes indicadas ao Oscar de Melhor Atriz se conheceram em Hollywood. Fernanda conta, em suas redes sociais, que durante um evento da Revista W, Karla a teria puxado pelo braço e a apresentado a todos os outros convidados.
"Foi de um carinho, de uma solidariedade", comentou Fernada. Ela encerra seu vídeo pedindo respeito e que todos mandem corações para Karla.
Série vai explorar personagens - famosos e anônimos - para destacar histórias de vida