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Léo Suricate, o vetin da Sapiranga que levou a periferia à Assembleia
Reportagem Seriada

Léo Suricate, o vetin da Sapiranga que levou a periferia à Assembleia

O corpo tatuado, a cor da pele, a fala carregada de gírias — quase tudo em Léo Suricate destoa do perfil tradicional da Assembleia Legislativa. Para ele, ocupar essa cadeira é romper um ciclo de exclusão e levar ao plenário as urgências da juventude periférica cearense

Léo Suricate, o vetin da Sapiranga que levou a periferia à Assembleia

O corpo tatuado, a cor da pele, a fala carregada de gírias — quase tudo em Léo Suricate destoa do perfil tradicional da Assembleia Legislativa. Para ele, ocupar essa cadeira é romper um ciclo de exclusão e levar ao plenário as urgências da juventude periférica cearense
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A posse foi numa terça-feira, quase hora de almoço. O Plenário 13 de Maio da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) tinha o ar solene que a ocasião exige, mas para o deputado estadual Leonardo de Souza Xavier (Psol), de 33 anos, aquele momento vinha carregado de memórias.

Léo Suricate, como é mais conhecido, lembrou das ruas de terra da Sapiranga e do Bom Jardim, do beco sem água encanada onde foi criado, dos saraus no colégio João Nogueira Jucá, da primeira luta que participou aos seis anos, quando a comunidade buscava o direito ao uso do terreno onde morava. “Passou um filme na minha cabeça. Eu nunca imaginei estar aqui”, confessaria depois.

Saudado com uma vaia cearense, de tênis e usando terno pela segunda vez na vida, ao subir à tribuna, ele não estava só: levava consigo os rostos da família, dos amigos, das pessoas que conheceu nos conjuntos habitacionais ou nas ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), da juventude periférica cearense.

Suplente do Psol, Léo Suricate deve permanecer como deputado durante os próximos 90 dias(Foto: Marcelo Bloc/O POVO)
Foto: Marcelo Bloc/O POVO Suplente do Psol, Léo Suricate deve permanecer como deputado durante os próximos 90 dias

“Usei terno na posse do (presidente) Lula, mas é a segunda vez que uso terno na vida. Então, eu sou outro personagem, não sou esse não”, brincou o parlamentar ao assumir a cadeira deixada temporariamente pelo deputado estadual Renato Roseno (Psol), licenciado por 120 dias para tratar de assuntos pessoais.

Várias figuras políticas assistiram ao discurso orgulhosas e à espera da sua vez para um abraço. Lá estavam as secretárias de Cultura do Ceará e de Fortaleza, Luísa Cela e Helena Barbosa, respectivamente, além dos vereadores de Fortaleza, Adriana Gerônimo (PT), Mari Lacerda (PT) e Gabriel Biologia (Psol).

A previsão é de que Léo exerça o mandato de deputado estadual por 90 dias. Os últimos 30 dias deverão ser exercidos pela segunda suplente do partido, a professora Zuleide (Psol), atual secretária de direitos humanos do Crato.

Léo Suricate conversou com O POVO ainda no gabinete do deputado Renato Roseno(Foto: Lorena Frota/O POVO)
Foto: Lorena Frota/O POVO Léo Suricate conversou com O POVO ainda no gabinete do deputado Renato Roseno

Com uma linguagem simples, bem-humorada e popular, o jovem ativista, produtor de conteúdo digital e um dos criadores do personagem Suricate Seboso recebeu 22.466 votos nas eleições de 2022 e ficou na suplência do Partido Socialismo e Liberdade (Psol).

No mesmo ano, Léo Suricate, que tem um vasto repertório social e trajetória de luta por habitação, foi convidado a integrar a equipe de transição do governo Lula (PT) e compôs o Grupo de Trabalho (GT) da área de Cidades.

“Cada pessoa trazia um resumão de coisas pra debater, problemas. Tava todo mundo pronto para reconstruir o País mesmo. Foram várias pautas, desde as ciclofaixas às moradias. E eu levei minhas experiências daqui sobre conjuntos habitacionais”, narrou às Páginas Azuis do O POVO em 2023.

Léo Suricate é artista, diretor, criador de conteúdo e ativista cearense(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Léo Suricate é artista, diretor, criador de conteúdo e ativista cearense

Mas a política entrou na vida desse jovem muito antes de assumir a responsabilidade de legislar. Foi de forma orgânica, como uma extensão da luta pelos direitos básicos.

“A questão da política sempre esteve atrelada à questão de ter uma vida melhor, com mais dignidade, à questão da sobrevivência. A gente que veio desse lugar, sabe que é necessário lutar para estar vivo. Não é comum você ver essa origem em quem está ocupando cadeiras dentro da casa legislativa”, conta.

Morador do residencial José Euclides, no bairro Jangurussu, Léo se considera um sobrevivente.

Conhecido por sua atuação na cultura periférica, é administrador da página Suricate Seboso ao lado de seu irmão Dudu(Foto: Jeny Sousa )
Foto: Jeny Sousa Conhecido por sua atuação na cultura periférica, é administrador da página Suricate Seboso ao lado de seu irmão Dudu

“Na vida, eu consegui algumas medalhas que, pra um jovem que vem de onde eu venho, é difícil e, às vezes, até quase impossível conseguir — por vários motivos, sobretudo, estar vivo. A medalhinha dos meus 30 anos de idade, que eu ganhei, é já estar fora dos quase 50% dos jovens da minha cidade que não vão ter a oportunidade de chegar até os 29.”

O “vetin da Sapiranga” é neto de dona Gonçala e pai de Lua. Cresceu com o horizonte encurtado pela pobreza: concluir o ensino médio, arranjar um trabalho e sobreviver.

Foi ajudante na construção civil, fez bicos como autônomo, trabalhou até com Tecnologia da Informação (TI). “A gente que vem da periferia não tem muito horizonte expandido. É se virar para viver no cotidiano”, resume.

Mas havia também a arte e a cultura como fios de salvação: capoeira, futebol, jornal da escola, saraus. Em 2012, junto com o irmão, Dudu, criou a página Suricate Seboso no Facebook, quando “influenciador digital” ainda nem era palavra de moda.

O nome, inspirado no animal de olhar curioso e postura vigilante, carregava o DNA de quem observa a realidade com atenção e sátira.

O humor carregava o jeitinho moleque do Ceará com as gírias, histórias e ironias da periferia. Assim, o apelido virou sobrenome artístico.

Diego Jovino (à esquerda), 28, criador do personagem Suricate Seboso, Gabriel Canuto, 18, Léo Gannbiarra, 23 e Dudu Souza, 20 anos. Visita do criador do personagem Suricate Seboso a redação do O POVO em 2015(Foto: EDIMAR SOARES)
Foto: EDIMAR SOARES Diego Jovino (à esquerda), 28, criador do personagem Suricate Seboso, Gabriel Canuto, 18, Léo Gannbiarra, 23 e Dudu Souza, 20 anos. Visita do criador do personagem Suricate Seboso a redação do O POVO em 2015

No mesmo ano, ele se envolveu no Sarau da Praça do Povo, no bairro Sapiranga, e passou a atuar na produção cultural. A partir dali, a internet se tornou palco e megafone.

A página cresceu e novos projetos surgiram — entre eles a Vetinflix, produtora que cria filmes, séries e clipes com estética e narrativa periféricas.

Léo também entrou para a música, co-dirigindo clipes da banda BaianaSystem, como “Cabeça de Papel remix Tropkillaz” e “Catraca”.

Leo Suricate co-dirigiu clipes do BaianaSystem, como "Cabeça de Papel remix Tropkillaz" e "Catraca"(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Leo Suricate co-dirigiu clipes do BaianaSystem, como "Cabeça de Papel remix Tropkillaz" e "Catraca"

Na série “La Casa Du’z Vetin”, fez humor inspirado em sucessos de streaming, mas com rostos, vozes e histórias que geralmente estão às margens de produções audiovisuais.

O currículo foi aumentando: artista, diretor, músico, produtor cultural, articulador do movimento Difavela. A internet lhe deu fama e abriu portas, mas o chão continuava sendo o dos movimentos de base.

No centro da sua formação está a avó. “Minha heroína”, diz, lembrando que ela perdeu a mãe aos seis anos, saiu do Ceará aos nove para trabalhar como doméstica no Rio de Janeiro e, anos depois, voltou para comprar uma casa num beco.

“Nem imagino o que ela passou como mulher, nordestina, retirante, tendo estudado só até a sétima série. A vida dela foi muito mais difícil que a minha, e a minha já não foi fácil.”

“Minha avó sempre tava na luta do bairro por uma questão de necessidade. Seja na luta pelo encanamento da água, seja pelo usucapião da casa, pela escola de ensino médio, pela linha de ônibus”, testemunha.

Ao vê-lo tomar posse, aos 93 anos, dona Gonçala pôde assistir ao neto ocupar um espaço que ela indiretamente o levou ao ensiná-lo, por meio de seu exemplo.

“Dentro de casa eu aprendi a respeitar as pessoas que vieram antes de mim, respeitar o lugar que chego, respeitar e honrar a minha própria trajetória. Aprendi a lutar pelo que eu quero, seja na política ou na sobrevivência”, relata Léo.

E continua: “Luta para conseguir uma televisão, uma geladeira, um asfalto na rua, uma limpeza em uma praça. Lutar para estar vivo. E o que eu aprendi dentro da minha casa, vou levar para dentro da Casa do Povo”.

Não à toa, ao ver dona Gonçala presente durante a posse, mesmo adoentada, a voz embargou.

“Eu não tenho palavras para explicar a emoção e o sentimento de tomar posse hoje como deputado para defender pautas importantes, como a de moradia. Eu sobrevivi na periferia e quem vem da periferia, como eu, sabe que quem tem uma tatuagem no corpo, quem tem a cor mais escura, sabe que a vida é diferente para nós. O Estado não foi pronto para nós.

A frase ecoou entre as paredes do plenário, carregada de uma verdade conhecida por muitos cearenses que se identificam com a necessidade de, desde cedo, ter de usar a criatividade para sobreviver.

 

 

Três meses para ocupar: a estreia política de Léo Suricate

Diante da responsabilidade de legislar, o deputado estadual Léo Suricate não titubeia: “Essa função chega com muita importância e a gente já vem se preparando há algum tempo. É onde se toma decisões, fora as outras prerrogativas que os deputados têm. Possibilidade de fazer requerimento, protocolar, apresentar projeto de lei, projeto de emenda constitucional, sentar com o governo, negociar, construir”.

Ele defende que o mandato seja ferramenta de solução, não só de crítica. “Como sou uma pessoa da política da realidade, do cotidiano, do dia a dia, eu acho que a crítica não pode ser apenas pela crítica; não adianta eu ir no parlamento só atacar e não apresentar nenhuma solução ou possibilidade de solução, principalmente para a população, que é quem precisa.”

Suas referências vêm de dentro e de fora: Lula, Pepe Mujica, Guilherme Boulos, mas também os vizinhos, colegas de movimentos sociais e de juventude.

Léo Suricate participando do Esquenta Enem: evento proporciona motivação extra a alunos na reta final de preparação, em 2023(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Léo Suricate participando do Esquenta Enem: evento proporciona motivação extra a alunos na reta final de preparação, em 2023

“Estamos num lugar conhecido como a Terra da Luz, dos movimentos jangadeiros, do Dragão do Mar, mas se você parar para refletir sobre a abolição da escravatura, o Estado brasileiro deixou a população negra com uma mão na frente e outra atrás. A população indígena foi outra que sofreu um verdadeiro massacre. Nossos ancestrais tiveram que sobreviver de tudo que é jeito. Entrar nessa Casa e tomar posse é vir com essa história além do corpo no cotidiano”, finaliza.

Se a cena incomum na rotina protocolar emocionou a família, amigos e militantes presentes, também reverberou entre jovens que o conhecem das redes sociais.

O “Vetin” que fazia piadas sobre o dia a dia do bairro agora discursava em um dos palcos mais tradicionais da política cearense.

Posse de Leonardo de Souza Xavier (Psol), mais conhecido como Léo Suricate, como deputado estadual na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece)(Foto: Jeny Sousa)
Foto: Jeny Sousa Posse de Leonardo de Souza Xavier (Psol), mais conhecido como Léo Suricate, como deputado estadual na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece)

O mandato será usado como oportunidade para mostrar o que uma política de base comunitária pode propor.

O desafio, segundo ele, é “mostrar que as vozes das quebradas não apenas têm muito a dizer, como sabem transformar discurso em ação”.

Ao mencionar a moradia como prioridade, ele se conecta diretamente às pautas que sempre defendeu em suas produções e ações sociais.

Desde 2009, Léo usa o humor e a cultura para amplificar pautas sociais(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Desde 2009, Léo usa o humor e a cultura para amplificar pautas sociais

O acesso à casa própria, para o deputado estadual, é parte da dignidade que o Estado deve garantir, especialmente a quem vive em condições precárias.

Já o impacto de seu trabalho como criador de conteúdo vai além das curtidas e compartilhamentos. A comunicação popular, para ele, é uma ferramenta política tão importante quanto um discurso formal na tribuna.

Foi nesse formato que Léo encontrou um caminho para falar com quem, muitas vezes, não se vê representado nos noticiários ou nos debates parlamentares.

Dudu Suricate, Sérgio Yves (Bossa.Com) e Léo Suricate(Foto: Equipe Suricate)
Foto: Equipe Suricate Dudu Suricate, Sérgio Yves (Bossa.Com) e Léo Suricate

Seja na tela do celular ou no microfone do plenário, sua mensagem é a mesma: o direito à cidade, à moradia, à cultura e à vida digna.

A primeira passagem pela Alece dura apenas três meses e Léo sabe que o tempo é curto, mas o significado é imenso e o recado é explícito: a periferia não pede licença para existir na política — ela ocupa. 

"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Se preferir, me escreva um e-mail (karyne.lane@opovo.com.br), ficarei feliz de te ler. Até mais!"

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