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Sérgio Farias e a luta por políticas públicas pensadas na e pela periferia
Reportagem Seriada

Sérgio Farias e a luta por políticas públicas pensadas na e pela periferia

Ativista, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST-CE) e um dos idealizadores das iniciativas Cozinha Solidária, Agência de Correios Comunitária e Zona Viva, Sérgio Farias vive a luta por direitos mesmo antes de se reconhecer como sujeito político

Sérgio Farias e a luta por políticas públicas pensadas na e pela periferia

Ativista, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST-CE) e um dos idealizadores das iniciativas Cozinha Solidária, Agência de Correios Comunitária e Zona Viva, Sérgio Farias vive a luta por direitos mesmo antes de se reconhecer como sujeito político
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Para Paulo Sérgio Farias Gonçalves, 53, a cultura deve ser uma ferramenta de luta na construção de políticas públicas que surjam das comunidades e para elas, e não pensadas apenas a partir da visão de quem não vive as realidades das periferias urbanas.

Ativista, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto do Ceará (MTST-CE) e um dos idealizadores de iniciativas como a Cozinha Solidária, a Agência de Correios Comunitária e o Zona Viva, Sérgio Farias vive a luta por direitos mesmo antes de se reconhecer como sujeito político.

Sem medo de falar e com o desejo de ser ouvido, participa de movimentos sociais e culturais desde os 8 anos de idade, quando ainda morava no Complexo da Rocinha, no Rio de Janeiro, e integrava o Coletivo da Escola Paula Brito, atuando nas áreas de fotografia e audiovisual.

ParaTodosVerem: O líder comunitário Sérgio Farias está encostado em um parapeito, usando camiseta vermelha, com cabelos longos e barba grisalha. Ao fundo, há prédios residenciais e um grande mural pintado na parede(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: O líder comunitário Sérgio Farias está encostado em um parapeito, usando camiseta vermelha, com cabelos longos e barba grisalha. Ao fundo, há prédios residenciais e um grande mural pintado na parede

Hoje morador do Conjunto Habitacional José Euclides, egresso da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e ex-estudante de Direito, ele carrega uma trajetória marcada por resistências e pelo compromisso com um futuro mais digno para as crianças das periferias de Fortaleza.

Suas ideias, sonhos e vontades se refletem na paixão por falar do lugar onde viveu, das pessoas que conheceu e de quem o inspirou — como a professora Solange Farinha, que o apresentou Che Guevara e Charlie Chaplin, e sua mãe, presença fundamental em sua formação como agente social.

 

 

O POVO — Muita gente politicamente envolvida em Fortaleza conheceu você já como esse cara da luta, das reivindicações, da comunidade. Mas é muito provável que eles não conheçam a origem desse Sérgio que a gente vê nas ruas. Quem é o Sérgio que as pessoas podem não conhecer?

Sérgio Farias — Eu sou filho da dona Gonçala, uma mulher nascida em Santa Quitéria, no ano de 1932 — o ano da maior seca da história do Ceará. Dona Gonçala é uma mulher cristã, uma cabocla do sertão cearense que, como tantos outros, foi de pau de arara viver no Rio de Janeiro.

Eu nasci no Rio, na favela da Rocinha, e vivi lá até o fim da década de 1980. Foi lá que dona Gonçala me teve. Depois, ela voltou para o Ceará por um tempo e aqui acabou sendo abandonada pelo meu pai, sendo forçada a retornar ao Rio, novamente como retirante, levando com ela a mim, meu irmão e minha irmã. Somos três, e todos fomos criados lá.

No fim dos anos 1980, a gente volta para o Ceará e eu vou morar no Parque Água Fria, um loteamento que fica entre o que hoje se conhece como Sapiranga e um pedaço do Edson Queiroz.

ParaTodosVerem: Na imagem, estão Sérgio quando criança junto da mãe e dos irmãos. Os meninos aparecem manuseando fitas para fazer animações do clube cine(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal ParaTodosVerem: Na imagem, estão Sérgio quando criança junto da mãe e dos irmãos. Os meninos aparecem manuseando fitas para fazer animações do clube cine

Fiz Direito, mas não terminei, tenho 53 anos, concluí os estudos no supletivo — sou um grande defensor dessa política. Sou fundador do Movimento dos Conselhos Populares (MCP), criado aqui em Fortaleza, no Ceará, no ano 2000, junto com o professor Alto Filho.

Na época, também participaram figuras como Pedro Ivo — que hoje é um dos dirigentes da Rede — e um grande jurista, já falecido, um decano da UFC, professor da universidade.

Esse movimento ganhou força especialmente na eleição da prefeita Luizianne Lins, em 2004. A ideia central era a participação popular na construção das políticas públicas da cidade.

O POVO — A partir de que momento você se entende dentro da sociedade como um sujeito político?

Sérgio Farias — Sou filho de uma mulher que lutou muito para sobreviver. Em 1984, teve um desabamento na Rocinha, um dos maiores da história, e foi ali que tive meu primeiro contato com a luta social — participei dos socorros às vítimas e vi que, depois, para garantir seus direitos, aquelas pessoas precisaram lutar muito.

Tudo aquilo foi aos poucos me despertando. Lembro de ver grafites no metrô de Botafogo, símbolos como a foice e o martelo. Eu não entendia direito, mas me encantava.

Também vivi de perto a mobilização pelas Diretas Já. Lembro de estar no Largo da Carioca e ver uma multidão imensa. Aquilo mexeu comigo, mesmo sem eu ter clareza política ainda.

ParaTodosVerem: Sérgio junto dos irmãos e amigos na infância durante o cine clube(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal ParaTodosVerem: Sérgio junto dos irmãos e amigos na infância durante o cine clube

Mas minha vinda para o Ceará não teve ligação direta com militância. Viemos por necessidade, e acabamos ficando. Minha mãe voltou ao Rio só para vender nossa casa na Rua Dioneia, que ficava a poucos metros da escola onde estudei, a Miguel de Paula Brito — um lugar que foi marcante para mim.

Foi lá que ganhei meu primeiro jogo de xadrez, numa política do governo Brizola. Até hoje guardo aquele tabuleiro. E hoje, isso virou projeto: tenho a Liga dos Peões, um trabalho de difusão do xadrez com crianças.

O que me formou veio desse tempo, das políticas públicas e de uma infância vivida entre luta, escola e sonho — mesmo sem entender tudo.

O POVO — E a partir de que momento essa consciência de que ‘eu sou uma pessoa ativa na política’ começou a surgir?

Sérgio Farias — Logo quando cheguei à Sapiranga, (eu e os moradores) começamos um movimento por água na comunidade. A Sapiranga é uma das áreas mais desiguais do Brasil, cercada por terras do Grupo Edson Queiroz. Na época, criei um grupo cultural, uma quadrilha junina. O Rapadura, hoje um dos maiores rapers do país, dançou com a gente.

Nos anos 2000, fundamos o Movimento de Ação Popular Alternativa (Mapa), numa época de luta contra a especulação e por infraestrutura — como o semáforo da Washington Soares, local onde muitos moradores morreram atropelados. Essa luta virou símbolo: pedíamos um sinal ali igual ao do Iguatemi. A instalação dele, em 2005, foi um marco para a gente.

Essas lutas nos deram consciência política e cultural. Lutamos também contra a especulação no mangue do Riacho Sal e criamos eventos como o Sarau, que rodou por várias periferias. A cultura virou um eixo de mobilização. Nomes como Léo Suricate, Matheus Fazendo Rock, Airton Gleison e Diego do Fortaleza Ordinária vieram desse contexto, da escola João Nogueira Jucá e do Mapa.

Minha militância cultural sempre esteve conectada à luta social. Cresci na Rocinha, vi armas cedo — com 13 anos, já tinha segurado uma pistola. Mas também tive contato com uma câmera, graças a uma professora. Isso me deu escolha: a câmera ou a arma. Por isso, acredito que toda criança deveria ter acesso à arte, cultura e tecnologia — é isso que pode mudar destinos.

Os pivetes vivem um encantamento sobre as armas, porque eles têm a sensação de que ela dá poder, mas se eles pudessem sentir o poder que uma câmera Olympus 10 dá, certamente eles escolheriam outras possibilidades de caminho.

ParaTodosVerem: na imagem, há um grupo de pessoas com camisas do MCP. Sérgio aparece na lateral direita falando ao microfone(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal ParaTodosVerem: na imagem, há um grupo de pessoas com camisas do MCP. Sérgio aparece na lateral direita falando ao microfone

Então focamos nossa militância em espaços simbólicos, como a pracinha em frente à escola Aldaci Barbosa, que carrega o nome da assistente social que coordenou o primeiro projeto de desfavelização de Fortaleza, nos anos 1970. Esses projetos criaram o Conjunto Alvorada (Parque Água Fria), o Conjunto Palmeiras (Grande Jangurussu) e o Marechal Rondon (Jurema).

Essas regiões nasceram da remoção de pessoas do Meireles, da rodoviária, do entorno do Hospital Geral. O IDH do Jangurussu hoje é um dos mais baixos do Brasil. Esse contraste mostra o nível de desigualdade estrutural em Fortaleza.

Hoje, moro na área sul, como muitos ex-moradores da Sapiranga. Essa migração reflete um novo ciclo de expulsão causado pela especulação imobiliária. E seguimos discutindo isso, tentando manter vivo o debate sobre cidade, cultura e direito à permanência.

O POVO — E em que momento sua história no MCP e em outros movimentos se liga com a sua vinculação ao MTST?

Sérgio Farias — Vou contar como foi a transição do MCP para o MTST. O MCP era um movimento de moradia. Nesse período, criamos com o MTST uma frente chamada Frente de Resistência Urbana. A gente discutia restaurantes populares, lavanderias populares, e o Plano Diretor. Queríamos ser ouvidos.

A gente vinha da herança do MCP e do núcleo do Parque Água Fria. Nunca caímos no antipetismo, nunca fomos bolsonaristas, mas também não nos vinculamos aos governos. Sempre tivemos uma ideia que mantemos até hoje: governo é governo, partido é partido, movimento é movimento. Se o movimento se liga a partido ou governo, ele deixa de ser movimento, deixa de fazer luta.

Em 2009, nosso maior problema nas comunidades era a violência, herança das gangues — que brigavam por território com pedra e pau, sem envolvimento direto com o tráfico. Fizemos um planejamento: tínhamos que investir nos pivetes de 12, 13 anos.

Muitos hoje nos orgulham. Também entendemos que não devíamos criar estruturas presas ao território, mas olhar o todo. Vieram as obras da Copa. Estávamos no MCP, mas queríamos transformar a cidade. E também estávamos muito à frente no debate da violência.

Naquela época, a Arte do Beco, nossa banda, nasceu para resistir às remoções. Ainda éramos MCP, mas já com um pé na cultura e nos projetos de vida para a juventude.

A ruptura com o MCP começa ali entre 2009 e 2010. Estávamos dizendo: "precisamos resistir na parte norte da cidade, acima da perimetral". Estava havendo expulsão. Acreditávamos que os removidos tinham que permanecer nos seus territórios. Morar na Sapiranga era melhor do que em qualquer outro lugar, porque tínhamos um apego. Sinto o mesmo hoje pelo Jangurussu.

ParaTodosVerem: Sérgio Farias sentado nos degraus do Zona VIva  no José Euclides (Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO)
Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO ParaTodosVerem: Sérgio Farias sentado nos degraus do Zona VIva no José Euclides

O MCP não era um movimento de ocupação. E quem coordenava as ocupações era um movimento camponês — que, naquele momento de alta violência urbana, não tinha condição de liderar uma ocupação em Fortaleza. Era muito perigoso. As ocupações começaram a surgir na perimetral, nas terras do Montenegro, e fomos contra.

Criou-se o Cidade Jardim, que com todo respeito, é uma aberração. Uma casa dessas custa 150 mil para construir, mas muitas não valem 10 mil hoje. Isso é sério? Não. Jogaram gente em áreas sem infraestrutura. Esses conjuntos viraram uma nova cidade, uma Fortaleza da periferia sem correio, sem coleta de lixo, sem Centro de Referência de Assistência Social (Cras).

Em 2009, com a construção do Maria Tomásia e os outros conjuntos, rompeu-se o MCP. O movimento virou só de moradia, e nós, que tínhamos uma frente cultural e urbana mais ampla, fomos para o MTST. Antes disso, criamos a Caravana da Periferia, um movimento com base cultural forte, com gente da Serrinha, do Barroso. Mas havia partidos tentando impor suas agendas, e isso atrapalhava.

ParaTodosVerem: A imagem mostra o conjunto habitacional Euclides da Cunha visto de cima, com vários prédios de três andares e ruas estreitas. Em destaque, há murais coloridos pintados nas fachadas, incluindo um grande painel com rostos em preto e vermelho(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: A imagem mostra o conjunto habitacional Euclides da Cunha visto de cima, com vários prédios de três andares e ruas estreitas. Em destaque, há murais coloridos pintados nas fachadas, incluindo um grande painel com rostos em preto e vermelho

Fundamos o núcleo do MTST-CE e começamos a acompanhar a violência em Fortaleza, as remoções, a morte de jovens — que explodiu. E fomos pensando que, se fosse para ocupar, teria que ser uma ocupação grande, organizada.

A luta passou a ter três pilares: cultura, tecnologia e moradia. As moradias na Sapiranga eram precárias, mas melhoraram. Hoje tenho meu quarto. Minha mãe tem o dela. Os filhos dos meus amigos também.

Embora esses conjuntos estejam ligados à violência — são pessoas de 121 bairros jogadas em áreas novas sem estrutura. As pessoas precisam de organização e nós precisamos continuar a luta por moradia.

O POVO — Hoje, o que te mantém no MTST? Qual é a luta que te mantém firme nesse movimento?

Sérgio Farias — No Brasil, a classe média mora com os pais. Muita gente é sem-teto e não sabe. Mora de aluguel? É sem-teto. Casal separado que continua morando junto porque não tem condição de morar separado? Dois sem-teto. Porque o teto é da família, não é da pessoa de forma individual.

Hoje, a luta por moradia ainda é a luta central para os mais pobres. Mas essa luta também é pelo bairro, pela cidade, não só pela casa. O que foi feito com o programa de habitação? Construíram 3 mil casas em cada canto, mas muitas dessas casas são inabitáveis por causa da violência, por falta de serviço. O Estado construiu com dinheiro público verdadeiras favelas verticais.

Não resolveu o problema da moradia. Criou outros. Continua fazendo. Recentemente conversei com o secretário de habitação: vão construir mais 3 mil casas. Como? De novo, em grandes conjuntos. É repetir o erro dos últimos 20 anos. E, no fim, o povo acaba aceitando, porque precisa de casa. É como um vegano que está há cinco dias sem comer e ganha uma salsicha: vai comer. É necessidade.

O programa habitacional precisa ser revisto. O que me mantém no MTST? É a luta pela reforma urbana. A gente não é só um movimento de moradia. É um movimento para mudar a cidade, mudar a sociedade. A moradia é central, mas não é só uma casa. É escola, é saúde, é transporte. Eu sou morador de um conjunto.

ParaTodosVerem: Sérgio Farias apoiado em algumas grades brancas (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Sérgio Farias apoiado em algumas grades brancas

Aí você pergunta: "Mas você é sem-teto?" Claro que sou. Ainda não tenho um lugar verdadeiramente habitável. Milito no movimento sem-teto. Há quem queira só a casa. Mas há quem queira um lugar habitável. E essa luta não acaba.

Por exemplo, o Orgulho do Ceará é terrível. Não tem ônibus. Eu mesmo não tenho CEP. Aqui, ao lado de Fortaleza. Por isso defendemos uma luta por todo esse complexo de conjuntos. E não dá mais para construir nessa região. Mas o governo vai construir.

Vão construir o Luís Gonzaga 2, todos sabem que é errado. E mesmo assim vão fazer. Por interesse, não nosso. Mas de quem lucra com isso. Construtoras que ganham mais de R$ 100 mil por casa, que em dois anos não valem R$ 10 mil. Não era melhor investir em cooperativas, crédito para quem quer construir?

Na Zona Viva, moradores se reúnem para participar de atividades educacionais e recreativas(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Na Zona Viva, moradores se reúnem para participar de atividades educacionais e recreativas

Existe um grande mito em torno desses conjuntos de que a gente não pagou por essas casas. Não é verdade que a gente não paga essas casas. Todo mundo paga. Falo muito disso porque moro em uma.

A nossa luta é por ocupação, mas é preciso pensar a cidade. Já trouxeram 150 mil pessoas para essa área do Minha Casa, Minha Vida. Aqui não tem política pública. Janguruçu se tornou o bairro mais populoso do Ceará — por causa desses conjuntos. E continuam construindo. Jangurussu vai seguir crescendo. Podem até mudar o nome dos bairros para disfarçar, para reduzir o impacto político.

Pedras cresceu 100% em 10 anos, mas não cresceram 100% as vagas nas escolas, não cresceram 100% as consultas no postinho ou a infraestrutura. Isso prejudica quem já morava e quem chega. Quem ganha? A construtora.

A Diagonal, por exemplo, construiu o Zé Euclides. Entregou e foi embora. Porque diz que tem facção. Vai embora e ninguém mais cobra os 5 anos de garantia que deveria ter. Nenhum conjunto tem.

E o trabalho social? É uma vergonha. Conversei com uma promotora que é muito respeitada. Ela me tratou como criminoso porque queria justificar operações policiais aqui. Me associou a bandidos. Qual o sentido em gastar tanto em uma operação com helicóptero e 500 policiais num lugar onde nem carta chega?

O POVO — O Projeto das Cozinhas Solidárias do MTST ganhou muita força principalmente no período da pandemia de covid-19 no Brasil. A iniciativa foi tão significativa que chegou a ser premiada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Em que contexto surgem as Cozinhas Solidárias do Ceará e qual o seu papel na chegada dessa nova política social?

Sérgio Farias — A história das cozinhas solidárias começou quando a gente chegou ao conjunto habitacional e percebeu que não havia serviços básicos. Não tinha carta, não tinha comida, não tinha nada. Foi aí que começamos a discutir a criação das Cozinhas como política pública.

E o que é a Cozinha Solidária? Não é só um lugar para fazer quentinha. É um ponto de acolhida, de organização da comunidade, de educação. Já teve curso de espanhol, já criei a "Liga dos Peões", um grupo de crianças que joga xadrez, e com isso debatemos território e futuro. A cozinha é um espaço político, pedagógico e comunitário.

Tentamos institucionalizar essa ideia com o governo. Em abril de 2022, quando a Izolda (Cela, ex-secretária executiva do Ministério da Educação) assumiu o governo do Estado, apresentamos o projeto da Zona de Cultura e Tecnologia e das Cozinhas Solidárias.

Também buscamos apoio com o Hilário Marques, então secretário de Direitos Humanos da prefeitura, pedimos que o Cras atendesse nas Cozinhas. Nunca conseguimos. O motivo? As Cozinhas eram ligadas à base política do governo estadual, e não ao Sarto. Para conseguir o Cras, tínhamos que estar alinhados à prefeitura.

Surgiu então o Ceará Sem Fome, que criou 400 cozinhas só em Fortaleza. Mas essas cozinhas viraram pontos que apenas produzem quentinhas, sem vínculo comunitário real. Muitas viraram braços de ONGs que recebem recursos e repassam alimento, sem autonomia.

ParaTodosVerem: Sérgio Farias em frente ao mural do La Casa dos Vetins no José Euclides (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Sérgio Farias em frente ao mural do La Casa dos Vetins no José Euclides

A cozinha solidária para a gente é acupuntura social. É como pequenas agulhas num corpo doente. Intervenções simples que mudam a vida das pessoas.

O xadrez, por exemplo. Imagina ver uma criança jogando xadrez no meio do Zé Euclides, um dos bairros mais violentos de Fortaleza. Quebra o estigma. Você espera ver um menino com balaclava, com arma, com drogas e vê uma criança com um tabuleiro. Isso muda tudo.

Depois das cozinhas surgiu também o Zona Viva. Inspirado na antiga banquinha da Sapiranga, virou política pública. É como uma "areninha com alma", um espaço cultural vivo. Mas, como aconteceu com as cozinhas, o Estado começou a inaugurar essas Zonas e entregar para pastor, desvirtuando a ideia original.

O Zona Viva nasceu aqui no Zé Euclides, no meio das operações policiais. Fomos em busca de cursos de cinema, cultura, e equipamentos. Surgiu o VetLab, curso com o Coletivo Nigéria. A cozinha e o Zona então ganharam visibilidade — saiu no Fantástico, Jornal Nacional. Foi a primeira vez que o MTST apareceu positivamente no Jornal Nacional, graças à Cozinha do Maria Tomásia.

O Zona Viva virou política pública e hoje estamos discutindo a terceira política que surge do território: a Agência Comunitária de Correios.

 

 

O POVO — Continuando na linha das políticas públicas, aí que entra a Agência Comunitária de Correios. Como e por que surge essa necessidade da criação de uma agência para atuar nos conjuntos habitacionais?

Sérgio Farias — Tudo o que falei até agora resume a uma ideia: acupuntura social do território. A política pública precisa ser pensada para o corpo vivo que é o território. E esse corpo é feito de gente, de relações, de histórias. Qual o grande problema? A maioria das políticas são estáticas, paradas, enquanto a cidade está em constante movimento.

Quantas políticas são desenhadas de forma fixa, para uma cidade que muda a cada dia? Hoje você pode morar em um lugar que está tranquilo, mas amanhã alguém pichou um muro, soltaram fogos, mudou o clima, mudou o controle do território. Pode até ser que hoje você escute MC Poze do Rodo, mas amanhã o grupo dominante proíbe. É assim que os territórios funcionam: estão em movimento frenético. Fortaleza é viva.

ParaTodosVerem: Sérgio Farias sentado nos degraus do Zona VIva  no José Euclides (Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO)
Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO ParaTodosVerem: Sérgio Farias sentado nos degraus do Zona VIva no José Euclides

Por isso, precisamos de uma política pública em movimento para uma cidade em movimento. Para quê construir um Cras fixo se posso colocar uma equipe do Cras para circular pelo território, igual ao agente de saúde? A gente já tem 600 escolas em Fortaleza — dá para descentralizar. Mas o que acontece? Cada gestor pensa isolado. Um constrói, outro sobrepõe, e nada se conecta. O Cras não chega, os serviços não chegam.

Aqui, tudo é um problema: o lixo, a iluminação, o esgoto. Mas um dos maiores problemas é a ausência de endereço. Eu sou do movimento de moradia, moro numa casa entregue pelo Minha Casa, Minha Vida, com verba do governo federal, estadual e municipal — e não tenho endereço reconhecido. Sem endereço, não posso ter associação. Sem associação, não posso acessar recursos para a Cozinha Solidária. Aí faço o que?

Pago R$ 110 por mês para usar um coworking na Messejana como endereço fiscal. Quando compro algo na Shopee, mando entregar na Praia do Futuro, e de lá alguém traz pra mim. É absurdo, mas é o que a gente vive.

E o que pensamos como solução? Criar uma Agência Comunitária dos Correios no conjunto. O Zé Euclides tem 13 mil habitantes — mais que muito município do Ceará por aí. A ideia é fazer isso com o MTST, a Prefeitura de Fortaleza e o Instituto Centro de Ensino Tecnológico (Centec), que é como o IFCE do estado. E essa solução pode ser replicada em qualquer outro conjunto, como o Alameda das Palmeiras ou o Cidade Jardim. Mas tem um ponto essencial: não adianta copiar sem envolver a comunidade.

Não é só montar um contêiner e entregar para o vereador. O carteiro da Agência Comunitária tem que ser morador da comunidade, indicado pelas próprias organizações locais. Não pode estar a serviço de interesse político. Quando isso acontece, você forma uma rede. Aqui, chamamos isso de Território Vivo.

O Território Vivo é a cozinha, a Agência dos Correios, o grupo de jiu-jitsu, o Zona Viva, tudo funcionando em rede. Temos parceiros e aliados importantes nisso, eles entenderam que sem comunidade, não existe política pública que funcione.

ParaTodosVerem: Sérgio Farias em frente ao Zona Viva. No fundo a frase "favela é lugar de sonhar" está grafitada na parede(Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO)
Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO ParaTodosVerem: Sérgio Farias em frente ao Zona Viva. No fundo a frase "favela é lugar de sonhar" está grafitada na parede

Aqui, a gente sabe onde tem uma lâmpada queimada. A ideia é juntar tudo para construir um projeto de comunidade real. Porque não adianta arrumar o esgoto se a rua continua escura. Não adianta inaugurar uma escola se as crianças não conseguem circular entre os conjuntos. Sem entender o território, a política pública vira desperdício de dinheiro.

Meu papel, como Sérgio, é olhar para essas vidas reais. Vidas de gente que mora aqui. A gente defende que a política pública seja enraizada no território. Que envolva os velhinhos, os jovens, as histórias de quem vive aqui. O Zé Euclides é um território vulnerável, mas planejado, construído com R$ 220 milhões. Não foi uma ocupação espontânea, foi projeto de Estado.

E hoje estamos pagando o preço de decisões tomadas lá em 2009, decisões feitas por quem não morava aqui. Enquanto isso, o grupo Montenegro está vendendo terrenos para especulação, porque a construção dos conjuntos valorizou a área.

Não podemos pensar a cidade para beneficiar especulador. Temos que construir a cidade pensando na vida de quem mora aqui.

A política pública tem que entender que o território é vivo. E que uma agulhinha colocada no nariz, na acupuntura, pode aliviar uma dor na perna. É isso que a gente quer: pensar a cidade com essa lógica de cuidado integral.

E tem mais: aquele menino de 10 anos hoje, daqui a cinco anos vai ter 15. Se eu não fizer nada agora, ele pode ser cooptado pelo crime. A acupuntura social é investir hoje para mudar o destino dele amanhã.

 

 

O POVO — É possível perceber nas suas lutas que sempre existe uma preocupação muito grande com as crianças. A inclusão delas, a criação de oportunidades, o cuidado. Quando você pensa na infância e na juventude de Fortaleza, o que você vê?

Sérgio Farias — A primeira coisa que a gente precisa é de um projeto para esse complexo de conjuntos. A criança que nasce aqui nasce sem comunidade — e isso é muito ruim. O menino da classe média vai para o playground, para o shopping, vive em condomínio. Ele tem rede, tem referência. O menino daqui não tem isso. Ele vem de algum canto, muitas vezes sem nenhuma estrutura.

Tem um pivete aqui que participou da inauguração do Zona Viva e falou algo que me marcou. Ele disse: “Se eu não tivesse aqui com os caras do movimento, onde eu estaria? Trocando tiro.” Ele tem 13 anos. E ele já entendeu que há dois caminhos — e o mais difícil é trabalhar e estudar. Se eu dou oportunidade, ele escolhe o caminho certo.

Áreas de lazer sem manutenção estão tomadas por plantas, impedindo a utilização dos moradores(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Áreas de lazer sem manutenção estão tomadas por plantas, impedindo a utilização dos moradores

Se eu consigo pegar esse menino com 12, 13 anos e mostrar uma trilha, abrir horizontes, ele muda. O que eu quero é isso: dar oportunidade. Para que ele veja possibilidades, para que ele entenda que pode viver de outra forma.

O POVO — Você é uma pessoa muito ativa, que não tem medo de falar, que fala muitos nomes, que por vezes é tido como radical em suas manifestações. Ao longo da sua trajetória, você e sua militância já chegaram a ser vistos como um incômodo?

Sérgio Farias — Eu acho que boa parte dos gestores são extremamente preconceituosos — inclusive os nossos. E acredito que a única forma que a gente tem de se alimentar é chorando; a única forma de avançar é lutando.

Não sou moralista. Sei que governar é difícil. Mas, para mim, é simples: ser prefeito é ser prefeito, ser movimento é ser movimento.

Quando uma política pública é implantada sob o controle de um vereador clientelista, ela não funciona. Não importa quem esteja fazendo — se está errado, está errado.

Podemos estar cometendo um erro grave. Ter, por exemplo, 1.600 cozinhas populares funcionando, mas sem formar ninguém na base dessas cozinhas — além de entregar quentinhas — é insuficiente. Se tivermos 500 espaços como o Zona Viva, mas entregarmos para os mesmos vereadores que há anos controlam os CUCAs, sem conexão com a base, de nada adianta.

A gente acaba perdendo. Perdendo território, perdendo articulação de base, e depois tendo que pagar para fazer campanha — quando quem tem liderança legítima nunca precisou disso.

ParaTodosVerem: Sérgio Farias mexendo em um computador enquanto gesticula (Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO)
Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO ParaTodosVerem: Sérgio Farias mexendo em um computador enquanto gesticula

Ser radical, para nós, é pensar no futuro. É reconquistar o coração das pessoas, retomar os territórios, investir de verdade. Porque, se não fizer isso, a gente só enxuga gelo. Cria crianças numa linha de produção que depois serão mortas. Jovens mortos numa ciranda sem fim.

Já dissemos antes: “Daqui a pouco, vamos estar igual ao Rio de Janeiro.” E hoje, em alguns aspectos, estamos até pior — mais mortes, mais fragmentação dos territórios.

Mas é possível fazer diferente. As políticas existem. Só falta vontade — e não é só um “pouquinho de vontade”.

A dureza, às vezes, é necessária. O enfrentamento, também. O problema é quando essa é a única resposta do Estado: guarda armada, mais armas, mais repressão. Se tudo que eu proponho é arma, o que eu estou realmente oferecendo?

Não dá para comemorar a morte de um ser humano. A gente vive numa cidade onde, quando morre um menino no Jangurussu, a primeira pergunta é: “Era envolvido?” E se a resposta for sim, dizem: “Ah, então deixa. Menos um.”

Mas não é assim. Conheço vários meninos — entregadores — que morreram. A maioria eram jovens comuns, com sonhos, com histórias, com vontade de viver. Meninos que poderiam ser meus filhos.

 

 

O POVO — É de fato uma vida de luta. Quando você olha para sua história o te faz pensar algo como "cara, tudo isso valeu a pena"?

Sérgio Farias — Quando eu olho para cada menino do Parque Água Fria, penso em tudo que vivemos. Em 2022, tive um problema muito sério na minha vida. E naquele momento pensei: “Se eu morresse hoje, estaria realizado.” Porque eu acredito que a gente fez coisas muito grandes — não eu sozinho, mas nós, enquanto coletivo.

Sabe quando o cara repara em algo simples, um detalhe? Foi assim que eu percebi o tamanho do que construímos. Fizemos as maiores ocupações de Fortaleza, entregamos milhares de casas. Isso é enorme.

ParaTodosVerem: Sérgio Farias de costas caminhando pelo José Euclides. Em sua camisa a frase "vai ser sal"(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Sérgio Farias de costas caminhando pelo José Euclides. Em sua camisa a frase "vai ser sal"

Sou um vitorioso por ter vivido na Rocinha e não ter entrado para o crime. Sou um vitorioso por ter participado do MTST. E sempre que eu olho para esses meninos, eu digo: “Os pivetes escaparam, e os pivetes são importantes na nossa história.”

Mas nem todos escaparam. Perdemos alguns camaradas, sobretudo para o crack, ali no início dos anos 2000. Foi um tempo difícil. E mesmo assim, a gente resistiu, organizou, cuidou do coletivo.

E a gente foi entendendo, com o tempo, que o nosso papel não era apenas disputar eleições. Nosso papel era lutar pelo ônibus, lutar por um semáforo, pelo projeto Zona Viva, pela cozinha comunitária. Coisas concretas, que mudam a vida das pessoas.

Porque mudar um bairro de verdade exige luta. Não é uma canetada que transforma uma comunidade — é o povo, junto, se organizando e fazendo acontecer.



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