A porta já estava aberta quando Clevânia Bessa me recebeu na sala acolhedora e colorida de sua casa. Ao lado da filha, Maria Clara Bessa, ela nos recebeu — a mim e à repórter fotográfica Fernanda Barros — para compartilhar a história do marido.
Falecido em julho de 2024, Otacílio de Sá Pereira Bessa deixou o legado de uma educação que transforma. À frente da diretoria da Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra, acompanhou a trajetória da instituição pública até se tornar referência em aprovações em exames e vestibulares.
De 25 estudantes aprovados no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2009, para uma média de mais de 300 anuais a partir de 2014, números que ele gostava de reafirmar aos alunos.
Mais do que métricas, aquela fala carregava um significado profundo, que a escola estampou nas blusas e na memória coletiva: “Não po$$o, mas passo”. O lema reafirmava que estudantes da rede pública podiam e deviam ocupar seus espaços nas universidades federais.
Para Otacílio, o passo mais importante rumo à aprovação estava na convicção de que aquele lugar (as universidades) também nos pertencia.
Para mim, egressa do Adauto Bezerra e hoje estudante de Jornalismo em uma universidade federal, ouvir familiares e amigos e contar a história do educador que expandiu meus horizontes sobre o futuro é perceber que seu legado transcende o tempo.
Sentada na sala cuidadosamente decorada por ela, pelo marido e pelos filhos, Clevânia segura com ternura algumas fotos para nos mostrar. Alma gêmea e amiga de infância, relembra a vida do educador, com quem foi casada durante 40 anos, mas que conheceu a vida inteira.
Nascido em Fortaleza, em 1967, Otacílio Bessa era o oitavo de nove filhos. O parto difícil, em meio à medicina pouco desenvolvida da época, o trouxe ao mundo com riscos, “mas ele sobreviveu”, conta.
Desde pequeno, era uma criança calma, tranquila e estudiosa. Nunca foi de correr na rua ou gritar. Sua diversão estava em ler revistinhas no sofá ou cuidar dos muitos animais de estimação da família no quintal — um amor pela natureza que o acompanharia por toda a vida.
Aos cinco anos, contraiu poliomielite, a paralisia infantil. “Com a graça dos médicos da época e graças à mãe, que era muito determinada, ele não perdeu o andar, mas ficou com uma perna mais curta do que a outra. Aquele jeitinho de caminhar foi decorrente da paralisia infantil. A perna esquerda era mais curta e um pouco mais fina que a direita”, relata Clevânia.
Em 1979, quando Otacílio tinha 13 anos, ele e a família mudaram-se para a Bahia por questões financeiras. O pai, motorista, não conseguia trabalho suficiente para sustentar a extensa família. Um tio médico em Barreiras ofereceu uma oportunidade de emprego e um custo de vida mais baixo.
Otacílio viveu com a família na Bahia até concluir o ensino médio. Como as oportunidades educacionais eram limitadas na cidade interiorana onde morava, decidiu voltar à capital cearense para ingressar em uma universidade.
Em 1985, retornou com o objetivo de cursar Medicina, mas os planos precisaram ser interrompidos após a descoberta do câncer do pai. Durante o tratamento, tornou-se o principal provedor da família. Optou por cursar Geografia e passou a trabalhar em uma loja de tecidos.
Clevânia relembra que o marido era o único capaz de acalmar o pai quando este sofria crises de falta de ar provocadas pela metástase pulmonar. “Ele sentava o pai na cama, segurava sua mão e a colocava sobre o próprio coração. Então dizia: ‘Tá sentindo, painho? Vamos respirar com o meu coração? No ritmo que meu coração bater, o senhor respira’.”
Formado em Geografia, Otacílio ingressou na rede estadual de ensino em 1998, lecionando na Escola Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral Maria Alves Carioca (Caic), que hoje mantém uma biblioteca em sua homenagem.
Na entrada, uma placa de vidro exibe o nome da instituição e do homenageado, acompanhada de uma frase de Paulo Freire que traduz bem o legado de Otacílio: “O educador se eterniza em cada ser que educa.”
Em meus anos de Adauto Bezerra, e mesmo hoje, não é difícil encontrar jovens estudantes que afirmam querer tornar-se professores por influência do ex-diretor.
Defensor incansável do magistério, Clevânia relata que o orgulho do marido pela profissão era contagiante. Hoje, a filha, Maria Clara, segue seus passos na licenciatura em Letras-Inglês.
Essa influência, claro, não se restringiu à família. Márcio Andrade, formado e professor de História, conta que, antes de estudar no Adauto Bezerra, a licenciatura nunca tinha sido uma opção de carreira.
“Com o Otacílio, aprendi que optar por lecionar significa, antes de tudo, acreditar no poder da educação e, principalmente, no protagonismo dos estudantes frente a ela. E essas características ele tinha de sobra, sobretudo quando nos mostrava que a escola era, acima de tudo, um espaço de transformação, e fazia questão de que todos ali — professores, estudantes, funcionários — se sentissem parte dessa missão”, comenta.
O educador trabalhou no Caic até 2012, quando foi convidado pelo então diretor Humberto Mendes para sucedê-lo na direção do Adauto Bezerra.
Humberto recorda que Otacílio aceitou a transição como um grande desafio. Afinal, deixava um ambiente no qual já estava plenamente integrado para assumir uma escola com mais de cem professores.
A mudança, inicialmente, gerou certa incerteza na comunidade escolar, já que ele ainda não estava familiarizado com a realidade do Adauto Bezerra. No entanto, sua coragem foi logo reconhecida ao assumir esse novo papel.
Sua eleição acabou se revelando um encaixe perfeito na dimensão pedagógica. Além de um gestor competente, ele conquistava as pessoas pelo jeito de ser: a dedicação à educação, a delicadeza no trato e o respeito constante com todos.
Respeito e carinho que podem ser percebidos nos sentimentos que atravessam as falas dos professores e estudantes com quem conversei.
"Eu não tinha ele só como um diretor e sim um amigo", assim inicia a estudante Rebeca Vitória, atualmente no terceiro ano do ensino médio no Adauto Bezerra.
A estudante compartilha que logo que chegou na escola passou a perceber que ela era um profissional "diferenciado". Até então, em suas outras escolas, ela nunca tinha vivenciado um diretor tão próximo. "Ele estava sempre junto, elogiava a escola e estar lá. Chegava já perguntando como estávamos e como estavam as coisas".
Para Rebeca, estar em um ambiente que exalta o aluno como um protagonista é incentivador. Como se saber que o diretor e os professores confiam nos estudantes para chegar a um futuro brilhante tornava a possibilidade mais real e concreta.
Discípulo exímio de Paulo Freire, Otacílio defendia e aplicava uma gestão não verticalizada. Incentivava a participação e a construção coletiva dos projetos na escola, valorizando sempre o diálogo.
Quando o professor Leirton Carneiro chegou ao Adauto Bezerra, a convite de Otacílio, já estava aposentado da rede privada de ensino e estranhou a nova dinâmica de trabalho.
“No mundo em que eu vivia, a gente dizia o que ia acontecer. Com ele, não: era preciso construir junto. No começo foi difícil, porque eu estava acostumado a decidir e pronto, o sucesso era aquele. Mas com Otacílio, tudo era uma construção. Tudo o que ele fazia era coletivo, e isso foi um grande aprendizado para mim”, relata.
Agora professor de História há mais de dez anos na rede pública, Leirton ressalta que a construção coletiva impulsionada pelo ex-gestor gerava um forte sentimento de pertencimento, inclusive entre os professores: “Todos se sentem parte do processo e, assim, nasce um compromisso genuíno com a escola.”
Atualmente, a EEM Adauto Bezerra aguarda o resultado de um pedido protocolado na Secretaria estadual da Educação, que propõe a mudança do nome da escola para homenagear o educador que revolucionou com seus métodos de ensino.
A comunidade escolar considera a homenagem mais do que justa, diante da contribuição que ele deu à instituição — tanto em termos de ensino quanto de convivência. Se hoje os corredores animados da escola exibem o verde de uma rica natureza, muito se deve à paixão de Otacílio pelas plantas e pelos animais.
Paulo Silveira, também professor do Adauto Bezerra, recorda que Otacílio sempre recebia com entusiasmo as ideias trazidas por colegas. Fosse ao se caracterizar em atividades pedagógicas ou ao apoiar campanhas importantes, como a de doação de sangue.
“A palavra dele era protagonismo juvenil”, conta o professor de Educação Física. Ele lembra que Otacílio era uma pessoa genuína, sem receio de mostrar que também precisava aprender.
Um exemplo marcante para Paulo foi quando a escola passou a acolher um número significativo de estudantes trans. Alguns professores mais antigos manifestaram dúvidas sobre os pronomes e formas de tratamento a utilizar.
Pensando tanto na evolução acadêmica quanto na manutenção de uma relação conselheirista entre alunos e docentes, Otacílio propôs uma inversão simbólica de papéis: convidou os próprios estudantes para darem uma aula aos professores.
Foram histórias de uma paixão imensurável pela educação que renderam a Otacílio a Medalha Paulo Freire de Educação. A honraria hoje está exposta logo na entrada de casa, ao lado de seus bonequinhos, objetos de fé e fotografias da família.
Clevânia conta que aquele foi um dos poucos momentos em que viu o marido genuinamente ansioso. A entrega da medalha se tornou um dos três grandes momentos de felicidade na vida de Otacílio, ao lado do nascimento dos filhos e do casamento de Nicolas, recorda a esposa.
“Ele me disse: ‘Tô preocupado.’ Eu perguntei: ‘Por quê, meu amor?’ E ele respondeu: ‘Acho que não vai ninguém, é um horário ruim, quinta-feira, três horas da tarde.’ Aí eu olhei pra ele e falei: ‘Tu é tão simples, moço. Vai lotar.’”
Dito e feito. No dia 12 de junho de 2024, a Câmara Municipal de Fortaleza estava lotada para a Sessão Solene de entrega da Medalha Paulo Freire ao Professor Otacílio de Sá Pereira Bessa.
Em agosto de 2025, a Prefeitura de Fortaleza fortaleceu essa homenagem ao inaugurar o Centro de Educação Infantil Otacílio de Sá Pereira Bessa, multiplicando a presença e o simbolismo do grande professor.
Quando comecei esta matéria, pensei que precisaria dividi-la em duas partes: uma para mostrar o Otacílio professor e outra para o Otacílio pai.. Engano meu. O mesmo carisma e dedicação que ele transmitia na escola, transmitia também em casa.
Reunidos na sala, entre risos e lágrimas, a família contava entusiasmada os momentos vividos em viagens malucas e nas peripécias do pai — lembranças que se transformaram em inspirações para toda a vida.
Hoje, o que fica é a saudade e a certeza de que ele — marido, pai e professor — foi um ser humano iluminado. Após horas de conversa, que me fizeram prender a respiração, segurar lágrimas e rir pensando “É, ele era mesmo muito assim na escola”, Clevânia me contou sobre o famoso bolo Careca do Dudu.
A receita de infância, com nome caricato, resultava em um bolo mole que Otacílio fazia questão de oferecer a todas as visitas. Seguindo a tradição deixada pelo marido, comigo não foi diferente.
Com a ternura que transcende seu semblante, Clevânia me ofereceu um pedaço daquele bolo carregado de significados. Comi como quem prova uma memória. Infelizmente, não tive a oportunidade de pedir a receita.
Otacílio partiu em 2024, após uma longa batalha contra o câncer. Mesmo nos momentos mais delicados do tratamento, recusava-se a deixar o posto de diretor — ele amava estar na escola.
Não chegou a se aposentar. Convicto de sua recuperação, preferiu tirar apenas uma licença médica, com a intenção de retornar às atividades. O que talvez ele não imaginasse, mas que ficou evidente em todos os relatos que ouvi, é que seu legado transcende o físico.
Ele não precisa estar presente nas dependências da escola para ser sentido. Em cada corredor, em cada sala e nos detalhes cheios de significado de sua casa, Otacílio ainda está ali — e assim continuará por muitos anos.
Série vai explorar personagens - famosos e anônimos - para destacar histórias de vida