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Poço da Draga e campus Iracema: Acquário deixou medo de remoção, mas vizinhos esperam ponte
Reportagem Seriada

Poço da Draga e campus Iracema: Acquário deixou medo de remoção, mas vizinhos esperam ponte

Moradores convivem com estrutura encalhada há mais de dez anos sem destino e recebem anúncio de novo campus da UFC com receio, mas querem acesso e escuta no processo que deve afetar o entorno da comunidade centenária — prestes a completar 118 anos de memórias profundamente atracadas ao mar
Episódio 1

Poço da Draga e campus Iracema: Acquário deixou medo de remoção, mas vizinhos esperam ponte

Moradores convivem com estrutura encalhada há mais de dez anos sem destino e recebem anúncio de novo campus da UFC com receio, mas querem acesso e escuta no processo que deve afetar o entorno da comunidade centenária — prestes a completar 118 anos de memórias profundamente atracadas ao mar Episódio 1
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Uma orla margeada pelo turismo, uma obra encalhada, várias comunidades marejadas — pelas águas do oceano e pelo medo da remoção.

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 06-08-2023: Movimentação de pessoas na Ponte Velha do Poço da Draga logo após o fechamento da entrada da ponte na Praia de Iracema. (Foto: Samuel Setubal)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 06-08-2023: Movimentação de pessoas na Ponte Velha do Poço da Draga logo após o fechamento da entrada da ponte na Praia de Iracema. (Foto: Samuel Setubal)

Quem passa pela enseada oeste de Fortaleza, entre o Centro e a Praia de Iracema, aporta em uma região de profundezas: é a praia do Poço da Draga, uma comunidade centenária que luta contra a elitização do litoral entre as ruínas do que um dia já foi símbolo de progresso e a resistência de um povo que segue a corrente aberta por Chico da Matilde, o Dragão do Mar "Conforme narra em artigo no O POVO o antropólogo e professor Paulo Linhares, um dos idealizadores do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), o nome foi escolhido em homenagem ao líder jangadeiro Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, quando descobriu-se que o herói abolicionista guardava suas jangadas em uma das esquinas onde o complexo cultural viria a ser construído." .

Enquanto desce a avenida Almirante Tamandaré, percorrida no passado pelo líder jangadeiro, e se reúne para saltar da ponte (antes Metálica e hoje Velha), a juventude aventureira talvez nem imagine que aqueles são os resquícios do que foi o primeiro porto da Cidade, principal ponto de chegada numa época em que o porto do Mucuripe só existia em papéis e promessas.

Foto de 1935 mostra a atual Ponte Velha do Poço da Draga, primeiro porto de Fortaleza antes de surgir o do Mucuripe(Foto: Robert S. Platt/Biblioteca da Universidade de Wisconsin-Milwaukee)
Foto: Robert S. Platt/Biblioteca da Universidade de Wisconsin-Milwaukee Foto de 1935 mostra a atual Ponte Velha do Poço da Draga, primeiro porto de Fortaleza antes de surgir o do Mucuripe

Os vestígios estão por toda parte: rebatizado de praia da Carminha ou do Havaizinho pelos que jogam altinha ou praticam surfe, o trecho recebe o nome do povoado que remete justamente aos poços de água salina formados nas depressões onde atracavam as dragas "Embarcações que retiravam areia do fundo do mar." .

De um lado, o casco enferrujado do navio Mara Hope; do outro, o esqueleto do Acquário Ceará no terreno antes ocupado pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs); no meio, famílias de descendentes de pescadores, portuários e retirantes que formaram ali uma das primeiras favelas da Capital.

Talvez por isso, por ser um território de memórias profundamente atracadas à imensidão marítima, que o Poço da Draga, dentre todas as praias ao longo dessa extensão que beira o mar e tornou-se valorizada, é considerado a parte mais democrática.

FORTALEZA, CEARÁ,  BRASIL- 22.04.2024: Poço da Draga, percepção dos moradores sobre o novo campus Iracema da UFC na comunidade da Poço da draga, noção de extensão dessa comunidade, de distribuição das residências e de inserção na cidade.(Foto: Aurélio Alves/O POVO)
Foto: Aurélio Alves/O POVO FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL- 22.04.2024: Poço da Draga, percepção dos moradores sobre o novo campus Iracema da UFC na comunidade da Poço da draga, noção de extensão dessa comunidade, de distribuição das residências e de inserção na cidade.

Nesse lugar onde a grandeza não está nos prédios, mas sim nas pessoas, viver à beira significa ter o mar como quintal e uma das mais belas vistas para o pôr do sol de toda a orla fortalezense — mas também significa estar às margens e saber que “ao redor do buraco, tudo é beira”.

Prestes a completar 118 anos, a comunidade acompanha mais uma movimentação atípica no seu entorno: desta vez, o recente anúncio (divulgado em primeira mão pelo O POVO e descoberto pela maioria da comunidade através da imprensa) de que esse espaço, a partir de agora, será o campus Iracema da Universidade Federal do Ceará (UFC), parece dar um desfecho positivo a uma celeuma que já dura mais de dez anos.

Os detalhes ainda não são totalmente conhecidos, mas lá deverão funcionar o Centro Tecnológico de Ciências Naturais (CTCN) e os cursos dos institutos de Ciências do Mar (Labomar) "Atualmente, o Labomar abriga os cursos de graduação em Oceanografia e Ciências Ambientais, além do Programa de Pós-Graduação em Ciências Marinhas Tropicais, e vários laboratórios, que atendem às atividades de pesquisa, extensão e ensino. Com a transferência para o futuro Campus Iracema, pelo menos duas novas graduações estão previstas: Turismo Ecológico e Meteorologia."  e de Cultura e Arte (ICA) "O Instituto de Cultura e Arte (ICA) da UFC, que atualmente funciona no campus do Pici (apenas Jornalismo no campus do Benfica), abriga 9 cursos: Cinema e Audiovisual, Dança, Design de Moda, Filosofia, Gastronomia, Jornalismo, Música, Publicidade e Propaganda e Teatro. Na pós-graduação, recebe os programas de Artes, Comunicação, Filosofia e Gastronomia." .


Em artigo publicado em março, a arquiteta e urbanista Cláudia Sales salientou que “o projeto fará parte de um corredor cultural interligando os bairros Benfica, Centro e Praia de Iracema por meio de diversos equipamentos culturais”, mas lembrou também que “o Poço da Draga faz parte de um processo de 'enobrecimento' do espaço litorâneo voltado para o turismo”.

“Infelizmente, sabemos que, por vezes, grandes empreendimentos, mesmo cheios de boas intenções e com discurso ‘para todas as pessoas’, quando feitos sem a participação local, colaboram e aceleram o processo de gentrificação, acabando por ‘expulsar’ os antigos moradores de baixa renda, por conta da valorização imobiliária para acomodar os novos usuários gerados pelo empreendimento”, continuou.

A arquiteta acrescentou: “São inquestionáveis os benefícios educacionais e ambientais de um equipamento como o Labomar. Contudo, se este não vier com um estudo de impacto territorial e social para minimizar o processo de gentrificação do território do Poço da Draga, a UFC poderá estar colaborando para um processo de remoção completa da comunidade”.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 23.05.2019: 113 anos da comunidade do Poço da Draga.  (Fotos: Fabio Lima/O POVO)(Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima FORTALEZA, CE, BRASIL, 23.05.2019: 113 anos da comunidade do Poço da Draga. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

A esta reportagem, o reitor da UFC, professor Custódio Almeida, garantiu que “antes mesmo da concretização do campus Iracema, a Universidade já tem estreitado relações com as comunidades do Poço da Draga e da Vila dos Almirantes, que ficam na vizinhança das instalações”.

“Representantes das comunidades têm participado dos atos administrativos que deram início à transferência dos terrenos e edificações (respectivamente de posse do Dnocs e dos Correios) que comporão o campus por meio do projeto UFC nas Periferias, executado desde o início do ano com recursos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) e apoio da Central Única das Favelas (Cufa), a instituição já vem interagindo com o território do Poço da Draga”, afirmou em entrevista ao O POVO+.

O reitor adicionou que “a instalação de uma universidade é uma ação permanente e que, na verdade, convida para o seu entorno pessoas das mais diversas origens”.

Um trânsito de 3 a 4 mil pessoas conviverá diariamente com o bairro em cursos de graduação e de pós-graduação e ações de extensão. Além da ocupação diária, a Universidade assegura que manterá relações de aprendizado mútuo e cooperação, estendendo às comunidades a excelência e a qualidade características de suas atividades-fim”, disse Almeida.

Segundo Wilton dos Santos, conhecido como Piqueno, presidente da Central Única das Favelas (Cufa) no Ceará, entidade que instalou-se na comunidade em outubro de 2023, “a ideia que se dialoga é que grande parte dos universitários do País hoje vem de favelas e territórios populares. É hora da universidade ir para lá. Por coincidência, no dia que andávamos nos becos do Poço da Draga, o próprio reitor se deparou com duas alunas da UFC, confirmando nosso diagnóstico”.

“Estivemos juntos no diálogo de aquisição do terreno dos Correios, e vimos com bons olhos a reutilização do espaço em desuso. Recebemos a notícia com alegria, já que ter espaço público para inclusão numa área onde se tem o pedaço de terra mais caro da Cidade é para se comemorar todo o tempo”, reconhece.

Para Piqueno, o fato de essa ser uma região cobiçada pelos setores imobiliário e de turismo não deve fazer com que a instalação do campus expulse a comunidade: “Hoje as favelas já têm mais protagonismo político, hoje já estamos em outro patamar de luta e a capacidade de interlocução. No caso da UFC, como princípio construímos uma forma de relação horizontal. Nada acontece sem acordo comum”.

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 29-10-2023: Inauguração da nova sede CUFA Poço da Draga, com a presença do ministro Silvio Almeida, Preto Zeze, Piqueno, MV Bill e o Reitor da UFC Custódio Almeida. (Foto: Samuel Setubal)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 29-10-2023: Inauguração da nova sede CUFA Poço da Draga, com a presença do ministro Silvio Almeida, Preto Zeze, Piqueno, MV Bill e o Reitor da UFC Custódio Almeida. (Foto: Samuel Setubal)

Mas o que pensam e como ficam os moradores de um território constantemente ameaçado por iniciativas que chegam nessa região sob o argumento da revitalização diante de mais um alteamento de tapumes ao seu redor?

 

FORTALEZA, CE, BRASIL, 11-10-2018: Comunidade do poço da Draga em Fortaleza. (Foto: Júlio Caesar/O POVO)(Foto: Julio Caesar)
Foto: Julio Caesar FORTALEZA, CE, BRASIL, 11-10-2018: Comunidade do poço da Draga em Fortaleza. (Foto: Júlio Caesar/O POVO)

 

Quem dera ser um peixe

Era Carnaval de 2012 quando um mar de gente inundou as ruas do bairro Benfica sob um longo pano azul junto ao tradicional bloco Sanatório Geral. A marchinha do grupo “Unidos contra o Acquário” batizava também o movimento crítico à construção do oceanário gigante na Praia de Iracema e fazia referência ao refrão de uma clássica canção eternizada pela voz do compositor cearense Raimundo Fagner: ► Quem dera ser um peixe.

 

 

“Sem medo de peixe grande”, como se dizia o coletivo, esse foi apenas um dos diversos atos da onda de protestos e ocupações realizada pelos estudantes, ambientalistas, moradores e ativistas críticos ao projeto — idealizado em 2008 pelo então governador Cid Gomes para impulsionar o turismo no Ceará com aquele que prometia ser o maior aquário da América Latina e terceiro maior do mundo.

No entanto, além de contestada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e de ter começado antes da concessão de alvará, a obra polêmica com custo previsto de R$ 270 milhões enfrentava questões como falta de transparência, desapropriação de habitações para dar lugar a um estacionamento e consumo exacerbado de água enquanto outros municípios enfrentavam um forte período de estiagem.

Ao mesmo tempo, questionava-se a destinação elevada de recursos para uma infraestrutura “faraônica e nababesca” em prol do potencial turístico quando, literalmente ao lado, uma comunidade centenária carecia — como carece até hoje, mais de uma década depois — de serviços primários como saneamento básico.

Estrutura desenhada para o Acquário trazia 21,5 mil m² de área construída e 38 tanques-recinto de exibição com capacidade para 15 mi de litros de água. O projeto, impulsionado pelo anúncio de que Fortaleza seria uma das cidades-sede da Copa do Mundo em 2014, tinha 4 pavimentos com áreas de lazer, dois cinemas 4D, simuladores de submarino, equipamentos que proporcionam interação entre público e aquário e túneis submersos que levariam os visitantes(Foto: Divulgação/Setur)
Foto: Divulgação/Setur Estrutura desenhada para o Acquário trazia 21,5 mil m² de área construída e 38 tanques-recinto de exibição com capacidade para 15 mi de litros de água. O projeto, impulsionado pelo anúncio de que Fortaleza seria uma das cidades-sede da Copa do Mundo em 2014, tinha 4 pavimentos com áreas de lazer, dois cinemas 4D, simuladores de submarino, equipamentos que proporcionam interação entre público e aquário e túneis submersos que levariam os visitantes

505 famílias, mais de 2 mil pessoas "De acordo com levantamento mais recente da ONG Velaumar, fundada e mantida por moradoras da comunidade." , prestes a completar 118 anos de história e infinitas memórias profundamente atracadas ao mar: a comunidade do Poço da Draga é a principal vizinha desse esqueleto de concreto que, cercado por controvérsias, se tornou parte da paisagem de um território constantemente ameaçado por tentativas de remoção em uma região valorizada da orla de Fortaleza.

Sem destino certo, a estrutura consumiu mais de R$ 100 milhões em verbas públicas e permaneceu exposta por quase quinze anos — tempo mais do que suficiente para que a proposta inicial se corroesse junto à ferrugem das vigas.

O que continuou inoxidável, porém, foi a luta comunitária em defesa de sua permanência à beira da praia.

 

 

Poço da Draga: onde se aprende a nadar, depois a andar

“Como sempre, nós somos os últimos a saber de algo que vai acontecer dentro ou perto de nós. Soubemos dessa intenção de transformar esse espaço do Acquário através das redes sociais, por conta de uma matéria do O POVO”, conta a líder comunitária Cássia Vasconcelos.

Filha de portuário e neta da moradora mais antiga do Poço da Draga — dona Nilce, de 91 anos —, Cássia é testemunha de como o cotidiano dos habitantes da comunidade se banha da forte relação com o mar, materialmente reconhecida no Pavilhão Atlântico e na Ponte Velha, imaterialmente nas atividades e hábitos praieiros. “Aqui, as crianças aprendem primeiro a nadar, depois a andar”, narra.

A agente de cidadania e membro do coletivo Fundo da Caixa nasceu e criou-se acostumada a respirar o ar com cheiro de maresia, mas também a sentir constantemente o medo de perder essa sensação.

FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 06-08-2023: Movimentação de pessoas na Ponte Velha do Poço da Draga logo após o fechamento da entrada da ponte na Praia de Iracema. (Foto: Samuel Setubal)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 06-08-2023: Movimentação de pessoas na Ponte Velha do Poço da Draga logo após o fechamento da entrada da ponte na Praia de Iracema. (Foto: Samuel Setubal)

Isso porque com a organização de cidade que passou a reservar esse espaço para o lazer e turismo de camadas mais abastadas da sociedade, as ocupações urbanas mais pobres — sejam as formadas por remanescentes das secas ou por estivadores e pescadores — passaram a sofrer pressões como especulação imobiliária e gentrificação em direção às periferias.

“Dentro da perspectiva do Acquário, ficou na gente aquele medo da remoção, até porque ele começou a ser construído sem a consulta da população. Diziam que ia gerar empregos, mas aí eu te pergunto: que empregos? Todo emprego é digno, claro, mas nós sabemos que o que resta para a comunidade são sempre os subempregos”, aponta.

Cássia assegura: “Não somos contra nenhum progresso que fomente cultura, educação, economia. Somos a favor, a informação é imprescindível e precisa chegar na periferia, pra quem mora na beira da desigualdade social, porque através do estudo você cria oportunidades. Mas aqui também tem seres pensantes, a gente quer participar desse processo, a gente quer ser ouvido e que isso seja levado em consideração. Porque não foi isso que aconteceu. Soubemos pelas redes e só depois a UFC entrou em contato, e ainda com uma instituição que nem existia dentro da comunidade”.

FORTALEZA, CEARÁ,  BRASIL- 22.04.2024: Poço da Draga, percepção dos moradores sobre o novo campus Iracema da UFC na comunidade da Poço da draga, noção de extensão dessa comunidade, de distribuição das residências e de inserção na cidade.(Foto: Aurélio Alves/O POVO)
Foto: Aurélio Alves/O POVO FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL- 22.04.2024: Poço da Draga, percepção dos moradores sobre o novo campus Iracema da UFC na comunidade da Poço da draga, noção de extensão dessa comunidade, de distribuição das residências e de inserção na cidade.

“Você não entra na casa de ninguém pra dizer o que o dono deve fazer na casa dele. Ele sabe o que ele está precisando. Somos nós que sabemos e entendemos a cultura desse local, porque moramos aqui e lutamos por esse lugar todos os dias das nossas vidas. Quando essa grande estrutura veio, nós fomos impedidos de acessar a praia com tapumes. E, enquanto você vem com essa estrutura que ficou mais de dez anos parada, você tem o abandono de política pública dentro da comunidade. São 118 anos sem um saneamento básico”, manifesta.

Ela salienta que houve uma aproximação do reitor Custódio Almeida após o anúncio, ainda que mediada por uma instituição instalada há pouco tempo no local, mas avalia o contato como “superficial”: “uma passagem, uma andada, como é costumeiro fazer. Na assinatura com o ministro (da Educação, Camilo Santana), pode puxar as imagens, não tem a comunidade. Foi tudo rápido, você fica sabendo das coisas pela internet. Isso não é legal”.

A queixa é compartilhada entre outros moradores que, segundo Cássia, têm receio de que esse seja mais um espaço que a comunidade não tem acesso, “mais um muro a deixando invisibilizada”.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 20-12-2013: Tapumes no Pavilhão Atlântico, no Poço da Draga, na Praia de Iracema, colocados pela Secretaria do Turismo (Setur) para obras do Acquário do Ceará. Construção de tapumes na comunidade Poço da Draga na Praia de Iracema. (Foto: Evilázio Bezerra/O POVO)(Foto: EVILÁZIO BEZERRA)
Foto: EVILÁZIO BEZERRA FORTALEZA, CE, BRASIL, 20-12-2013: Tapumes no Pavilhão Atlântico, no Poço da Draga, na Praia de Iracema, colocados pela Secretaria do Turismo (Setur) para obras do Acquário do Ceará. Construção de tapumes na comunidade Poço da Draga na Praia de Iracema. (Foto: Evilázio Bezerra/O POVO)

“Você acha que esse jovem (daqui) se sente pertencente desse todo? O Dragão (Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura) até que está mudando com a nova gestão, mas a gente passou muito tempo sem se ver lá. Nossa referência era ‘atrás do Dragão’, ‘atrás da Caixa Cultural’, agora vai ser ‘atrás da UFC’? A gente quer acesso, quer participar, ser a base, o alicerce para isso que está vindo, para que não seja apenas mais um equipamento que está chegando”, afirma.

Reconhecida como Zona Especial de Interesse Social (Zeis) prioritária, a região atualmente passa por obras que fazem parte do projeto de requalificação da Praia de Iracema realizado pela Prefeitura de Fortaleza. Intervenções que são bem-vindas, de acordo com a líder comunitária.

“Há muito tempo nós fomos abandonados. A (avenida) Beira Mar ia só até o Pirata Bar, agora as pessoas vêm até a nossa porta. Elas já sabem que existe um lugar que respira e inspira resistência e cultura. Não acaba aqui; pelo contrário, começa aqui. A gente é esse lugar”, pontua.


Pedagoga e fundadora da ONG Velaumar, Izabel Lima também é moradora do Poço da Draga e lamenta: “tanto dinheiro jogado fora (com o Acquário) e sequer pensaram em colocar um cano para correr os dejetos aqui da favela ou água potável nas nossas casas”.

“Mesmo que a gente tenha baixo poder aquisitivo, a gente paga tributo, e tributo é para ser distribuído em direitos. Direito à saúde, à educação, à vida, à moradia. E isso até hoje a gente não tem, vai fazer 118 anos no dia 26 de maio de total abandono do Poder Público municipal e estadual. Aqui somos nós por nós. A gente luta para que cada dia se torne um dia melhor porque somos uma das maiores potências da orla de Fortaleza e vamos sempre lutar para permanecer no nosso lugar de origem, no nosso núcleo inicial”, defende.

Com a chegada do campus universitário, Izabel acredita que “talvez o saber acadêmico agora possa ser alimentado de uma forma mais humana”: “Aqui também tem saber, um saber popular, um saber de resistência. Qualquer intervenção nesse território interfere diretamente na condição de vida de cada um de nós aqui. Os impactos econômicos são muito fortes. Então que eles venham com esse cuidado, essa transformação urbanística precisa ser avaliada, discutida, dialogada junto com a gente. Porque quem faz essa Fortaleza real somos nós das comunidades”.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-02-2015: Vista do Acquario Ceará, localizado na Praia de Iracema que novamente está com obras paradas. (Foto: Tatiana Fortes/O POVO)(Foto: TATIANA FORTES)
Foto: TATIANA FORTES FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-02-2015: Vista do Acquario Ceará, localizado na Praia de Iracema que novamente está com obras paradas. (Foto: Tatiana Fortes/O POVO)


Formada a partir dos primeiros habitantes (jangadeiros, ex-escravizados, descendentes de povos originários e migrantes do êxodo rural), nessa localidade o trabalho se fez através de atividades como pesca, estiva, capatazia, comércio de alimentos, fabricação de pequenas embarcações e serviços de carpintaria.

Ao fincar das primeiras estacas que levaram à construção do porto, o povoado consolidou-se como uma comunidade organizada a partir de sua via principal: o viaduto Moreira da Rocha. A mão-de-obra, então, passou a praticar, também, atividades portuárias.

O tempo passou, o porto deixou de ser porto e, ao longo dos anos, as gerações seguintes se adaptaram a outros meios. Hoje, além de pescadores, estivadores e portuários, o Poço da Draga é formado por professores, costureiras, merendeiras, cabeleireiros, manicures, cozinheiras, comerciantes, atletas, artesãos e artistas, advogados, geógrafos, pedagogos, fisioterapeutas, administradores, psicólogos, zootecnólogos, dentistas.

Exposição na ONG Velaumar celebra 116 anos da comunidade do Poço da Draga, que estabeleceu morada na região da Praia de Iracema e luta para manter a tradição dos povos do mar(Foto: Divulgação/Unifanor)
Foto: Divulgação/Unifanor Exposição na ONG Velaumar celebra 116 anos da comunidade do Poço da Draga, que estabeleceu morada na região da Praia de Iracema e luta para manter a tradição dos povos do mar

Ao som das ondas também formaram-se profissionais de audiovisual e produção cultural, fotógrafos, pedreiros, mestres de obra, soldadores, mecânicos, marceneiros, pintores, vendedores, técnicos de som, músicos, treinadores, capoeiristas, obreiros, pastores, secretários, recepcionistas, motoristas, padeiros, paisagistas, agentes de saúde, policiais, técnicos de recursos humanos e tantos outros.

Quem elenca toda essa história é o geógrafo Sérgio Rocha, outro morador do Poço da Draga e idealizador do projeto de turismo comunitário Rolê na PI, acompanhou a equipe da UFC durante uma visita à comunidade e diz que viu “com bastante simpatia a proposta da Universidade”.

“O que acontece muito quando vem um equipamento desses é nos colocar numa situação em que não nos manifestemos. Antigamente tentavam nos pegar (sic) perguntando: o que vocês têm a dar para a sociedade? Se não têm nada a dar, é melhor ir para ali (outro bairro). A gente era coagido. Hoje não mais. Estão refinando a forma de lidar conosco”, assegura.

FORTALEZA,CE, BRASIL, 01.04.2023: Sérgio Rocha, geógrafo, nascido e criado na comunidade do Poço da Draga. "O Mar como quintal" vai retratar a experiência de quem mora próximo à praia em diversos pontos da orla de Fortaleza, da Barra do Ceará à Sabiaguaba. (Foto: Aurélio Alves)(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES FORTALEZA,CE, BRASIL, 01.04.2023: Sérgio Rocha, geógrafo, nascido e criado na comunidade do Poço da Draga. "O Mar como quintal" vai retratar a experiência de quem mora próximo à praia em diversos pontos da orla de Fortaleza, da Barra do Ceará à Sabiaguaba. (Foto: Aurélio Alves)

Rocha cita a relação com o CDMAC como exemplo: “é uma relação de vizinhança, porém não de significância a nível integrado com a proposta do equipamento. Poderia ter muito mais e com a chegada do equipamento federal pode alavancar, mas desde que seja no formato de via de mão dupla, bilateral e a nível participativo”.

Sobre as críticas do setor turístico à nova destinação dada ao Acquário, o geógrafo relata que já eram esperadas: “O setor de turismo desconhece o potencial que temos. Não representamos uma pedra no sapato para o desenvolvimento e progresso da nossa Cidade. Nós podemos, na verdade, ser uma rampa. Um atrativo para o turista ficar aqui seria uma valorização do Centro histórico, por exemplo”.

“Nós estamos dentro de um território que é patrimônio da União, do povo brasileiro, e a União não pode desalojar ou remover moradores. Só em caso de guerra ou risco iminente à vida, que seria encosta de montanha, alagadiço, lagoa, rio. Chuva é um fenômeno que pode ter seus efeitos, mas pode ter também a sua resolução via mecanismos de engenharia com o escoamento pluvial”, avalia.

Nilce Costa Vasconcelos, moradora mais antiga da comunidade do Poço da Draga(Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima Nilce Costa Vasconcelos, moradora mais antiga da comunidade do Poço da Draga

“Não somos área de risco, precária e violenta. Fomos sujeitados a essas três tipologias pelo fato de justamente termos sido desassistidos há décadas pelos segmentos municipal, estadual e federal que nos classificam como tal. Eu moro no Poço da Draga, um núcleo habitacional na Praia de Iracema, um núcleo portuário, um núcleo litorâneo, uma comunidade praieira oriunda da seca de 1877”, reflete.

Para o aniversário de 118 anos, comemorado em 26 de maio, Sérgio explica que “essa data significa a compreensão de um fenômeno que ocorreu em Fortaleza, que é o uso do litoral para moradia, comércio, lazer. Os segmentos dominantes não viam esse lugar como apropriado. Nós somos início disso e pegamos emprestada a data da ponte porque ela é o símbolo máximo da gente”.

 

 

Vila dos Almirantes e Vila de Iracema: navegar é preciso, viver também

Menos conhecida, mas também parte da vizinhança no entorno do futuro campus Iracema, a Vila dos Almirantes é outra comunidade que acompanha com atenção a movimentação no território.

Situada entre a avenida Almirante Tamandaré e a rua dos Pacajus, a vila de cerca de 30 famílias formou-se a partir de 1930 em um terreno que é de propriedade da União, cortado por um muro do complexo operacional da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos que funciona ao lado desde 1970.

Em junho de 2023, a área foi alvo de uma ação de reintegração de posse movida pela empresa, que pouco depois voltou atrás e suspendeu o processo a fim de buscar um consenso sobre a situação junto aos residentes. Menos de um ano depois, contudo, em cerimônia no Palácio da Abolição no início de fevereiro de 2024, um protocolo de intenções foi assinado para a transferência da titularidade do imóvel que pertencia aos Correios à UFC para compor o novo campus da Universidade.

Fortaleza, CE, BR - 09.06.23   -Vista aérea da Vila Almirante ou (Vila dos Correios) na Praia de Iracema (Fco Fontenele/OPOVO)(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Fortaleza, CE, BR - 09.06.23 -Vista aérea da Vila Almirante ou (Vila dos Correios) na Praia de Iracema (Fco Fontenele/OPOVO)

 

Em virtude desse processo, conforme narra a moradora Daysiane Rocha, representante da Vila no Conselho Gestor da Zeis Poço da Draga, o local ficou em evidência.

“No ano passado começou o burburinho de que seria a futura UFC. Nós participamos de uma reunião com o reitor e ele conheceu algumas lideranças para entender como seria essa futura vizinhança. A gente espera que seja positivo, tanto para gerar emprego quanto para melhorar a educação”, declara.

Expectativa também de ourives José Arteiro, de 64 anos, nascido e criado na Vila, que lembra do dia em que foram acordados com policiais e uma ordem de despejo. “Aí nos reunimos e procuramos apoio do Escritório Frei Tito, que nos resguarda até hoje”, lembra o também membro do Conselho Gestor da Zeis.

“Nós queremos nossas moradias preservadas e que haja melhorias no entorno. Vias melhoradas e segurança. A comunidade continua desassistida, sem saneamento. Esperamos uma coisa harmônica, como o próprio reitor falou”, expõe.

Antigo prédio do Dnocs na praia de Iracema, demolido para dar lugar ao Acquário Ceará. Ao fundo, o edifício Vila de Iracema(Foto: Reprodução/Fortaleza em Fatos e Fotos)
Foto: Reprodução/Fortaleza em Fatos e Fotos Antigo prédio do Dnocs na praia de Iracema, demolido para dar lugar ao Acquário Ceará. Ao fundo, o edifício Vila de Iracema

Construção datada dos anos 1980, o edifício Vila de Iracema também está entre os vizinhos do futuro campus da UFC. São 94 unidades de apartamentos, a maioria com quatro moradores cada. De acordo com a síndica e moradora Rosa Keller, o que chegou de informações sobre o novo polo acadêmico foi apenas o que saiu nos veículos de comunicação. 

“Soubemos do evento no Palácio, da votação que teve na Alece, assinatura de protocolo e ponto. Ainda não nos foi apresentado o projeto, o que vai acontecer, qual o tamanho, qual o impacto que vai causar, se o nosso direito de vizinhança está garantido ou não. Então ainda resta eles fazerem isso”, destaca.

“Primeiro foram ao governador, que aprovou, depois a Assembleia, que aprovou, agora a gente espera que apresentem aqui de alguma forma, porque ainda não sabemos como vai ser. O ex-governador Cid Gomes veio aqui, fez um discurso bonito na recepção do nosso prédio falando que a gente não precisava se preocupar, que ia ficar tudo bem, a gente ia ter emprego muito perto de casa, ia ter geração de emprego e renda. Mas depois baixou um decreto de desapropriação, né? Uma verdadeira traição ao povo e contradizendo tudo o que ele afirmou aqui para todos nós”, rememora.

 

Rosa expressa: “Não sei se o atual governador, o Elmano, se ele usa das mesmas práticas, mas a gente espera que esse projeto seja apresentado para conhecer que tamanho ele tem, se o entorno está seguro. Caso contrário, será uma outra grande luta contra a obra, porque a população não pode ser o último item das preocupações. Tem que ser o primeiro. E o entorno, e os vizinhos, como ficam?”

A movimentação mais recente da tramitação legal foi a aprovação, no dia 2 de abril, pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece), do Projeto de Lei nº 21/2024, que autorizava o Governo do Estado a doar à UFC as edificações, benfeitorias e acessões construídas no local do antigo empreendimento Acquario Ceará.

Antes disso, o Conselho Estadual de Gestão de Ativos (Conag), responsável pela autorização e gestão de bens do Estado, já havia aprovado a doação.

“Esperamos que todas as pendências burocráticas e cartoriais estejam concluídas até o final do mês de abril para encerrar a transferência de maneira definitiva e, em seguida, preparar o projeto executivo e a licitação a ser aberta, que seguirá os prazos previstos na legislação específica. Nossa expectativa é de que no primeiro semestre de 2026 o Labomar já esteja funcionando na nova sede”, explicitou o reitor Custódio Almeida ao O POVO+.

Confira, no episódio 2 desta reportagem seriada, o que pensam professores e estudantes do futuro campus Iracema sobre a maré de mudança que se anuncia.

"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

 

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Série de reportagens mostra os desdobramentos do anúncio do campus Iracema da UFC na estrutura do Acquário Ceará entre as comunidades afetadas — dos moradores do entorno aos estudantes e professores que acompanham a maré de mudança