Antes de ser reverenciado e devotado e pelos romeiros, cantado e rimado nos repentes pelos feitos de pastor dos pobres e espalhado nas preces sertanejas, Padre Cícero foi também muito mal falado em vida. Era cercado das intrigas dentro e fora dos corredores e gabinetes eclesiásticos. Situações abertas em artigos e matérias nos jornais da época, ou os murmurinhos e cochichos maledicentes alimentados por correspondências do Alto Clero local ou chegavam até a Cúria Romana, no Vaticano.
Ganhou inimizades importantes.
O então bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, era um que não se dava muito bem com Cícero Romão Batista. Ele próprio denunciou a desobediência do capelão de Juazeiro do Norte. E articulou o pedido de punição ao padre, suspenso das ordens sacerdotais em 1892. A acusação no processo eclesiástico foi atrelada principalmente ao episódio da hóstia que se tornou sangue na comunhão da beata Maria de Araújo, em 1889. A missa, na capela Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, era celebrada pelo Padre Cícero, quando o fenômeno aconteceu diante de todos os presentes. Logo se espalhou como notícia de um milagre, mas também de fanatismo e embuste.
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Qual o desapontamento do bispo com o Padim? Ele não soubera do caso da hóstia diretamente pelo sacerdote, mas através de terceiros dias depois, pela imprensa, por notícias dadas por outros padres, que voaram até seu ouvido. Segundo o professor e pesquisador Renato Casimiro, cinco anos antes da hóstia virar sangue, dom Joaquim esteve em Juazeiro do Norte e teria sabido pouco antes do misticismo que se espalhava em torno da jovem Maria de Araújo .
"O bispo andou aqui no Cariri em 1884 e padre Cícero falou com ele, que tinha essa devota, que apresentava características consideradas preocupantes quanto a visões, uma figura mística. O bispo recomendou a ele cuidados, atenções, mas isso evoluiu positivamente até o fenômeno em 1º de março de 1889", descreve o pesquisador. Mesmo assim, Cícero seguiu com a imagem de rebelde. "Ele foi punido, dentre outras coisas, por esse fato, por não ter manifestado essa obediência absoluta ao seu superior, ao seu diocesano".
A capelania do Padim Ciço acabou passando a um regime de intervenção eclesiástica, por parte do então vigário do Crato, padre Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva - depois monsenhor e bispo da diocese do Ceará. Àquela época Juazeiro ainda era um povoado cratense. Os questionamentos, a partir daí, também saltaram internamente a favor de Cícero Romão Batista. Se os fatos ocorridos em Juazeiro eram ou não reais. A Igreja movimentou-se com o caso.
Amigo de Lampião
Seu envolvimento com políticos controversos, como Floro Bartolomeu (que emprestou armas a jagunços durante a Sedição de Juazeiro, em 1914, guerra ao governo estadual da época) ou o cangaceiro Lampião (a quem teria dado guarida numa visita que ele fez à cidade, em 1926), arranharam sua imagem publicamente, já fora dos muros da diocese cearense. Lampião era devoto dele. Sempre em fuga pela caatinga, o respeitava à distância. Muitos quiseram que o padre o entregasse à prisão, mas ele declarou que não era polícia, e assim se manifestou. Foi tratado como protetor de bandido, politiqueiro junto aos fiéis, de ser milionário a partir de doações e esmolas repassadas pelos romeiros. Cícero seguia lotando as sessões de confissão e aconselhamento. Relevava as críticas.
Sobre o assunto:
Numa entrevista ao jornal Imparcial, de São Luís do Maranhão, reproduzida no O POVO em 11 de setembro de 1928, o advogado R. Gomes de Mattos, que já havia atuado a favor dele em causas recentes, assim o avaliou (grafia da época): "Pintam-no como um bonzo, um manipanso, como um segundo tomo correcto e augmentado de Antonio Conselheiro (...) Esse aspecto grosseiro a seu respeito, desnaturador das suas qualidades de caracter e intelligencia, é o resultado de se haver intromettido no lamaçal da politicagem cearense(...) Esse gravissimo erro por elle cometido - tornar-se político - de pastor queridíssimo que era perante todos, sem uma inimisade, sem um desaffecto, lhe tem acarrectado dissabores.(...) Desde então o pe. Cicero ficou, como o Janus mithologico, com duas caras ou duas feições - homem santo, homem diabo”.
Quando Padre Cícero morreu, em 1934, a própria Igreja apostou que a peregrinação a Juazeiro diminuiria e acabaria, mas o romeiro continuou seu itinerário à "Meca do Cariri" - como era chamada no início do século passado. Os fatos seguintes acabaram sendo outros, como conta Renato Casimiro: "E Padre Cícero havia dito: 'Quando eu morrer, continuem vindo para visitar Nossa Senhora das Dores, visitar o Sagrado Coração de Jesus, de Maria. E os romeiros vieram, silenciosamente, sem brigar, resilientes". Santificou-se para o povo, mesmo sem a oficialização da Igreja.