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Festival Anos 2010, 10 Olhares articula olhares curatoriais para a produção audiovisual da década
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Festival Anos 2010, 10 Olhares articula olhares curatoriais para a produção audiovisual da década

Evento disponibiliza mais de 70 filmes divididos em 10 sessões curadas por convidadas e convidados que propõem olhares distintos para a produção nacional da última década
Tipo Notícia
'Movimentos fabulares', olhar de Kênia Freitas, traz o curta 'Kbela', dirigido por Yasmin Thayná (Foto: Kbela / divulgação)
Foto: Kbela / divulgação 'Movimentos fabulares', olhar de Kênia Freitas, traz o curta 'Kbela', dirigido por Yasmin Thayná

Em "O olhar opositor: mulheres negras espectadoras", a pesquisadora estadunidense bell hooks recupera memórias da infância para dar partida a um pensamento sobre olhar e ser olhada: das punições por "encarar" a desviar o olhar quando preciso. “Existe poder em olhar”, atesta. Tal ideia ressoa na realização do festival virtual Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 Olhares, que lança pontos de vista para a produção audiovisual do País da última década. O evento começa hoje, 22, e segue até o dia 30 disponibilizando mais de 70 filmes entre longas e curtas.

Co-dirigido por Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita, o documentário 'Martírio' lança olhar histórico profundo à resistência dos Guarani Kaiowá. Filme está na programação do festival
Foto: Martírio / divulgação
Co-dirigido por Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita, o documentário 'Martírio' lança olhar histórico profundo à resistência dos Guarani Kaiowá. Filme está na programação do festival

Esta é a terceira edição do festival que, como explica o idealizador Eduardo Valente, surgiu em 2001, em parceria inicial com o crítico Ruy Gardnier, na intenção de mirar a produção da década anterior, marcada pela chamada retomada do cinema brasileiro pós-Collor. “Nos pareceu interessante naquele momento, a partir dos filmes que estavam começando a ser feitos em maior quantidade e com maior variedade, tentar dar uma olhada na produção”, inicia Eduardo.

 
 
 
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A 2ª edição foi realizada em 2011, observando a produção dos anos 2000, e a terceira ocorre agora. A opção do evento é construir “retratos” da filmografia da década anterior no “calor da hora”, escolha que vem como antídoto aos senões do olhar distanciado. “A possibilidade de olhar no calor da hora evita que certas cristalizações históricas se realizem e que você vá reproduzi-las quando olhar 10, 15, 20 anos depois”, aponta.

De Aline Motta, 'Pontes sobre Abismos' está disponível na programação do festival dentro do olhar 'O corpo, novamente: notas sobre a Terra Brasilis', de Heitor Augusto
Foto: Pontes Sobre Abismos / divulgação
De Aline Motta, 'Pontes sobre Abismos' está disponível na programação do festival dentro do olhar 'O corpo, novamente: notas sobre a Terra Brasilis', de Heitor Augusto

“Embora as cristalizações históricas reforcem a presença de obras importantes, elas acabam criando certas distorções de percepção do todo”, considera Eduardo. “Sabemos que o calor da hora impede de ver determinadas coisas que o tempo vai dar, mas achamos que o interessante é conseguir fazer as duas coisas”, discorre.

Somada a esta intenção primeira do evento, a edição de 2021 teve que lidar com os imperativos da pandemia. Entre as adaptações, Valente destaca a virtualidade. “Ela passou a ser muito decisiva inclusive na seleção, porque muda muito os tipos de filmes que a gente consegue ter disponível de maneira gratuita num site de uma mostra por um determinado período. Isso modifica a lógica de como pensar a estrutura”, afirma.

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O ponto principal de mudança, porém, veio antes, a partir da necessidade de - neste momento de alargamento do cinema brasileiro - alargar também os olhares. Daí o convite feito a 10 curadoras e curadores, que estruturaram uma sessão cada com curtas e/ou longas da década a partir de recortes próprios. “Tentei criar um painel de pessoas que tivessem sido muito ativas como propositoras de olhares a partir de projetos de curadoria e programação ao longo dos anos 2010”, explica Eduardo.

O longa cearense 'Inferninho', de Guto Parente e Pedro Diógenes, compõe o olhar 'Mundo em Desencanto', do programador do Cinema do Dragão Pedro Azevedo
Foto: reprodução
O longa cearense 'Inferninho', de Guto Parente e Pedro Diógenes, compõe o olhar 'Mundo em Desencanto', do programador do Cinema do Dragão Pedro Azevedo

Propõem os olhares a equipe do festival CachoeiraDoc e as pesquisadoras e curadoras Carol Almeida, Cléber Eduardo, Erly Vieira Jr., Heitor Augusto, Janaína Oliveira, Kênia Freitas, Leonardo Bomfim, Pedro Azevedo e Rafael Parrode.

Entre os recortes propostos, estão reflexões desde o cinema sobre territórios, urbanidade, realismos, corpos em vida, olhares ao cotidiano, fabulações, divisões narrativas, desencantos políticos, dispositivos, contemporaneidade e mais uma infinidade de possibilidades em cada sessão.

 
 
 
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A doutora em Comunicação pela UFPE e pesquisadora de cinema contemporâneo brasileiro Carol Almeida propôs, por exemplo, o olhar “A cidade e as brechas ocupadas”, dedicado a filmes sobre ocupação de espaços urbanos por corpos não-cisheteronormativos - “e, portanto, corpos que mantêm com o espaço urbano uma relação de enfrentamento ainda mais direta”, aponta a curadora.

“A produção que vimos chegar aos festivais de cinema (bem mais do que às salas comerciais) durante os anos 2010 esteve sempre muito atenta ao debate sobre o direito à cidade, mas alguns filmes em particular fizeram esse debate se manifestar nas bordas do discurso”, elabora Carol. Entre as obras que compõem a sessão, está o longa cearense "Tremor Iê", construído coletivamente por Elena Meirelles, Lívia de Paiva, Deyse Mara, Lila M Salú e Petrus de Bairros. “O recorte de olhar que faço tenta trazer alguns dos filmes que souberam cultivar vida nas rachaduras desses ‘cistemas’”, dá conta.

Nos demais olhares, há ainda outros longas de direção cearense - “Praia do Futuro", "António Um Dois Três", "Medo do Escuro", "Inferninho" e "Canto dos Ossos" - e obras como "Luz nos Trópicos", "Vaga Carne", "Café com Canela", "Baixo Centro", "Um Filme de Verão" e "Martírio".

 
 
 
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Junto das sessões, o festival disponibiliza textos curatoriais e conversas gravadas com pessoas convidadas, além de texto editorial do idealizador, catálogo e, ainda, um levantamento dos longas produzidos no período. “Foi uma década com uma produção muito grande. Tá em torno de 2 mil longas em 10 anos”, indica Valente.

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O tamanho da produção, ele analisa, foi fruto da junção “do barateamento da produção com questões que têm a ver com a política pública, a consolidação e o aumento da disponibilidade de recursos”. O fato da década ter começado neste cenário frutífero e encerrado, a partir de 2016, com ações de descontinuidades e esvaziamentos do setor cultural deixa mais próximo da visão o desencanto e o desestímulo.

Articular os olhares passados entre si, porém, pode ajudar não somente a dar perspectiva histórica, mas apontar possibilidades de porvir. "Sobre o futuro é um momento muito difícil de falar. Posso dizer que não tenho dúvida que o cinema brasileiro continuará existindo. Temos pouca clareza sobre o futuro do mundo, do Brasil especialmente, no contexto da pandemia, no político. O cinema de um país não está descolado da realidade dele. É muito difícil, quando se está no meio de uma ruptura, traçar linhas para o futuro. Difícil fazer prognósticos específicos para além do fato de que tenho certeza que o audiovisual continuará sendo produzido em quantidade enorme pelo Brasil inteiro e terá muita coisa a ser discutida daqui 10 anos”, antevê Valente.

Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 Olhares
Quando:
de 22 a 30 de abril
Onde: www.10olhares.com

Olhares, indicações, futuros

Pelas escolhas dos filmes, pelo texto curatorial que escreveram e pelas ideias divididas nas conversas referentes a cada sessão, as curadoras e curadores que construíram os 10 olhares que compõem o festival já falam muito sobre as propostas que ofertam ao público. Na intenção de mergulhar em questões e ressaltar diálogos entre os recortes, o Vida&Arte contactou as integrantes da equipe curatorial e fez duas propostas: que indicassem um filme de outra sessão que considerem importantes de serem acessados neste momento e, também, que dividissem vislumbres de futuro sobre a produção do cinema brasileiro dos anos 2020. A partir dos convites do V&A, desenhou-se uma forte imbricação dos filmes "passados" com as possibilidades de futuro. Entre abordagens especulatórias e desejosas, ofertam-se, aqui, mapeamentos que indicam, como afirma a curadora Janaína Oliveira, que "o futuro é agora".

Amaranta Cesar é professora de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e idealizadora do festival CachoeiraDoc
Foto: reprodução
Amaranta Cesar é professora de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e idealizadora do festival CachoeiraDoc

Amaranta César (CachoeiraDoc) - Desaguar em cinema: retomar territórios invadidos

Indicação: “Café com Canela”, programado por Janaína Oliveira. Como o CachoeiraDoc, o filme de Ary Rosa e Glenda Nicácio tem seu umbigo enterrado no curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, por assim dizer. Violeta, sua personagem principal, atravessa cotidianamente a ponte que liga as cidades de Cachoeira e São Félix, amansando o luto por um filho perdido, com cuidado e afeto. O Recôncavo, território nordestino heroico, pobre e negro, é, para este filme, bem como para nosso festival, mais do que uma paisagem ou um repositório de narrativas e personagens folclóricos: é ancoragem, aterramento, onde assentamos um compromisso histórico que se revela em “Café com Canela” como uma liberdade, liberdade em formas e práticas de cinema.

Futuro: Não sei muito como me aventurar pela noção de futuro sem sentir a respiração descompassar. Então, recorro a uma frase de uma liderança Guarani Kaiowá durante uma Aty Guasu, filmada por Vincent Carelli e presente em uma das primeiras cenas de "Martírio": "O que tá pegando a gente é o capitalismo". Aquilo que os povos indígenas previram há muito tempo - ou seja, "a queda do céu", como formulou Davi Kopenawa -, agora está materializado globalmente. E o capitalismo não poderá, como corremos o risco de supor, acabar com o mundo e criar um outro mundo, para ser acabado novamente, e infinitamente. Então, se eu for me lançar em alguma tentativa de adivinhação, eu diria que do mesmo jeito que não não haverá outro mundo com capitalismo, não haverá outro cinema com capitalismo. Resta aprender, certamente, com os [cinemas dos] povos indígenas a retomar. Retomar o mundo - e o cinema.

Carol Almeida é doutora em Comunicação pela UFPE, pesquisadora centrada no cinema contemporâneo brasileiro e integrante da equipe curatorial do Festival Olhar de Cinema
Foto: reprodução
Carol Almeida é doutora em Comunicação pela UFPE, pesquisadora centrada no cinema contemporâneo brasileiro e integrante da equipe curatorial do Festival Olhar de Cinema

Carol Almeida - A cidade e as brechas ocupadas

Indicação: “Bicicletas de Nhanderú” (2011), de Patrícia Pará Yxapy e Ariel Ortega, porque é um filme que nos oferece um estatuto de imagem feita em comunhão plena, material e espiritual, entre quem filma e quem se filma. Um filme que pede licença a forças maiores que a própria imagem para poder abrir a câmera e fazer dela uma aliada à experiência cotidiana de uma família Mbya-Guarani.

Futuro: Essa é uma questão difícil demais de responder porque especular sobre o que virá a ser o cinema produzido no Brasil diz respeito a especular sobre o que será o Brasil nessa década que se segue. E aí me parece realmente estarmos diante de uma missão ingrata. Quanto ao desejo, primeiro é preciso entender que estamos mais uma vez atualizando o debate que Paulo Emílio Salles Gomes nos colocou 60 anos atrás: a de que no cinema “o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado” e que no cinema brasileiro em específico o status de "ocupante" e "ocupado" se dá por uma dinâmica de forças que se alteram entre quem assume a ótica (mas não necessariamente a condição) do colonizador em termos do que se produz nas imagens, mas também nos termos do acesso aos meios de produção para realizar essas imagens. E aí vem o desejo: a de que o cinema brasileiro, particularmente depois de tudo que foi possível que esse cinema fizesse após as políticas públicas implantadas aqui durante os anos 2000 e 2010, só pode existir e persistir, seja com ou sem recursos, na pulsão de pensar o que podem criar os “ocupados” para desinstalar, danificar, corromper, bugar e, finalmente, demolir a supremacia da ótica do “ocupante”.

Cléber Eduardo foi curador da Mostra de Cinema de Tiradentes entre 2008 e 2019, atuou como crítico e, atualmente, coordena o Festival Online de Filmes de Inquietação
Foto: reprodução
Cléber Eduardo foi curador da Mostra de Cinema de Tiradentes entre 2008 e 2019, atuou como crítico e, atualmente, coordena o Festival Online de Filmes de Inquietação

Cléber Eduardo - Espaços concretos de vidas em cinema

Indicação: “As Bicicletas de Nhanderu” (Patricia Pará Yxapy e Ariel Ortega), por nos mostrar um modo de expressão audiovisual muito específico e poderoso em suas escolhas e organização, amalgamando o olhar e a voz de quem filma com quem e com o que está sendo filmado. “A Cidade é uma Só” (Adirley Queirós), por lidar diretamente com a questão do espaço e da moradia em um lugar (Ceilândia), mas que expõe por reverberação uma questão estrutural no Brasil, sem deixar a importância política e histórica de sua premissa ser seu único norte, abordando sua premissa com inventividade e desejo de subversão documental; e “Ela Volta na Quinta” (André Novais), por focar em situações delicadas e aparentemente pequenas na vida de uma família, fazendo de personagens e de vivências muito comuns e de baixo tom alcançar a grandeza dos observação gentil

Futuro: Há um descompasso entre o que antevejo e aquilo para o que torço. Vejo um futuro imediato, dos próximos quatro anos, consideravelmente afetado pela diminuição de aportes financeiros do Fundo Setorial. A pandemia também diminui ritmo e possibilidades de se começar novas produções. Portanto, ao menos até 2023, sentiremos esses efeitos. Por outro lado, os filmes menos dependentes de recursos próprios, realizados em uma economia mínima e ações de camaradagem em grupo, deverão seguir adiante. E justamente daí, dessa economia de recursos e da realização de filmes por necessidade expressiva, sem operação financeira ou escritas de projetos em alguma medida formatados para editais, pode vir a força do futuro em breve. Momentos de crises sempre foram muito estimulantes para o cinema mundo afora. É saber aproveitar a ocasião e ter gente disposta a isso. Acho que tem. Nunca tanta gente fez cinema no país. Nunca houve tanta diversidade de proponentes e de necessidades de expressar-se. Isso é maior que ter ou não dinheiro.

A longo prazo, dependerá do perfil dos próximos governos federais e das políticas de cultura em nível municipal e estadual pelos diversos países existentes no Brasil. A verdade é que as ações públicas diretas determinam o presente e o futuro das atividades cinematográficas nas unidades federativas. Portanto, estamos, como sempre estivemos, na mão dos governos, federal em primeiro lugar. A produção à margem dos editais e das políticas públicas, acredito nisso, continuarão se multiplicando e gerando filmes expressivos, mas elas somente e somente elas não garantem toda a complexidade existencial e operacional de uma cinematografia como a nossa. Portanto, tentando resumir, vejo dois cenários. 1) Um futuro imediato fraturado e ainda assim estimulante 2) Um futuro mais adiante dependente das contingências políticas e ainda assim estimulante. Portanto, no varejo, acho que estaremos bem. Portanto, no cinema como expressão, teremos nossa energia. Já no cinema como atividade profissional, como economia gestada pelos recursos públicos, predomina no momento a incógnita.

Erly Vieira Jr. é cineasta, escritor, pesquisador e professor, compõe a equipe de curadoria do Festival de Cinema de Vitória
Foto: 10olhares.com / reprodução
Erly Vieira Jr. é cineasta, escritor, pesquisador e professor, compõe a equipe de curadoria do Festival de Cinema de Vitória

Erly Vieira Jr. - De corpo a corpo: personagens transbordantes, espectadorXs desejantes

Indicação: “Esse amor que nos consome”, de Allan Ribeiro, pela forma como o filme aborda a relação entre corpos e paisagens da metrópole, entre o real e a fabulação, a partir dos usos da coreografia, entrelaçando as dimensões física, poética e espiritual do cotidiano. É um filme de resistência a partir da delicadeza, que acompanha uma companhia de dança sediada no Rio de Janeiro, mostrando os afetos e anseios de seus integrantes, nos fascinando tanto nas ações mais corriqueiras quanto nos inovadores números de dança.

Futuro: Apesar do atual momento ser desfavorável nas políticas públicas audiovisuais, eu acredito muito na consolidação de um cinema cada vez mais plural e engajado, justamente por conta da chegada de outros sujeitos/grupos à direção dos filmes: os últimos anos viram crescer bastante o número de realizadoras mulheres, negrxs, LGBTs, indígenas e/ou de origem periférica. Muitas dessas pessoas produziram curtas-metragens ou longas de estreia bastante relevantes, que ajudaram a definir novos parâmetros estéticos, éticos, temáticos pro cinema brasileiro - inclusive pelo fato de que muitas minorias deixam de ser somente "objeto"/"assunto" dos filmes para serem também realizadorxs, ou seja, passam a falar de suas experiências e universos a partir de um ponto de vista bastante próprio e bem menos "fetichizado", com estéticas e linguagens que dêem conta de tantas coisas novas que até então não haviam sido filmadas neste país. Quem era o "outro" gradualmente tem passado a ser o sujeito do discurso, e isso é maravilhoso. Mas falta ainda muita coisa. No campo do cinema queer/lgbt, espero que os próximos anos tragam mais e mais longas-metragens feitos por pessoas trans, por mulheres lésbicas, por bixas pretas e periféricas, já que alguns dos curtas realizados por diretorxs vindos desses grupos chegaram causando bastante impacto, e criam grandes expectativas para ver a continuidade dessa produção. O Brasil precisa continuar, através do cinema e das artes em geral, descobrindo outros Brasis, com seus diversos modos de viver e experimentar o mundo, à margem do pensamento hegemônico - e que isso cada vez mais aconteça partir dos relatos e pontos de vista dessas pessoas que existem resistindo e, com suas câmeras, também possam chegar a mais e mais espectadores e nos transformar junto.

Janaína Oliveira é pesquisadora em cinematografias negros e africanos, idealizadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro e curadora de eventos como o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul
Foto: 10olhares.com / reprodução
Janaína Oliveira é pesquisadora em cinematografias negros e africanos, idealizadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro e curadora de eventos como o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul

Janaína Oliveira - Cotidiano singular

Indicação: “Yãmîyhex: As Mulheres-Espírito”, que está na mostra da Kênia, porque acho que Isael e Sueli, o modo como fazem filmes, a coletividade, a forma de contar, os ganhos de autonomia na produção, tudo isso aponta para o lugar de futuridade. A própria relação com o tempo no filme.

Futuro: A ideia de futuro tal como a gente entende na lógica eurocêntrica pode ser distante e inapreensível, mas eu vivo, trabalho e acredito numa outra percepção do tempo que não essa dimensão linear que a gente costuma pensar. Trabalho com uma ideia de futuridade. Na verdade, para certos grupos - eu, inclusive, enquanto uma mulher negra - o futuro nessa lógica não é uma possibilidade. Mas, ao mesmo tempo, se você tem outra percepção do tempo, espiralar, onde tem o agora onde tudo acontece, esse agora também é futuridade. Penso na frase da Ana Pi, que é um ditado, "eu sou o futuro que alguém sonhou". Essas coisas tem a ver com o pensamento da Leda Maria Martins, da Denise Ferreira da Silva, da Jota Mombaça, mesmo do Glissant. (Há) esse colapso, essa coisa que a gente vive no cinema brasileiro - e eu não estou falando só da era Bolsonaro e tudo que vem acontecendo depois de 2016, isso é uma tragédia. Em certo sentido, o caminho da futuridade do cinema já está aqui: essas pessoas que estão fazendo filmes mesmo quando as estruturas sempre foram contrárias e adversas. Nessa última década do cinema, se você for olhar as seleções, vai ver muitos desses filmes que dialogam exatamente com isso. São filmes que vivem, existem apesar dessa linearidade temporal, apesar desse presente, das questões. Já são filmes que sobrevivem e sobreviveram ao fim do mundo. O que espero do cinema do futuro, da futuridade do cinema nacional, é que esses moldes de cinema se propaguem. Agora o que a gente tem que fazer é sobreviver ao coronavírus. E ao Bolsonaro. Mas a gente vai sobreviver ao Bolsonaro e ao coronavírus também. Estou otimista, apesar de cansada. O que eu estou querendo dizer é que o futuro é agora, o futuro está no presente. O futuro não está em outro lugar. O futuro que é inapreensível é um futuro de um cinema que já caducou. Não dos filmes, mas do modo de cinema, que é um modo hegemônico.

Kênia Freitas é pesquisadora de Afrofuturismo e cinema negro, crítica, professora e curadora
Foto: 10olhares.com / reprodução
Kênia Freitas é pesquisadora de Afrofuturismo e cinema negro, crítica, professora e curadora

Kênia Freitas - Movimentos fabulares 

Indicação: “Casa” (Letícia Simões, 2019), que tá no olhar de Janaína Oliveira, “Cotidiano singular”. Um filme muito belo ao apresentar as relações familiares dessas três gerações: filha, mãe e avó. Acho muito singular como o filme transita entre questões específicas e íntimas das personagens e as coletivas - do que constitui um lar, dor, limites do afeto e do amor, e da vida como continuidade e ruptura.

Futuro: Espero que nos anos de 2020 para o cinema brasileiro seja de ainda mais reinvenção (formal e política). E espero que essa geração de realizadories que começou a fazer cinema nos últimos anos (com a políticas públicas de inclusão racial e social de formação e fomento) continue a criar narrativas e a especular no cinema um Brasil para além do que conseguimos imaginar na crise do presente.

Leonardo Bomfim é programador da Cinemateca Capitólio, de Porto Alegre, e crítico de cinema
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Leonardo Bomfim é programador da Cinemateca Capitólio, de Porto Alegre, e crítico de cinema

Leonardo Bomfim - Era uma vez, era outra vez…

Indicação: Há filmes em outros programas que fazem parte da lista ampliada que pensei para o meu recorte, antes de definir os cinco longas. É o caso de “As Boas Maneiras”, “Arábia”, “Já Visto, Jamais Visto”, “O Que Se Move”. Esses filmes, inclusive, aparecem no texto de apresentação. Mas escolho outro: “Ela volta na quinta”, do André Novais Oliveira. Por tudo que representou o trabalho da produtora mineira Filmes de Plástico na última década. Foi o grande acontecimento do cinema brasileiro nos anos 2010.

Futuro: É muito difícil fazer esse exercício no momento atual, as incertezas são enormes. Mas o que mais espero é ver a continuidade do trabalho da galera nova que começou a filmar na última década. Gente muito inventiva como o Fábio Rodrigo, Irmãos Carvalho, Juliana Antunes, Leonardo Mouramateus, Yasmin Thayná, Lucas Sá, Vinicius Silva, Gabriela Richter Lamas, Marcus Curvelo... Que façam longas, curtas, médias e inspirem mais realizadores a criarem seus cinemas, mesmo em circunstâncias adversas.

Pedro Azevedo é curador e programador das salas do Cinema do Dragão e crítico de cinema
Foto: reprodução
Pedro Azevedo é curador e programador das salas do Cinema do Dragão e crítico de cinema

Pedro Azevedo - O mundo em desencanto

Indicação: Pelo esforço de uma realização coletiva em diálogo com a comunidade local, além de imprimir um deslocamento da ficção científica distópica para um lugar bastante incomum e disruptivo na paisagem do cinema brasileiro contemporâneo, "Tremor Iê" faz ainda um gesto importante de revisionismo histórico quando mira no apagamento de uma indumentária simbólica que remete ao nosso passado ditatorial.

Futuro: Esse movimento especulativo me desinquieta na medida em que, no recorte curatorial que proponho em “O mundo em desencanto”, existe uma força gravitacional que atrai quase todos os filmes para uma ideia de apocalipse, de fim do mundo. Apesar de termos alguns títulos cuja marcação no espaço-tempo está dada de partida, como é o caso de “Sol Alegria”: nordeste do Brasil em 2018 e “A Seita”: Recife em 2040, me parece sempre um desafio localiza-los no interior de uma linha temporal que mire o seu acolhimento histórico num sentido puramente linear. São os anacronismos dos filmes, estejam eles impressos nas paisagens que ilustram um presente/futuro arruinado ou nas grandes temáticas políticas recicladas de um passado (não) muito distante, que me interessam nesse processo de documentação e arquivamento de uma contemporaneidade que é, por natureza, sempre volátil.

Existe um pano de fundo concreto que faz com que essas narrativas convirjam para o desencantamento do mundo, apesar do combate sempre aguerrido dos seus agentes. O cenário socio-político-econômico-ambiental-etc que abrange a experiência de ser brasileiro no mundo nos anos 2010 aponta para essa sensação de espiral que desce rumo ao inferno, e parece natural que os filmes absorvam e reajam a isso. Contudo, são os mesmos anacronismos que apontei, somados a uma certa desconfiança na experiência histórica linear que me impedem de responder ao questionamento com qualquer tipo de convicção ou objetividade sobre expectativas para os anos 2020. Uma fala recente de Kênia Freitas que assisti no YouTube a respeito do afrofuturismo e das ficções especulativas me dá um caminho de resposta possível. “Pensar num futuro fora das angústias do presente”. Se por um lado temos tudo para acreditar numa radicalização do desencantamento e da experimentação em torno das narrativas que apontem para um presente profundamente cindido e angustiado (concretamente, inclusive, com a descontinuidade de políticas públicas de fomento, difusão e preservação do audiovisual brasileiro), por outro, podemos acreditar também que o porvir é absolutamente misterioso e (ainda) intangível. Saindo do campo da especulação e entrando no campo do desejo: gostaria de ver o cinema e o audiovisual brasileiro se entranhando ainda mais nesse campo da imprevisibilidade do anacronismo que vai e volta, abrindo uma fenda entre passado/presente e futuro. Que possa pensar nas angústias do presente mas que pense também nas angústias que (ainda) desconhece. 

Rafael Parrode é pesquisador, produtor, realizador, crítico e curador de cinema
Foto: reprodução
Rafael Parrode é pesquisador, produtor, realizador, crítico e curador de cinema

Rafael Parrode - Desvios do contemporâneo

Indicação: Dos filmes exibidos eu indicaria "A Cidade é uma só?". Dirigido pelo Adirley Queirós, em muitos níveis é um filme absurdamente atual pois as questões que ele enfrenta permanecem feridas abertas, num país onde a desigualdade cresce a cada dia, e as formas de fazer política seguem ainda enviesadas, demandando de nós a criação de novas formas de resistência e combate. 

Futuro: O prognóstico para o futuro do cinema brasileiro permanece turvo. É preciso encarar o abismo no intuito de perceber que ainda não chegamos ao fundo do poço. E é preciso encontrar alternativas para que esse futuro não seja de fato soterrado. Como seguir produzindo apesar daqueles que querem nos destruir? Não podemos abrir mão de conquistas alcançadas a duras penas ao longo das ultimas décadas e portanto é preciso se mobilizar e resistir. Ao mesmo tempo é preciso seguir produzindo na adversidade, criar novos modelos de produção sustentáveis que continuem a tensionar o status quo do cinema e das artes no Brasil. Não se trata de reinvindicar aqui a industrialização do cinema brasileiro e sua inserção dentro do mercado que segue delimitando olhares, mas sobretudo de buscar maneiras para que os olhares diversos que conquistamos, permaneçam abertos e livres em busca de novos horizontes para uma maior autonomia do cinema brasileiro.

Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 Olhares

Quando: de 22 a 30 de abril
Onde: www.10olhares.com 

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