"Um filme de policiais" apresenta contradições da instituição no México
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
"Me afeta quando vejo essas reportagens nos criticando. Como policial, é muito irritante, mas a verdade é que, como policial, você propicia tudo isso", afirma Teresa no documentário mexicano "Um filme de policiais", disponível na Netflix. Tendo entrado na instituição ainda jovem por influência do pai, também policial, a mulher conjuga na fala uma característica que o próprio longa dirigido por Alonso Ruizpalacios busca trazer em si: uma complexa e aparentementecontraditóriaabordagem acerca da força policial mexicana. Apesar de escolher o documental, o filme retorce modelos e se constitui enquanto um exercícioformal que borra as já frágeis fronteiras entre ficção e documentário, apostando numa mistura entre entrevistas diretas, reencenações e revelações do próprio processo de feitura. Dando voz a opiniõescontrárias e favoráveis à instituição que analisa, o filme se equilibra entre discursos e formas de representar distintas.
A trama básica de “Um filme de policiais” acompanha Teresa e seu companheiro — de vida e profissão — Montoya, que recontam as próprias trajetórias de início no trabalho e no relacionamento amoroso. A primeira metade do longa é inteiramente dedicada aos protagonistas, se estabelecendo como uma forma de buscar histórias individuais antes de olhar para a polícia enquanto instituição.
As torções de expectativas, porém, se dão já de partida, uma vez que o filme abre mão desde o princípio de uma abordagem mais realista e crua, que poderia ser mais óbvia, para estabelecer estilização e artificialidade intensas. De forma mais frontal, a principal escolha neste sentido está na reencenação das histórias contadas pelo casal a partir da presença de dois atores, Mónica del Carmen e Raúl Briones.
As vozes ouvidas desde o começo são as de Teresa e Montoya, mas os corpos que os representam na tela e nas situações compartilhadas são os de Mónica e Raúl, que dublam as falas dos policiais. O parto que Teresa auxiliou em uma madrugada de ronda e a patrulha de Montoya em uma parada LGBTQIA+ surgem corporificadas na produção como cenas de uma ficção que, por sua vez, usa a voz do casal recontando versões próprias de histórias vividas em serviço.
Além dessa opção mais direta, como já estabelecido, “Um Filme de Policiais” também traz a verve de estilização nas escolhas de formatode tela e de câmera, com os cantos da imagem ficando disformes a cada movimento em determinada sequência, por exemplo, ou quando o longa assume, em outra cena, uma atmosfera que emula as características de uma série policial de comédia.
Toda a construção da primeira metade do longa constitui a ideia do “ser policial” quase que em sentido performativo, estabelecendo interessante relação com a segunda parte da produção. Numa virada, o filme passa a focar nos atores, Mónica e Raul, e no processo que eles passaram para compor as personagens. Em depoimentos diretos para as câmeras dos próprios celulares, os artistas dividem histórias dos meses que passaram acompanhando policiais e estudando na academia formativa da área.
Se a artificialidade é característica de primeira hora da obra, curiosamente é nesta nova porção que o “esperado” realismo entra em cena, uma vez que o filme se despe das artificialidades iniciais e assume uma aparênciamaisdocumental, com os atores revelando os próprios processos e impressões acerca da experiência.
Um ponto importante nesse jogo proposto é como o discurso, em si, também passa por uma virada de chave a partir da virada estética/formal: enquanto no começo os policiais, falando de si, compartilham que se sentem atacados ou julgados, os atores, ao tomarem a frente, dividem opiniões sobre a polícia que trazem o debate menos para os indivíduos e mais para a prática institucional.
De forma interessante e complexa, Mónica e Raul ressaltam tanto a violência estrutural que embasa a ação policial quanto a presençanumerosa, na academia formativa pela qual passam como forma de construir os personagens, de jovensindígenas, mães solteiras e pessoas que buscam a carreira por necessidade.
A virada discursiva do filme permite até aos personagens inicialmente mais defensivos, os próprios policiais, admitirem certas contravenções realizadas por eles mesmos e pela instituição, como o padrão de cobrar propinas, por exemplo.
O caráter multifacetado do filme pode soar como se ele optasse por estar “em cima do muro”, “dando voz” aos dois lados, mas as decisões parecem passar por intenções mais complexas. Entremeando o carisma e as falhas da dupla protagonista com a estrutura corroída da instituição, “Um Filme de Policiais” traça um retrato recheado de contradições, mas rico de ser acessado.
O gesto aqui é menos sobre tentar encontrar um ponto de concordância entre os discursos — ou seja, menos assimilacionista — e mais uma busca por reunir esses conflitos e friccioná-los, contaminá-los mutuamente sob as batutas de uma proposta formal inspirada, o que por si se revela até, talvez, mais relevante do que buscar alguma conclusão ou “transformação” moral.
Confira o trailer de "Um filme de policiais":
Um filme de policiais
Já disponível na Netflix
De Alonso Ruizpalacios. 107 minutos. México
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