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Fortaleza de boa-fé
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Fortaleza de boa-fé

Um eleitor de 106 anos de idade, doutor Pinho, vai votar no segundo turno das eleições em Fortaleza. Ela ainda acredita na política de homens probos
Tipo Crônica
2010demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2010demitri.jpg

Não me conformo com o mundo em que estou a experimentar. Uma manifestação meninil de um imaturo? Pois que seja. Na verdade, não há nada de pueril. Crianças, enquanto ainda não estão adulteradas pelo derredor, mensuram de maneira não iludida a torpeza dos adultos.

Podem, talvez, ter um filtro menos poroso que os "grandes". Terem ainda doses de desmedidas de inocência, mas somente acreditam na enganação até o instante em que percebem que a fraude lhe fere. E cismam quase para sempre.

Torpeza é coisa de adultos em despautério. E é difícil acreditar que de um dia para o outro, um macho desrespeitoso deixe de ser machista. Infelizmente, sou descrente na regeneração de quem esfaqueou uma mulher... a ex-companheira ou a namorada que não teve o direito de decidir pelo fim da relação bosta.

 

Não me compadeço com quem foi preso depois do dia em que um bando de parvos tentou contra a democracia

 

Também não tenho crenças em homens ou mulheres que torturaram ou apoiaram a tortura durante a ditadura cívico-militar de 1964-1985, no Brasil. Nem nos que berraram, há pouco num País de estultos, pela volta truculenta do regime de exceção.

Não me compadeço com quem foi preso depois do dia em que um bando de parvos, num falso "efeito manada" - os elefantes não são imbecis feito os seres humanos - tentou contra a democracia em Brasília. Tão cabotino e escroto aquele 8 de janeiro de 2023!

Sobre quem goza com a tortura e com torturadores, recebi várias embaixadas para entrevistar um verdugo cearense da ditadura de 1964-1985. Por estar arquejante de saúde, pediram uma "última homenagem" ao "arquivo vivo".

 

Era um porão onde havia um rádio que interceptava, criminosamente, a frequência da Ciops

 

Na verdade, eu e o repórter Luís Henrique Campos entrevistamos a cria do Dops há alguns anos para O POVO. Uma figura desprezível que nos recebeu num mafuá rodeado de "papéis de informações" e que, sem cerimônias, peidou três vezes durante a entrevista. Era um porão onde havia um rádio que interceptava, criminosamente, a frequência da Ciops.

E me recuso a entrevistá-lo novamente? Jamais. Adoro investigar para o jornalismo a vidinha de carniceiros que se escondem por trás da imagem e do corpo de velhinhos (e velhinhas) dóceis. Um naipe de gente ruim que torturou, censurou, matou ou ajudou a desaparecer com opositores políticos. Entrevisto sim, mas tem de detalhar as atrocidades que cometeu e com quem fez. Inclusive a covardia contra o comunista Pedro Jerônimo.

Não me interessa a dimensão do ser vivo que dizem ter o coronel aposentado da PM. Não tem, foi um torturador. Um agente do Dops não se arrepende do que cometeu. Nem quem se fez na política abraçado às ruindades de Bolsonaro - um subproduto da ditadura, por exemplo.

 

Não foi mentira a pandemia da Covid-19 e quem fez pouco caso do sofrimento e luto alheios

 

Fortaleza está padecendo de gente escrupulosa. Uma cidade esquadrinahada no sangue covarde das invasões, nos 388 anos de escravização e nos estupros luso-cristãos. Uma laia de compromometidos em odiar o que não é espelho.

Não foi mentira a pandemia da Covid-19 e quem fez pouco caso do sofrimento e luto alheios. Eu fui pra rua como repórter e não irei deslembrar, nunca, dos caixões que saíam às dezenas de uma porta lateral do Leonardo da Vinci. Também fui ao hospital de campanha montado por Roberto Cláudio no PV.

Tenho compaixão de muita gente que partiu, conhecidos ou alguém distante. Não foi brincadeira nem pesadelo, ocorreu sim e um bando de negacionistas lutou contra a vacina e imitou a falta de ar de quem morria.

 

Aos 106 anos, ainda acredita que a política pode ainda ser feita por homens e mulheres que não defendem a crueldade

 

No primeiro turno, um eleitor e amigo chamou minha atenção. Doutor Pinho, um ser vivo de 106 anos de idade, foi votar no Colégio João Piamarta, em Fortaleza. Ele, o neto Davi, de 26 anos, e a esposa - dona Lúcia Rodrigues, de 90 anos.

Achei aquilo fenomenal. Bisbilhotei o voto dele. Ele, que é farmacêutico e descobriu o calazar no Ceará, em 1944, disse-me que não votou nem vota na direita nem na extrema direita. Sim, ele tem um irmão de 105 anos - seu Pessoa - que foi votar em Viçosa do Ceará.

Doutor Pinho, que já foi prefeito de Viçosa do Ceará e deputado estadual pelo MDB, não cansa de experimentar o mundo. Aos 106 anos, ainda acredita que a política pode ser feita por homens e mulheres que não defendem a tortura, a censura, a ditadura, a aporofobia, o machismo, a misoginia, a homofobia, a fake news... e a crueldade.

Alguma coisa acontece no meu coração...

 

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