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Coisa de classe média: o que a direita pensa sobre segurança pública (I)
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Coisa de classe média: o que a direita pensa sobre segurança pública (I)

A relação entre o governo federal e os estados é um ponto central na distorção da percepção pública sobre a criminalidade. Nos últimos anos, o Brasil assistiu a uma politização do tema que obscurece a complexidade do problema e inviabiliza soluções eficazes
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São Paulo - Região entre a Estação da Luz e o Viaduto Santa Ifigênia, conhecida como Cracolândia ( (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil São Paulo - Região entre a Estação da Luz e o Viaduto Santa Ifigênia, conhecida como Cracolândia (

Em artigo recente na Folha de S.Paulo, o sociólogo Sérgio Adorno, principal referência acadêmica em segurança pública no país, analisou a dificuldade que governos de esquerda enfrentam para obter apoio popular para seus projetos nessa área. Adorno traçou a origem dessa expertise em políticas de segurança a governos de centro-esquerda, desde a gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando os primeiros planos foram elaborados em sintonia com políticas de direitos humanos.

Apesar disso, a avaliação do especialista é de que a opinião pública não costuma "comprar" essas medidas. Segundo Sérgio Adorno, o brasileiro médio tende a apoiar propostas mais duras, em detrimento de abordagens mais holísticas e consequentes. Vale ressaltar que o maior apoio à operação desastrosa do Rio de Janeiro, em que centenas de pessoas foram mortas, veio justamente da classe média, com 69%.

Essa é uma questão com que me debato há anos. Por causa disso, a presente coluna traz mais interrogações que certezas. Tenho algumas reflexões sobre esse fenômeno a partir da análise de um recorte socioeconômico. A primeira publico por aqui. A segunda sairá na semana que vem.

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Estive recentemente em São Paulo e, como sempre faço, aproveito a oportunidade para conversar com moradores locais acerca da percepção deles sobre segurança. Há um forte endosso ao governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), em especial ao "fim" da Cracolândia, quando moradores de rua e usuários de drogas foram retirados dos locais em que se reuniam, formando aglomerações.

Um homem me conta que as pessoas foram retiradas em vans e levadas para serem internadas em clínicas de tratamento no interior do estado. Algumas delas teriam "sumido" durante esse processo. Na semana é possível ver uma forte vigilância no centro: policiais, guardas municipais e viaturas se distribuem ao longo de todo o centro expandido da capital paulista. No domingo, contudo, é possível ver diversas pessoas nas ruas, mas nunca em grandes aglomerações.

Pergunto a uma motorista de táxi sobre a questão da criminalidade. Ela me aponta um dado intrigante. Diz que muitas adegas foram abertas na periferia de São Paulo meses antes da explosão da crise do metanol, indicando a possibilidade de que o dinheiro estivesse sendo lavado a partir da adulteração de bebidas. Há um temor em mencionar o PCC de forma expressa. Muito articulada, ela prefere transferir as causas sobre a insegurança no Estado para "os políticos de Brasília", isentando o governador de responsabilidade diante dessa situação.

É interessante observar que esse discurso transita como uma opinião corrente por pessoas de diversos estratos sociais; é uma doxa, como diria Roland Barthes, ou seja, quando o senso comum se consolida e dá sustento às ações das pessoas, formando um núcleo duro de "verdades absolutas" que não conseguimos acessar, impedindo qualquer debate mais aprofundado.

A relação entre o governo federal e os estados é um ponto central na distorção da percepção pública sobre a criminalidade. Nos últimos anos, o Brasil assistiu a uma politização do tema que obscurece a complexidade do problema e inviabiliza soluções eficazes.

Durante o governo Bolsonaro, os louros pela redução dos homicídios foram amplamente atribuídos à esfera federal, como se uma mudança na gestão nacional pudesse, por si só, gerar resultados imediatos nos estados. Agora, sob o governo Lula, observa-se o fenômeno inverso: mesmo com o Palácio do Planalto atuando em diversas frentes, tornou-se difícil capitalizar esses esforços para melhorar a imagem do atual presidente na área de segurança.

A opinião corrente (doxa) é a de que apenas os governos estaduais seriam capazes de agir concretamente contra a violência. A prova mais clara desse cenário é a formação de um "consórcio da paz" por governadores alinhados à oposição, criando um enclave de poder suficientemente forte e com recursos para se contrapor ao governo central.

Esse conflito federativo ignora uma realidade incontestável: as organizações criminosas atuam de forma interestadual. Qualquer resposta, portanto, ao crime organizado exige uma estratégia nacional e coordenada, que supra as diferenças políticas entre os ocupantes dos palácios estaduais. E é justamente isso que não se vê na prática.

Ao analisarmos o cenário de forma mais ampla, o que se observa é uma repetição, em larga escala, da lógica aplicada na operação da Cracolândia. Os problemas não são resolvidos; seus vetores são simplesmente expulsos para algum lugar longe da vista do cidadão médio. E é isso que os estados, de forma generalizada, têm feito: varrem a sujeira para debaixo do tapete e, em seguida, apontam Brasília como o único responsável pela bagunça que permanece escondida.

A ineficácia do Poder Legislativo no combate ao crime se manifesta na forma como projetos considerados essenciais, como a PEC da Segurança Pública e leis anti-facções, são engavetados ou desidratados em relatorias que desconsideram a complexidade do tema. O remédio amargo vira placebo nas mãos dos mesmos parlamentares que criticam a ineficácia do Governo Federal. É sabotagem embalada sob o discurso de indignação. E, de tanto ser proferido, soa coerente e se dissemina a ponto de conseguirmos ouvi-lo durante uma corrida de táxi.

 

Foto do Ricardo Moura

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