A crise criativa na era digital: Tarantino, Miyazaki e o alerta sobre o uso banal da tecnologia
clique para exibir bio do colunista
Vladimir Nunan é CEO da Eduvem, uma startup premiada com mais de 20 reconhecimentos nacionais e internacionais. Fora do mundo corporativo, é um apaixonado por esportes e desafios, dedicando-se ao triatlo e à busca contínua pela superação. Nesta coluna, escreve sobre tecnologia e suas diversidades
A crise criativa na era digital: Tarantino, Miyazaki e o alerta sobre o uso banal da tecnologia
Nos dias de hoje, com o progresso da computação gráfica, sequências inteiras são criadas em ambientes digitais, com texturas incrivelmente realistas e movimentos exatamente calculados. No entanto, ao contrário do que se esperava, essa precisão não trouxe mais emoção
Foto: Imagem gerada por Inteligência Artificial (script próprio): Midjourney
Script usado: robot, human, AI, tech, business, Photography, Shot on 70mm, Depth of Field, --ar 16:9 --v 6.0
Vivemos um dilema desconcertante: temos mais tecnologia disponível do que nunca — e, ao mesmo tempo, estamos mais carentes de criatividade genuína. A recente conversa com Quentin Tarantino, cineasta renomado por filmes como Pulp Fiction e Kill Bill, destacou precisamente essa questão sensível: segundo ele, a grande oferta de ferramentas digitais extinguiu a nova geração de diretores — levando junto uma parte da essência do cinema.
Tarantino foi claro em seus pontos. Ele acredita que o cinema perdeu sua magia e seu artesanal. De acordo com suas declarações, os filmes atuais estão repletos de efeitos especiais, gráficos digitais e produções em larga escala, sem aquele elemento criativo e artístico que tornava o cinema uma verdadeira forma de arte.
A arte antes da tecnologia
Em tempos anteriores à era digital, uma cena de ação demandava criatividade. Explosões eram realizadas com a utilização de maquetes e efeitos práticos. Criaturas eram elaboradas com maquiagem, robôs animatrônicos e movimentos meticulosamente planejados quadro a quadro. Cada detalhe era cuidadosamente considerado e executado por mãos humanas, com base em criatividade, ensaio e erro — o que conferia à obra uma qualidade única, imperfeita, mas inesquecível.
Nos dias de hoje, com o progresso da computação gráfica, sequências inteiras são criadas em ambientes digitais, com texturas incrivelmente realistas e movimentos exatamente calculados. No entanto, ao contrário do que se esperava, essa precisão não trouxe mais emoção. Pelo contrário: muitos filmes acabaram se tornando frios, comuns e facilmente esquecíveis.
Tarantino não se opõe ao uso da tecnologia — sua crítica é mais profunda: a tecnologia deve ser uma ferramenta, não um substituto da criatividade.
Miyazaki e a crítica à inteligência artificial
Essa preocupação com a desumanização da criação também é compartilhada por Hayao Miyazaki, um dos fundadores do famoso Studio Ghibli e um dos grandes nomes da animação global. Durante uma reunião no estúdio, em 2016, Miyazaki assistiu a um vídeo experimental feito com inteligência artificial.
O intuito era investigar novos movimentos corporais na animação. Contudo, o resultado lhe causou repulsa. "Estou profundamente enojado. Se você realmente deseja criar algo assustador, pode prosseguir. Jamais desejaria integrar essa tecnologia ao meu trabalho. Acredito fortemente que isso é um desrespeito à própria vida".
Para Miyazaki, a criação artística é uma expressão da vida humana — repleta de falhas, intuições, erros e sentimentos. Assistir à tentativa de simular isso por meio de algoritmos automáticos não só o incomodou, mas o levou a afirmar que essa tecnologia simbolizava uma perda de confiança na humanidade.
A crítica de Miyazaki é mais pertinente do que nunca. Recentemente, uma nova tendência dominou as redes sociais: conteúdos como vídeos e imagens, criados por inteligência artificial, que imitam com precisão o estilo visual do Studio Ghibli. Apesar da fascinação inicial provocada por essa estética nostálgica, todo o conteúdo foi produzido sem a devida autorização do estúdio.
A ferramenta empregada, relacionada à OpenAI, nunca pediu permissão para utilizar a identidade artística da produtora japonesa. Mesmo após tentativas de limitar essa prática, os usuários continuam a gerar conteúdo nesse estilo. O resultado, por mais avançado que seja tecnologicamente, falta essência, significado e sensibilidade, enfatizando a crítica feita por Miyazaki anos atrás: sem a intenção humana, a tecnologia transforma a arte em mera cópia vazia.
A Mesma crise na tecnologia da informação
Essa falta de conexão entre tecnologia e intenção criativa não se restringe ao campo da arte. Ela se repete na área de tecnologia da informação, onde muitos profissionais parecem ter sucumbido a uma espécie de falta de ânimo intelectual devido à abundância de ferramentas disponíveis.
No passado, resolver um problema envolvia uma sequência lógica: compreender o desafio, investigar suas causas, pensar em soluções, e, finalmente, procurar a tecnologia que se adequasse. Hoje, o processo foi invertido.
A tecnologia é procurada primeiro — seja o software da moda, a última inteligência artificial ou o framework mais comentado — e só depois se busca aplicá-la a um problema, muitas vezes mal entendido. É como adquirir um remédio antes de identificar a doença. Ou ainda pior: utilizar o remédio apenas porque está disponível, mesmo sem estar doente.
Estamos rodeados de plataformas de automação, inteligência artificial generativa, APIs que realizam quase tudo e linguagens que otimizam procedimentos. Contudo, tecnologia sem uma estratégia se transforma em ruído. Isso resulta em trabalho descartável, sem impacto significativo. Assim como nas obras de Tarantino ou na animação de Miyazaki, a técnica não suplanta a carência de alma.
Além disso, o excesso de facilidade pode inibir o raciocínio. Ao invés de preparar a mente para enfrentar desafios, delegamos essa responsabilidade às máquinas — mesmo que elas ainda necessitem de nossa orientação criativa.
O valor do artesanal na era digital
O que Tarantino e Miyazaki nos ensinam é claro: a beleza reside no imperfeito, no pensado, e na intenção que há por trás da forma. A tecnologia pode ser uma valiosa aliada, mas será realmente útil somente quando utilizada com consciência, seleção e propósito.
O ato de criar artisticamente, o desenvolvimento de software, a produção científica e a resolução de questões complexas — todas essas atividades demandam mais do que ferramentas. Elas precisam de reflexão, intuição e humanidade.
A alma não se automatiza
Estamos passando por uma época arriscada, onde o brilho da tecnologia pode ofuscar a importância da criatividade genuína. O perigo não reside na própria tecnologia, mas sim em utilizá-la sem um sentido claro, sem essência e sem uma motivação adequada.
Por isso, é fundamental que atentemos para os avisos de Tarantino e Miyazaki. Produzir de maneira mais ágil não é suficiente. Automatizar todos os processos não resolve. Ser visualmente atrativo não é suficiente.
Se desejamos que nossas obras — sejam filmes, programas de computador, iniciativas ou conceitos — perdurem, é necessário recuperar o raciocínio humano que vai além da criação digital. Como disse Miyazaki, criar é uma prolongação da vida. E a vida, por sua própria natureza, não pode ser artificial.
Conclusão
Para explicar visualmente este texto, recorri ao Midjourney, uma ferramenta de inteligência artificial geradora de imagens. Tomei essa decisão de forma deliberada, como parte da reflexão que desejo apresentar aqui.
Não sou contra a tecnologia — na verdade, acredito firmemente em seu poder transformador, desde que seja utilizada de maneira consciente, bem planejada e integrada a um sólido processo educacional. Assim como qualquer outra ferramenta, ela precisa ser compreendida, contextualizada e utilizada de forma intencional. No entanto, não deve ser vista como uma saída criativa rápida ou como uma substituição da experiência humana.
De fato, um artista não teve sua criatividade limitada com a invenção do pincel. A ferramenta não elimina o talento — ela pode expandi-lo quando utilizada corretamente. O desafio surge quando se confunde a ferramenta com a prática artística. Há quem pense que, com a IA, poderá aprender a desenhar diretamente no computador, sem passar pela vivência do papel, do lápis e da sujeira das tintas. Isso, porém, não ocorre.
Por exemplo, o computador possui uma armadilha silenciosa: a função de zoom. Essa característica, que parece inofensiva, altera nossa maneira de perceber a dimensão e a proporção. O artista iniciante que se dedica exclusivamente ao digital, sem um entendimento analógico, tende a desenvolver uma visão distorcida — carece da habilidade fundamental de perceber o todo, do movimento contínuo e da compreensão real do espaço. Assim, o aprendizado torna-se deficitário.
Por isso, o foco principal se mantém: a tecnologia deve apoiar o processo criativo — e não substituí-lo ou restringi-lo. Ela pode amplificar habilidades, mas nunca pode gerar talentos do nada. A verdadeira arte, seja no cinema, na animação, na programação ou na pintura, continua sendo resultado da experiência humana, das vivências, da prática e da intenção.
E se quisermos que a criatividade persista na era digital, precisaremos de algo além de tecnologias potentes. Precisaremos de consciência, criticidade, educação e, acima de tudo, essência.
Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.