Tecnoespécie: a história de nós mesmos como seres artificialmente humanos
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Vladimir Nunan é CEO da Eduvem, uma startup premiada com mais de 20 reconhecimentos nacionais e internacionais. Fora do mundo corporativo, é um apaixonado por esportes e desafios, dedicando-se ao triatlo e à busca contínua pela superação. Nesta coluna, escreve sobre tecnologia e suas diversidades
Tecnoespécie: a história de nós mesmos como seres artificialmente humanos
A cultura mudou o ambiente, e o ambiente mudou a biologia. Não há separação entre o natural e o artificial. A linha é borrada
Foto: Imagem gerada por IA (script próprio): Midjourney
Script usado: caveman, technology, cyber punk, photography, shot on 70mm, depth of field, Canon EOS Camera, extremely detailed textures --ar 16:9 --v 7.0
Imagine acordar em um mundo sem fogo, sem roda, sem escrita, sem ferramentas. Um mundo onde você teria que sobreviver apenas com seus instintos biológicos. Sem utensílios, sem remédios, sem roupas. Diante disso, surge uma pergunta inevitável: o que, de fato, nos faz humanos?
Durante milênios, acreditamos que era a consciência, a linguagem, a empatia. Mas existe algo ainda mais profundo e pouco dito: somos uma espécie tecnológica por natureza. Tecnoespécies.
Não no sentido futurista de ciborgues, mas na essência: desde sempre, nossa sobrevivência esteve atrelada à capacidade de criar, adaptar e incorporar tecnologia. Isso não é pós-humano — é o humano.
A origem artificial do humano
Carlos Nepomuceno, em seu ensaio provocador, defende que não somos apenas usuários de ferramentas. Somos, na verdade, seres artificiais desde o começo. O argumento é radical: a separação entre o natural e o artificial não se sustenta quando olhamos para o Homo sapiens com lentes históricas.
O fogo, uma das primeiras tecnologias, mudou tudo. Cozinhamos alimentos, ganhamos mais energia, reduzimos o esforço digestivo. Isso teve impacto até na estrutura do nosso cérebro. Como mostra Richard Wrangham, da Universidade de Harvard, o ato de cozinhar teria permitido ao Homo erectus um salto cognitivo. E tudo isso começou com uma faísca. Literalmente.
Ferramentas não nos acompanham — nos constituem
Diferente de outras espécies, nossas garras foram substituídas por lanças. Nossos instintos, por calendários. Nossa memória, por arquivos. A tecnologia não é uma extensão. Ela é parte constitutiva da nossa espécie.
Em 2010, o filósofo francês Bernard Stiegler afirmou que a humanidade é inseparável da techné, ou seja, da técnica. Ele chamava isso de “farmacotécnica”: a técnica é veneno e remédio. Nos liberta e nos prende. Nos evolui e nos ameaça. Mas o que não podemos ignorar é que ela está entranhada em nossa existência.
A coevolução gene-tecnologia
Em paralelo, estudos genéticos mostram que evoluímos em parceria com a cultura. Robert Boyd e Peter Richerson, pioneiros da teoria da evolução gene-cultura, explicam como a cultura pode moldar a seleção natural. Em outras palavras: nossas invenções tecnológicas moldaram nossos corpos e cérebros tanto quanto nossos genes moldaram nossas invenções.
Por exemplo, sociedades que domesticaram gado desenvolveram mutações genéticas que permitiram a digestão da lactose. A cultura mudou o ambiente, e o ambiente mudou a biologia. Não há separação entre o natural e o artificial. A linha é borrada.
O paradoxo de Moravec
Mas há um detalhe curioso. O paradoxo de Moravec, proposto nos anos 1980, diz que é mais fácil ensinar uma máquina a jogar xadrez do que a andar. Isso porque o xadrez é uma habilidade recente e cultural, mas andar é resultado de milhões de anos de evolução. Ou seja, as tarefas mais simples para humanos são as mais difíceis para máquinas — e vice-versa.
Isso nos lembra que, apesar de toda nossa capacidade racional, somos ainda criaturas profundamente corporais e sensoriais. O paradoxo revela o quanto a tecnologia tenta nos imitar — mas também o quanto ela revela nossa complexidade enquanto seres moldados por milhões de anos de biotecnologia natural e milênios de biotecnologia artificial.
IA: a mais recente camada da nossa tecnoidentidade
Hoje, vivemos o auge dessa condição de tecnoespécie com o advento da inteligência artificial (IA). Mas será que a IA é uma ruptura ou uma continuação lógica?
Quando um algoritmo do Spotify prevê a próxima música que vamos gostar, ele está fazendo o mesmo que um contador de histórias tribal fazia ao contar um conto para sua aldeia: organizar informação e antecipar emoções.
A IA, por mais nova que pareça, é uma forma sofisticada de algo ancestral: o desejo humano de delegar processos cognitivos. Começamos com as pedras lascadas, passamos pela escrita, criamos a imprensa, os computadores, e agora algoritmos que escrevem, respondem, aprendem.
Mas aqui mora o risco: enquanto as tecnologias anteriores eram externas, agora a IA opera dentro da cognição, moldando o que vemos, o que desejamos, o que acreditamos. Ela é uma prótese cognitiva — e, como tal, altera a mente humana. Como alerta o filósofo Yuk Hui, entramos em uma nova “era técnica da mente”, onde os limites entre quem pensa e o que pensa se confundem.
Uma rede sociotécnica: humanos + máquinas
Não somos mais uma espécie isolada. Vivemos em redes sociotécnicas, onde humanos e máquinas interagem em ecossistemas complexos.
Em um artigo publicado na ACM Transactions on Human-Computer Interaction, pesquisadores afirmam que sistemas humanos e máquinas já devem ser estudados como coautores de decisões — não como ferramenta e operador.
O conceito de Human-Machine Networks (HMNs) propõe que agimos em conjunto com algoritmos, sensores, softwares, e que essas interações não são neutras. Elas afetam a ética, a justiça, a política.
O design que nos molda
Cada tecnologia carrega uma visão de mundo. O martelo pressupõe que algo deve ser batido. O telescópio, que algo deve ser observado à distância. E o algoritmo, que tudo pode ser previsto. O design da tecnologia é, portanto, o design do humano.
Por isso, Pierre Lévy fala em “ecologia cognitiva”: as tecnologias moldam nossos modos de pensar, sentir, lembrar, decidir. A escola moderna moldou o raciocínio linear. As redes sociais moldam o pensamento fragmentado. A IA moldará o quê?
O tecnosapiens: uma nova versão de nós mesmos
Em um artigo chamado Birthing Techno-Sapiens, pesquisadores propõem que estamos criando uma nova espécie: tecnosapiens. Seres que vivem conectados, atualizados em tempo real, com múltiplas identidades digitais.
Não se trata de ficção científica, mas da vida cotidiana: o adolescente que vive através do Instagram já é, em parte, um tecnosapiens.
Mas essa transição tem um custo. Tecnologias carregam vieses, estruturas de poder, desigualdades. Se somos moldados por elas, precisamos perguntar: quem está desenhando as tecnologias que nos moldam? E para quem elas servem?
A filósofa Donna Haraway já alertava: não somos apenas usuários de tecnologia — somos também por ela usados. Quando deixamos de entender como as coisas funcionam, tornamo-nos dependentes de caixas-pretas. E a caixa-preta da IA é talvez a mais opaca da história.
Por isso, a alfabetização digital e crítica é hoje uma forma de sobrevivência. Precisamos saber programar, mas também desprogramar. Questionar. Educar para a consciência técnica.
A natureza da nossa artificialidade
Não somos contra a técnica. Somos a técnica. Desde a primeira pedra afiada até o algoritmo que gera este texto, nossa espécie nunca viveu sem o artificial. O que é natural para o Homo sapiens é viver cercado de próteses, extensões, engenhocas, sistemas.
Mas precisamos lembrar: se somos uma espécie tecnológica, então o futuro da humanidade está diretamente ligado à forma como desenhamos, usamos e regulamos essas tecnologias. A ética da IA é, no fundo, a ética da nossa própria espécie.
Conclusão: o humano que se refaz
Olhando para trás, vemos que o fogo nos tornou cozinheiros. A escrita, historiadores. A máquina a vapor, industriais. A IA, talvez, nos tornará… outra coisa.
A questão não é se somos artificiais. Sempre fomos. A questão é: que tipo de artificialidade estamos dispostos a aceitar? Que tipo de humanos queremos ser, agora que podemos redesenhar até nossa própria mente?
A resposta, como sempre, está na intersecção entre o conhecimento, o cuidado e a consciência. Porque, se somos uma tecnoespécie, então nossa maior responsabilidade é com aquilo que ainda seremos.
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