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A verdadeira história da "cobra de quatro patas"
Reportagem Seriada

A verdadeira história da "cobra de quatro patas"

Em 2015, paleontólogos estrangeiros descreveram um fóssil provavelmente traficado do Cariri como uma "cobra de quatro patas". Seis anos depois, uma nova análise — agora incluindo um brasileiro — indica que o bicho não é cobra coisa nenhuma, mas um lagarto semiaquático
Episódio 16

A verdadeira história da "cobra de quatro patas"

Em 2015, paleontólogos estrangeiros descreveram um fóssil provavelmente traficado do Cariri como uma "cobra de quatro patas". Seis anos depois, uma nova análise — agora incluindo um brasileiro — indica que o bicho não é cobra coisa nenhuma, mas um lagarto semiaquático
Episódio 16
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Nossa história começa há seis anos, em 24 de julho de 2015. Os paleontólogos David Martill (Reino Unido), Helmut Tischlinger (Alemanha) e Nicholas Longrich (Estados Unidos) publicaram uma pesquisa na revista científica Science com o seguinte título: “ Uma cobra de quatro patas do início do Cretáceo de Gondwana "Tradução livre do títutlo original: A four-legged snake from the Early Cretaceous of Gondwana" ”.

O estudo, que descrevia um fóssil da Formação Crato, do Cariri, agitou o mundo da Paleontologia. O que os pesquisadores propunham era ter encontrado um ancestral das serpentes atuais, mas com quatro patinhas, chamado de Tetrapodophis amplectus. O espécime poderia ser um “elo perdido” entre lagartos e cobras. Uau.

Paleoarte da tetrapodophis imaginada como uma cobra com quatro patas. De acordo com a pesquisa, as patas seriam utilizadas para agarrar as presas.(Foto: Julius Cstonyu/Divulgação)
Foto: Julius Cstonyu/Divulgação Paleoarte da tetrapodophis imaginada como uma cobra com quatro patas. De acordo com a pesquisa, as patas seriam utilizadas para agarrar as presas.

Essa notícia, é claro, empolgou bastante quem pesquisava a evolução das serpentes. Em especial, o paleontólogo Michael Caldwell, que tem estudado a evolução de répteis escamados — divididos entre serpentes, lagartos e anfisbenas "No Brasil, são popularmente conhecidas como cobra-de-duas-cabeças. São diferentes das cobras cegas."  — e trabalhado em um livro sobre o assunto.

Por isso, Caldwell precisava ver ao vivo o fóssil da tal cobra de quatro patas. Por sorte (e eu já explico porque foi sorte mesmo), ele conseguiu analisar o material o suficiente para franzir o cenho e pensar o seguinte: é bem difícil que isso seja de fato uma cobra.

 

 

Seis anos depois, a verdade

Caldwell não foi o único que achou um pouco estranha a descoberta, mas foi o líder da pesquisa que conseguiu determinar o que é aquele bicho de um Ceará antigo. Publicada nesta quinta-feira, 18 de novembro, na revista científica Journal of Systematic Palaeontology, o estudo de seis anos do paleontólogo e equipe aponta: “Tetrapodophis amplectus não é uma cobra”!

Ela é, na verdade, um lagarto semiaquático. Há 125 milhões e 113 milhões de anos, o Cariri tinha lagos, onde a não-tão-cobra assim provavelmente nadava. Mas como é possível que os primeiros pesquisadores não chegaram a essa conclusão?

 

 

De acordo com o paleontólogo Tiago Simões, coautor do estudo e pesquisador brasileiro no Museu de Zoologia Comparada (Universidade de Harvard), o primeiro estudo tinha sérios problemas de descrição e ignorou vários dados importantes para uma análise completa.

“Primeiro, há sérios problemas de interpretação anatômica e taxonomia "Área que organiza e classifica os seres vivos."  no artigo original”, explica. Nesse sentido, Tiago destaca que o trabalho liderado por Martill sequer traz a diagnose da espécie; ou seja, a descrição bem detalhada das características do bicho. “Isso é uma clara violação das regras básicas de nomenclatura de uma nova espécie”, reforça.

Além disso, o fóssil da tetrapodophis é composto por duas peças: uma na qual o esqueleto ficou preservado e outra, o crânio. No entanto, o estudo original descreveu apenas o crânio e ignorou a outra peça, que tinha os ossos da região temporal quebrados. "Esses ossos mostram características típicas de dolichossauros, mas são totalmente perdidos nas serpentes", diz Tiago. Em nota, Michael Caldwell completa: "Essas várias características deixam claro que os tetrapodophis não tinham o crânio de uma cobra — nem mesmo de uma primitiva."

Os dois moldes do fóssil da tetrapodophis. No molde de cima, as impressões do corpo e das patas. No de baixo, o crânio do lagarto semiaquático.(Foto: Dave Martill/University of Portsmouth)
Foto: Dave Martill/University of Portsmouth Os dois moldes do fóssil da tetrapodophis. No molde de cima, as impressões do corpo e das patas. No de baixo, o crânio do lagarto semiaquático.

A confusão foi tamanha que nem a justificativa de a cobra ter patas fazia sentido. Martill e os outros paleontólogos interpretaram que as origens das cobras, evidenciadas pela tetrapodophis, era intermediada pela habilidade de se escavar.

Como explica Tiago, a lógica era que as patinhas da suposta cobra eram utilizadas para escavar a terra. O problema é que, analisando o fóssil, os ossos dos pulsos não eram ossificados (endurecidos) — o que se espera de animais que cavam e exercitam bem as patas superiores.

Ela ser um lagarto semiaquático, portanto, faz muito mais sentido, já que os pulsos menos enrijecidos são ótimos para nadar.

Reconstrução da tetrapodophis como um lagarto semiaquático.(Foto: Julius Csotonyi)
Foto: Julius Csotonyi Reconstrução da tetrapodophis como um lagarto semiaquático.

 

 

Por que tanta demora para a reclassificação?

Lembra que eu comentei que Caldwell teve sorte de analisar o fóssil do agora-lagarto semiaquático ao vivo? Ocorre que a tetrapodophis é mais um dos milhares de fósseis cearenses retirados ilegalmente do Brasil.

 

 

Ela foi parar em uma coleção particular e, por meio dela, foi para o Museu Bürgermeister-Müller, em Solnhofen (Alemanha). Foi lá onde Martill teve acesso ao fóssil, segundo afirmou em entrevista ao Estadão em 2015. Assim que a pesquisa saiu, Caldwell correu ao museu para ver o fóssil de perto, mas se ele tivesse demorado um pouco mais, o fóssil já não estaria disponível.

Isso porque um ano depois, o holótipo "O fóssil original utilizado para descrever uma espécie." foi submetido a uma tomografia computadorizada, mas o grupo de pesquisa responsável quebrou o material no processo. O colecionador recolheu o fóssil e proibiu o acesso à tetrapodophis. Desde então, vários paleontólogos tentaram acessar o material para estudo, acompanhados sempre de negativas.

O fóssil da tetrapodophis.(Foto: Dave Martill/University of Portsmouth)
Foto: Dave Martill/University of Portsmouth O fóssil da tetrapodophis.

“Isso é um problema para a reprodução do método científico”, lamenta Tiago, sobre as barreiras facilitadas pelas coleções particulares. Sem o acesso aos fósseis, inclusive aqueles já estudados e descritos, a ciência é impedida de seguir em frente utilizando-se da sua base mais sólida: a análise sistemática de pesquisadores do mundo inteiro.

“Materiais científicos devem estar em coleções de museus e de acesso público, por via de regra e ética da ciência. Sem isso, o acesso se torna um privilégio que hoje não deveria existir no meio científico. É um privilégio do século XIX. É informação científica perdida para sempre”, frisa o paleontólogo brasileiro.

 

 

O real problema

Além da retirada possivelmente ilegal do fóssil com base na legislação brasileira, o caso da tetrapodophis evidencia o quão colonizada a ciência ainda é. É dizer que países do hemisfério norte continuam produzindo muito em cima de materiais do hemisfério sul — muitas vezes considerados patrimônios, como no caso do Brasil.

O real problema na descrição não é, necessariamente, o erro na classificação. Em condições ideais, isso pode acontecer mesmo e a ciência vive de revisão sistemática e estudos constantes para ir calibrando e corrigindo más interpretações.

Mas o contexto antiético de exportação do fóssil, envolvendo o tráfico, e a falta de acesso aos materiais transformam a história do lagarto semiaquático em mais um caso de luta pela descolonização da ciência. Tanto que o estudo de reclassificação do animal contém um capítulo dedicado para os aspectos éticos e legais.

Ilustração do artista Artur Victor (@artur.vict no Instagram) para o movimento ENTITY_sharp_ENTITYUbijaraBelongsToBR.(Foto: Artur Victor)
Foto: Artur Victor Ilustração do artista Artur Victor (@artur.vict no Instagram) para o movimento ENTITY_sharp_ENTITYUbijaraBelongsToBR.

“Eu não fui chamado (para participar da pesquisa) por ser brasileiro. É o contrário: por ser brasileiro, eu chamei tanta atenção para a importância de estudar esse material”, afirma Tiago, o único brasileiro envolvido na reclassificação da tetrapodophis. “Foi uma grande sorte e oportunidade de estar no lugar certo e, ao mesmo tempo, de conhecer a legislação brasileira e estar a par do tráfico de fósseis.”

A publicação da pesquisa vem em boa hora: na segunda-feira, 15 de novembro, um grupo de paleontólogos brasileiros publicaram um artigo na revista científica Nature Ecology and Evolution chamado "O imperativo moral e legal de devolver fósseis exportados ilegalmente".

A carta chama a atenção para vários casos de fósseis traficados, especialmente o caso mais recente do Ubirajara jubatus. O POVO Mais tem acompanhado a história do Ubirajara desde o começo e tem atualizado os fatos. Veja as informações mais recentes sobre o caso no Web Storie abaixo:

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