"Em novembro de 2024, Álamo Saraiva será o 1º brasileiro a receber a premiação Morris F. Skinner, mais prestigiado prêmio da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados"
Quando Álamo Saraiva fala, todos ouvem. Ele tem um jeitão de contador de histórias, movendo as mãos como um maestro, manobrando palavras que traduzem complexidade em coisas simples. Várias vezes vi e ouvi essa atração didática, mas a mais impressionante foi no dia 10 de dezembro de 2022, durante um campo promovido pelo PaleoNordeste 2022, reunião anual dos paleontólogos nordestinos.
Estávamos em frente ao Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN), em Santana do Cariri (CE), capital cearense da paleontologia. Eu tomava um sorvete napolitano enquanto descansava de uma manhã de curtas caminhadas e muitas explicações sobre os tipos de solos e fósseis da região, conversando com Álamo sobre o que tinha achado do passeio. Então, um trio de alunas se aproximou e fez uma pergunta científica demais para eu entender.
A resposta era longa. Acostado em uma árvore, Álamo passou a tecer teias do passado, movendo placas tectônicas com os dedos e aglomerando camadas e mais camadas de detritos com as mãos. De repente, dez pessoas rodeavam o professor, atentos, vislumbrando processos físicos e químicos ancestrais como quem vê claramente através de uma lupa.
Tive a mesma experiência que os estudantes quando, para o especial Cariri Pré-Histórico, precisei entender a formação da região e os diferentes estágios de lagos e lagunas. “Olá, minha princesa! Pode perguntar que eu lhe respondo”, diz, ao atender as demandas de entrevista. É um dos pouquíssimos homens que consegue chamar mulheres de princesa sem parecer petulante ou atrevido.
Antônio Álamo Feitosa Saraiva nasceu no Crato, no dia 21 de março de 1961. Foi vaqueiro até os 14 anos de idade, mas em 1994 virou professor na Universidade Regional do Cariri (Urca). Atualmente, é chefe do Departamento de Ciências Biológicas e coordenador do Laboratório de Paleontologia da Urca. É um dos pioneiros na pesquisa paleontológica caririense e, quase por consequência, também integra o grupo de pesquisadores dedicados em combater o tráfico de fósseis do Ceará e do Brasil.
Álamo sempre foi “doido” pela natureza, como ocorre muito com os que nascem no pé da Chapada do Araripe. Fazia criação de peixes e girinos, operava lagartixas e sonhava em ser veterinário. Também adorava vaqueiros, inspirado no pai, agrônomo, e no avô.
Esse sonho desmoronou quando visitou, aos 16 anos, uma granja perto de Fortaleza. Lá, viu como os pintinhos eram selecionados e mortos caso tivessem algum “defeito”. Entre eles, uma das vítimas foi um pintinho negro, cor oriunda de uma rara condição genética chamada fibromenalose. “E existe racismo até aqui?!”, encucou, desistindo totalmente do mundo da veterinária ou agronomia.
Então virou-se para a opção mais próxima, a Biologia, focando em plantas. Em um dia como qualquer outro em 1998, foi chamado para a sala do então vice-reitor da Urca,
“Me dê uma aula sobre peixes”, disse ele, segurando um livro de ensino médio com a imagem de um peixe aberto. A pergunta pegou Álamo de surpresa, mas vá lá, deu a aula de 20 minutos. Satisfeito, Plácido sugeriu que ele estudasse os fósseis de peixes do Cariri.
— Magnífico, é porque eu trabalho com coisas, plantas, viventes. Isso é muito longe de mim.
— Eu sou sociólogo e eu sei a importância disso — retrucou Plácido, irônico. “Isso para mim soou como um papa”, relembra Álamo. “Foi uma provocação muito grande.”
Na mesma época, Plácido pediu para Álamo acompanhar o paleontólogo Alexander Kellner, atualmente diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), nas expedições pelo Cariri, principalmente por ser conhecedor dos caminhos após tantas trilhas de infância com os adorados vaqueiros.
Logo Kellner viu potencial em Álamo e o incluiu como coautor em dois artigos científicos publicados analisando materiais do Cariri. Pela convenção científica, estava determinado: Álamo era oficialmente um paleontólogo.
Pesquisa publicada nos anos 90 mostrando a conservação de tecidos moles em dinossauros
Encontrou-se um fóssil de grupo de camarão que, até então, era tido como muito recente
Pesquisa demonstrou como a Antártica era coberta de vegetação e mais quente há 75 milhões de anos
No entanto, os caminhos de Álamo também foram influenciados por gente de fora da academia — e tão competente quanto. Entre eles, Bonifácio Malaquias, relembrado pelo professor durante uma entrevista no Laboratório de Paleontologia (Paleolab) da Urca.
O professor o conheceu na época da sua primeira escavação, em 1999. “O ano que nasci”, comentei durante a entrevista, sem saber que seu Bonifácio escavava desde 1961, ano de nascimento de Álamo. No último ano do século XX, o Cariri cearense sediaria o 16º Congresso Brasileiro de Paleontologia, e Plácido incubiu Álamo de fazer uma escavação no Parque dos Pterossauros para mostrar aos congressistas os diferentes níveis de mortandade de fósseis.
Para isso, o iniciante precisava de muito ajuda. Ele procurou então seu Bonifácio, um experiente peixeiro de 60 anos de Santana do Cariri. Peixeiros são aqueles que escavam fósseis para venda, crime no Brasil em razão dos materiais geológicos serem patrimônio da União. Por isso, Bonifácio estranhou a aproximação de Álamo pedindo ajuda na escavação, com medo de ele ser da Polícia Federal.
— Nããão… O que é fósseis?
— Aquelas pedras de peixe que tem dentro…
— Eu já ouvi falarem, mas eu não mexo com isso não…
“E tudo que eu perguntava, ele dizia que não sabia”, ria Álamo. Aos poucos ele conquistou a confiança de seu Bonifácio e, com ela, conheceu um dos homens mais experientes na prospecção de sítios paleontológicos, na compreensão das “famílias de peixes” e dos peixes que davam apenas nos terrenos mais barrosos. Informações até então ausentes na literatura científica. “Isso foi o ponto central da minha tese de doutorado. Quem me deu foi um peixeiro semianalfabeto.”
Ver a muvuca das escavações empolgou seu Bonifácio a ponto de desejar virar paleontólogo. Terminou o ensino fundamental e o ensino médio pela Educação de Jovens e Adultos (EJA) e estava estudando para tentar entrar na universidade quando faleceu por um aneurisma em 2012.
“Seria, para mim, o maior orgulho do mundo se eu visse seu Bonifácio aqui dentro, estudando Biologia. Ele me inspirou muito, me ajudou muito”, lamentou Álamo, centralizado na mesa do Paleolab.
O ônibus do campo da PaleoNordeste vinha lotado de estudantes admirados com a experiência, muitos com passagem de ônibus arrecadada por vaquinha (como foi o caso dos alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), outros motorizados pelos próprios professores (como os da Universidade Federal do Piauí). No meio das conversas, do barulho do ar-condicionado esforçando-se para resfriar uma quente tarde caririense, entra Álamo pela porta.
Senta-se na mesma fileira que a minha, ultrapassando o corredor. Na mão, uma garrafa de cerveja suando de gelada. O primeiro gole seguido do “aaaahh” de comercial me fez rir. Dois dias antes, ele tinha contado em entrevista que sentiria muita saudade da experiência de tomar uma cerveja gelada após um longo e cansativo dia de escavação. “É uma sensação que eu considero inigualável”, disse.
Com 62 anos, Álamo considera a aposentadoria. Foi professor dos atuais pesquisadores da Urca, entre eles Renan Bantim, curador associado do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN) e o primeiro paleontólogo formado pela Urca a virar doutor.
Nas andanças de pesquisa, ele já caminhou por quase todo o mundo. Do interior do Brasil à China, conheceu mais solos do que eu jamais conhecerei. Bambeando entre aventureiro e contido, é o tipo de pessoa que nega uma subida ao Monte Fuji, no Japão, só para evitar o cheiro pútrido do vulcão; mas fere os pés e esquece de beber água por dias para alcançar os melhores pontos de escavação.
Para além dos montes de estudantes formados, da consolidação do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Biológica e Recursos Naturais (PPGDR/Urca) e da publicação de incontáveis espécies de bichos e plantas fósseis, Álamo também trabalhou como “ferrenho defensor” da permanência dos fósseis no Cariri.
Assim como muitos caririenses, Álamo também dava fósseis de lembrancinhas para visitantes, sem entender a importância deles ou como o ato é considerado crime pela legislação brasileira. Adulto, adicionou-se à força tarefa de pesquisadores e cidadãos do Cariri cearense na luta contra a venda e o tráfico de fósseis, da qual o dinossauro Ubirajara jubatus é símbolo.
Ele sonha com a possibilidade do Ubirajara de volta, assim como de tantos outros fósseis incríveis que poderiam estar no acervo do MPPCN estimulando o turismo científico e o comércio em torno do museu. Tem mais: sonha em ver o primeiro mamífero descrito no Cariri, as plantas com flor e a cadeia alimentar do Cretáceo toda montadinha, conhecida como quem observa a palma da própria mão.
Enquanto isso, os planos são aproveitar os filhos, os netos. Curtir a casa e o universo contemporâneo que apenas o Cariri pode oferecer. Claro, sempre com as janelas abertas para o passado.
Série vai explorar personagens - famosos e anônimos - para destacar histórias de vida