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Lívia Sant'Anna Vaz: o Judiciário como palco da luta ancestral contra o racismo
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Lívia Sant'Anna Vaz: o Judiciário como palco da luta ancestral contra o racismo

Promotora de Justiça da Bahia, Lívia Sant'Anna Vaz traça um histórico da luta de mulheres negras, maior estrato social brasileiro, na Justiça, onde ela é uma das raras representações
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Lívia Sant’anna, promotora de Justiça do Estado da Bahia, que atua contra o racismo dentro so sistema judiciário brasileiro (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Lívia Sant’anna, promotora de Justiça do Estado da Bahia, que atua contra o racismo dentro so sistema judiciário brasileiro

O combate ao racismo e à desigualdade racial, principalmente dentro de espaços de poder, como o sistema Judiciário brasileiro, ainda caminha a passos lentos no Brasil. Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) constata que apenas 12,8% dos magistrados são negros no País, contra 85,9% de brancos, conforme dados de 2021. As mulheres negras ocupam só 5% dos cargos no CNJ.

A promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia (MP-BA) Lívia Sant'Anna Vaz é uma das únicas mulheres negras do sistema de Justiça do Brasil a pautar questões raciais na prática jurídica. No fazer, encontrou meios de combater um mal que conhece de perto. Em 2019, ela foi ganhadora do Prêmio do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) pelo aplicativo “Mapa do Racismo e da Intolerância Religiosa”.

Ao O POVO, ela, que atua na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, na Bahia, desde 2015, conta como e por que chegou ao sistema de Justiça, além levantar debates sobre políticas afirmativas, Lei de Cotas e bancas de heteroidentificação em concursos públicos, iniciativas que ajudam a combater racismo institucional, fruto do racismo estrutural no país.

O POVO - Como foi sua chegada ao sistema de Justiça do Brasil?

Lívia Sant'Anna Vaz - Eu preciso começar pela minha escolha em seguir a carreira jurídica. Isso é importante para explicar como a raça atravessa nossas decisões em um país tão estruturalmente racista como o Brasil. Lembro que, aos 17 anos, meu pai me chamou no canto da sala e me perguntou qual a carreira que eu gostaria de seguir. E eu respondi rapidamente: Jornalismo. Dizem que eu sempre tenho resposta pronta para tudo, então eu respondi, sem pensar, talvez jornalismo. E ele (pai) me devolveu com uma pergunta e foi se eu já tinha visto jornalistas negras na televisão.

Naquela época, era muito raro. Se hoje ainda é raro essa representação negra nos meios de comunicação, naquela época era ainda muito mais. E aquilo para mim foi um banho de água fria, foi um susto, na verdade, de constatar que isso não era um espaço permitido na nossa sociedade para mulheres negras. E ele me sugeriu naquela época que eu seguisse a carreira jurídica.

Ele lembrou, inclusive, das reuniões de família em que a minha mãe costumava reunir os três filhos. O meu irmão mais velho, sempre muito tímido, ficava calado e ouvia as reclamações, as sugestões, muito calada. A minha irmã do meio era muito emotiva, então, ela chorava muito com o que era dito pela minha mãe. E eu, que sou mais nova, depois que a minha mãe falava, eu retrucava ponto por ponto, argumento por argumento, e ele (pai) lembrou disso naquela época.

Disse: “Você gosta tanto de argumentar, você fica tão indignada com as injustiças e eu acho que você deveria seguir carreira jurídica. E eu digo que naquele momento o meu pai estava dando uma orientação muito preciosa que nem ele sabia e nem eu sabia de que modo ia se desenrolar ou se desenvolver na minha vida.

Então, eu digo que hoje eu me sinto cumprindo exatamente a missão que a ancestralidade me determinou, me concedeu, que é de buscar uma outra justiça, uma justiça que tenha outras referências, buscar uma justiça que tenha a cara do nosso povo. E não uma justiça ainda branca, masculina, cristã, cis heterossexual, que reproduz tantas opressões.  É dessa forma que eu chego no sistema de Justiça, com uma orientação, como eu digo, do meu pai.

Eu me sinto cumprindo exatamente a missão que a ancestralidade me determinou, que é de buscar uma outra justiça, uma justiça que tenha outras referências, buscar uma justiça que tenha a cara do nosso povo. E não uma justiça ainda branca, masculina, cristã, cis heterossexual, que reproduz tantas opressões

OP - Quais desafios, como mulher negra, você enfrentou dentro da Justiça brasileira?

Lívia - Todos que uma mulher negra enfrenta em qualquer espaço institucional e de poder. Eu costumo dizer que eu demorei 12 anos para provar que sou promotora de Justiça. Talvez 12 anos tenha sido pouco porque até hoje eu preciso responder a pergunta: “Onde está a promotora de Justiça?”. Então, pessoas que vão à promotoria de Justiça com intuito de serem atendidas pela promotora ainda perguntam cadê a promotora, ou seja, a minha figura não é uma figura que se parece com uma figura de uma promotora.

Há um estranhamento na presença de uma mulher negra ocupando esse espaço de poder. Eu costumo dizer que um dos efeitos mais perversos — mas também mais comuns — do racismo é naturalizar ausências. De um lado, ele naturaliza a ausência de pessoas negras, sobretudo de mulheres, em espaços de poder, como o sistema de Justiça, o poder Legislativo e Executivo, como gerentes e gestoras de grandes empresas. Mas, de outro lado, esse mesmo racismo, ele vai naturalizar a presença ou sobrerrepresentação de pessoas negras no sistema carcerário, em comunidades onde há ausência do Estado para quase tudo, menos para intervenção policial.

OP - Qual a importância de pautar questões raciais dentro do Judiciário?

Lívia - Fundamental. Eu digo que a presença de uma mulher negra no espaço de poder, qualquer que seja ele, especialmente no sistema de Justiça já é, por si só, uma presença pedagógica. Quando nós estamos com os nossos turbantes, nossos búzios, nossos blacks e tranças, com a nossa identidade nesses espaços, isso não é estética. As pessoas costumam reduzir ou limitar isso ou a nossa identidade a estética, e não é só estética é linguagem. O nosso corpo fala e o nosso corpo fala antes de podermos abrir a boca, em especial em espaços que não podemos ou não somos autorizados a falar. As nossas vozes não ecoam.

Se portar como uma mulher negra nesses espaços é também assumir um posicionamento político antirracista e antissexista, contrário a todas formas de opressão. E se essa presença por si só já é pedagógica, se ela também se coloca num movimento contra-hegemônico de apontar o dedo, de propor soluções e justiça pluriversal — que ao invés de se afastar das pessoas, consideradas objetos de estudo, se aproximem dessas pessoas para poder promover festivamente justiça —, então essa presença, além de pedagógica, ela é também revolucionária.

Não adianta estarmos as poucas pessoas mulheres negras nesses espaços se for para reproduzir as mesmas opressões da branquitude. É importante que a gente entenda o nosso papel como água infiltrada nesse sistema. Porque somos poucas e nossos corpos são muito raros nesses espaços, mas a água infiltrada tem esse poder de encontrar os caminhos.

A água sempre encontra caminhos. Se ela não furar, não bater, ela contorna o obstáculo. Ela vai aos poucos minando essa estrutura densa que é o racismo. É importante que pessoas negras, que se tornaram negras — porque não é um processo de apenas cor da pele, é um processo de consciência racial —, que essas pessoas, de fato, entendam o seu papel na desconstrução desse racismo institucional.

A presença de uma mulher negra no espaço de poder, qualquer que seja ele, especialmente no sistema de Justiça já é, por si só, uma presença pedagógica. Quando nós estamos com os nossos turbantes, nossos búzios, nossos blacks e tranças, com a nossa identidade nesses espaços, isso não é estética

OP - O que seria o racismo estrutural e, consequentemente, o institucional?

Lívia - Muitas pessoas têm usado esse termo (racismo estrutural) para isentar responsabilidades. É preciso que nós coloquemos o racismo no meio da roda, que nós tenhamos a compreensão de que o racismo é central no nosso país, ele é um fator determinante de praticamente todas as desigualdades do nosso país. Se eu falar de mortalidade infantil, crianças negras são as mais vitimadas. Se eu falar em mortalidade materna e as violências obstétrica, doméstica, familiar, sexual, feminicidios, mulheres negras são as maiores vítimas.

Se eu falar em encarceramento em massa, violência policial letal, reconhecimentos judiciais equivocados que geram, inclusive, condenações, eu tenho aí jovens negros como foco dessas violências. E se eu falar em expectativa de vida, pessoas negras vivem menos que pessoas brancas em todos os estados da federação brasileira. A questão racial não é tangencial, é uma questão central da nossa não-democracia.

É fundamental que a gente tenha esse entendimento que o racismo é estrutural por conta da nossa história de opressão do povo negro porque se nós temos, de um lado, as relações étnicos-raciais pessoas brancas, que colhem privilégios históricos, acumulam privilégios históricos, esses privilégios são gozados e fruídos a partir de uma opressão contra corpos negros e indígenas. E o reconhecimento desse privilégio é o primeiro passo para que se possa falar, efetivamente, de antirracismo, para que pessoas negras comecem a refletir sobre o antirracismo, mas, para além disso, praticar o antirracismo.

Desde 2015, a promotora Lívia Sant’anna atua na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, na Bahia(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Desde 2015, a promotora Lívia Sant’anna atua na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, na Bahia

Portanto, o racismo estrutural, se a gente for fazer uma análise crítica da nossa história, ele vai fundar as relações de poder, desde as afetivas, familiares, profissionais até as sociais. Para além disso, é importante a gente pensar que o fato de um racismo ser estrutural, estar no alicerce da estrutura de uma sociedade, não justifica omissão.

Esse tem sido o discurso de parte da branquitude. Quando falo branquitude, não falo de pessoas brancas, mas de uma posição social de privilégio, que não é uma escolha. A branquitude tem se utilizado desse argumento do racismo estrutural para se isentar de responsabilidade e para se omitir. Afinal, se é estrutural não há o que fazer. Mas há o que fazer. Se o racismo é estrutural, as ações e posturas antirracistas precisam ser tão profundas quanto o racismo estrutural.

Quando eu falo do racismo estrutural, que estrutura todas essas relações de poder, há várias formas desse racismo se manifestar. Eu posso falar do racismo institucional, ambiental, religioso e racismo inter-individual. E, infelizmente, nós temos tido foco no racismo inter-individual, que é aquele racismo mais explícito, muitas vezes até com ofensas verbais. Atacar esse racismo é importante e considerar ele como crime. Está, inclusive, estabelecido na Constituição que o racismo é crime imprescritível e inafiançável. Mas eu sempre digo que não podemos colocar um ponto final nessa frase “racismo é crime”. Racismo é crime, reticências.

O racismo institucional, que é uma das manifestações desse racismo estrutural, vai se configurar, justamente, a partir dessa hierarquização racial das pessoas nas instituições públicas e privadas. Pessoas negras no Brasil, que possui 56% da população negra, estarão presentes em todas as instituições. A questão é apenas estarem presentes, é onde estão representadas. Por isso que falamos de diversidade e inclusão. A discussão sobre o racismo institucional é fundamental e ela precisa ser trazida para o ambiente do sistema de Justiça. O sistema faz uma fiscalização, um controle de outras instituições, muitas vezes, sem olhar para o próprio umbigo.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano passado, realizou uma pesquisa denominada “Negros e negras do Poder Judiciário”. Que deu conta de que as pessoas negras são apenas 12,8% de toda a magistratura brasileira. Se eu trouxer um olhar interseccional, mulheres negras são 5%. Só que mulheres negras são o maior grupo social brasileiro. Nós somos 28% da população brasileira, e não estamos representadas no sistema de Justiça.

Não somos magistradas, senadoras, deputadas federais, promotoras de justiça, prefeitas, vereadoras. Então, aquela frase tão importante dos movimentos sociais negros que diz “nada sobre nós sem nós” não tem sido uma realidade. Nós somos objeto de estudo, pesquisa, política pública e somos objetos de decisões judiciais porque nós também não estamos lá para decidir.

OP - Na sua avaliação, por que precisamos de ações afirmativas no sistema judiciário?

Lívia - Fundamental. Não só no sistema Judiciário. Existe uma música da Bia Ferreira que diz “Cota Não é Esmola”. Eu concordo em parte. Cota não é esmola porque é uma reparação histórica, uma dívida que o estado brasileiro, a sociedade e a Igreja Católica possuem com o povo negro desse país. Mas é apenas um pequeno passo rumo à justiça racial. A dívida histórica é imensa. Foram quase quatro séculos de escravização de corpos negros no Brasil. Dez anos de Lei de Cotas não dá conta de quase quatro séculos.

Se pensamos que a Lei de Cotas é apenas para o acesso ao ensino superior e às instituições federais de ensino, no modo geral, isso é muito pouco. A população negra no Brasil passou décadas proibida de frequentar a educação formal por lei. Se falarmos em espaço no mercado de trabalho no pós-abolição, o Brasil passou por uma política de embranquecimento da população, fundada em um racismo científico, que é uma ideia de que o Brasil, para progredir, era necessário embranquecer a população.

Nós tivemos um pós-abolição marcado pela marginalização que facilitou acesso a terras, moradia e postos de trabalho para pessoas brancas europeias, mas não garantiu o mesmo para pessoas negras recém-libertas, que foram exploradas por séculos nesse país, que construíram esse país a partir do trabalho escravizado.

É importante entender essa história para que a gente compreenda de fato essa reparação. Para que a gente compreenda que cota, nesse sentido, acaba sendo esmola porque é apenas um passo curto rumo à essa justiça racial. Talvez seja a política pública de mais sucesso pelos efeitos que ela produz no nosso país, mas é muito pouco.

O racismo no Brasil é camaleônico, ele consegue de metamorfosear quando nós avançamos em uma igualdade racial ele consegue reconstituir novas formas, se regenerar para manter a hegemonia, manter o poder, os recursos, as posições sociais, o privilégio nas mãos das pessoas brancas. Portanto, há uma reação

OP - Uma discussão recente acerca da lei de cotas, principalmente aqui no Ceará, é sobre a desqualificação das bancas de heteroidentificação. O quão preocupante é essa discussão e quais consequências ela pode gerar?

Lívia - Desqualificar as bancas de heteroidentificação, inclusive reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como mecanismo importante de controle, é validar uma nova forma de racismo. O racismo no Brasil é camaleônico, ele consegue de metamorfosear quando nós avançamos em uma igualdade racial ele consegue reconstituir novas formas, se regenerar para manter a hegemonia, manter o poder, os recursos, as posições sociais, o privilégio nas mãos das pessoas brancas. Portanto, há uma reação. Nós não teremos políticas públicas de igualdade racial sem reação da branquitude. E essa é uma reação da branquitude, a fraude no sistema de cotas.

Portanto, as comissões de heteroidentificação são mecanismo fundamental para que essa política pública atinja seu objetivo. Aí surge a acusação do tribunal racial. Eu digo que nós temos tribunal racial no Brasil desde o primeiro navio negreiro que aportou aqui. As comissões de heteroidentificação não são tribunais raciais. Porque o que nós temos no Brasil é um preconceito racial de marca. Pessoas socialmente brancas não podem recorrer a sua ascendência negra, independentemente do grau de ascendência, para se beneficiar de uma política de cotas que pela primeira vez na história desse país reconhece o fato de uma pessoa ser negra como algo importante para se conceder um direito.

O que importa para o racismo no Brasil é a imagem que a pessoa carrega. Se o racismo tem como critério a imagem da pessoa, as comissões de heteroidentificação só têm que seguir esse mesmo critério para que pessoas potencialmente vítimas de discriminação racial, no contexto brasileiro, sejam aquelas a acessar o sistema de cotas. Essas comissões são fundamentais para que nós tenhamos a eficácia da política pública.

São dez anos de Lei de Cotas. Nós não podemos esquecer a perda que tivemos, o passivo, as pessoas negras que deixaram de ingressar para dar lugar a pessoas brancas que estiveram fraudando esse sistema. Então é fundamental. Essa política pública não pode ser para todas as pessoas. As ações afirmativas são uma medida especial de equidade racial para garantir que pessoas que fazem parte de um grupo étnico-racial vulnerabilizado possam acessar espaços que não acessariam se não fossem essas políticas.

Se eu posso recorrer à minha ancestralidade negra em qualquer grau, como querem as pessoas socialmente brancas fazer para acessar as vagas reservadas, a política pública é para todas as pessoas, porque nós temos um país miscigenado. E se a ação afirmativa é para todo mundo, ela não é para ninguém. Ela perde o seu objetivo. Portanto, é fundamental que nós consigamos compreender o papel das comissões e legitimar o papel das comissões.

Lívia Sant’anna, promotora de Justiça do Estado da Bahia, que atua contra o racismo dentro so sistema judiciário brasileiro(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Lívia Sant’anna, promotora de Justiça do Estado da Bahia, que atua contra o racismo dentro so sistema judiciário brasileiro

OP - O que seria hoje um sistema de justiça igualitário?

Lívia - É um sistema efetivamente pluriversal. Eu trago uma visão de um filósofo sul-africano chamado Mogobe Ramose. Ele fala em pluriversalidade porque essa ideia do sujeito universal, ela é focada em determinados sujeitos. E aí eu vou lembrar uma frase de Grada Kilomba quando ela diz assim: “A mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Ela se identifica em termos de raças de gênero porque ela precisa pautar essas questões que são suas formas prioritárias de opressão para defender os seus direitos fundamentais”.

As mulheres brancas continuam dizendo que são mulheres. Elas não precisam fazer uso da sua branquitude porque a branquitude, aqui no caso, é o privilégio dessas mulheres brancas, que discutem apenas gênero como se raça não fosse uma forma de opressão. E os homens brancos se dizem pessoas. Eles nem se racializam e nem se identificam em termos de gênero no discurso. E esse exclusivismo de uma branquitude masculina também está arraigado no sistema de Justiça. São homens brancos que produzem as leis nesse país, que interpretam e aplicam as leis nesse país.

Não é à toa que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no caso Simone Diniz, em 2006, reconheceu que nós temos um sistema de Justiça institucionalmente racista porque, embora a legislação tenha evoluído para uma realidade e um contexto antirracista, o poder Judiciário, o sistema de Justiça, como um todo, não aplicam a legislação. Porque as pessoas negras não estão lá representadas.

Quando eu afirmo em coautoria com a procuradora federal pernambucana Chiara Ramos que "A Justiça é uma Mulher Negra", e é um livro que nós publicamos, é nesse sentido de trazer um confronto a essa realidade, a esse sistema de Justiça que é branco, masculino, cis heterosexual e cristão. E que com isso produz visões parciais de liberdade, de justiça e de igualdade.

É preciso que nós tenhamos em mente que o direito pode continuar sendo branco e masculino, o sistema de Justiça também, mas a justiça é uma outra concepção. Nós estamos construindo essa justiça afrodiaspórica, pluriversal, que leve em consideração todas as pessoas e que afaste todas as formas de opressão. Para isso, essa justiça precisa ter olhos abertos, e não vendados.

Nós temos uma representação da justiça como uma mulher branca, uma figura mitológica grega Themis. E eu costumo dizer que uma justiça de olhos vendados só tem a capacidade de manter as coisas como elas estão, as coisas como estão não são democráticas, não são justas, então nós precisamos de uma outra concepção de justiça.

OP - Uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que apenas 12,8% dos magistrados são negros no país, contra 85,9% de brancos. Na sua avaliação, o que pode ser feito hoje para estarmos mais perto de atingir a igualdade racial no Brasil?

Lívia - O controle da política pública é fundamental e o controle não passa apenas por termos de comissões de heteroidentificação nos concursos. Há várias medidas, especialmente nos concursos, para o sistema de Justiça que precisam ser adotadas. Porque se nós pensarmos as comissões julgadoras, as bancas dos concursos, elas são todas brancas. Se nós pensarmos o conteúdo das provas, são conteúdos brancocêntricos, eu diria.

Muito pouco, quase nada, se discute sobre o Estatuto da Igualdade Racial, a Convenção Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção Interamericana contra o Racismo, não se discute relações étnico-raciais. Qual é a mensagem que eu passo para um candidato, uma candidata, a ingressar no sistema de Justiça? Que esses temas não são importantes, que ela ou ele não precisam ter conhecimento sobre relações étnico-raciais para atuarem e (a verdade é que) precisam.

Lívia Sant’anna, prootora na Bahia, é uma das únicas mulheres negras do sistema de Justiça do Brasil a pautar questões raciais na prática jurídica (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Lívia Sant’anna, prootora na Bahia, é uma das únicas mulheres negras do sistema de Justiça do Brasil a pautar questões raciais na prática jurídica

Portanto, há que se revisar a composição dessas comissões julgadoras de concurso, há que se revisar os conteúdos das provas, principalmente há que se eliminar as cláusulas de barreira. As cláusulas de barreira que limitam a quantidade de pessoas aprovadas entre as fases do concurso e que vão atuar de maneira prejudicial, principalmente contra candidatos e candidatas cotistas.

No fim das contas, o que nós precisamos, para além de garantir reservas de vagas nos editais, é preencher as vagas. Nós ainda temos testemunhado turmas inteiras de defensores e defensoras públicas, de promotores e promotoras e de juízes e juízas inteiramente brancas. Como isso é possível num contexto em que existem medidas positivas, medidas especiais, como as cotas raciais para inclusão da população negra nesses espaços? É preciso pensar que meritocracia é essa que exclui pessoas negras a priori e que faz com que elas não avancem nos concursos.

Esses concursos do sistema de Justiça, na primeira fase, por exemplo, exigem uma competência de memorização. Será que essa competência é tão importante assim? Quem são as pessoas que podem gozar do ócio necessário para decorar leis e normas com pontos, vírgulas e crases? Pessoas negras não podem, pessoas negras têm segundo, terceiro, quarto turno para sobreviver, alimentar a sua família, seus filhos.

Quando nós pensamos em provas de títulos, um outro exemplo de filtro racial em concursos públicos, que que títulos são esses? Pós-graduação, mestrado e doutorado? Afinal de contas, essas pessoas estão aqui para lecionar ou estão aqui para atender ao público? Estão aqui para defender o interesse público, os direitos fundamentais, o estado democrático de direito. Porque, se não estão aqui para lecionar, de que vale um doutorado? O que faz com que um homem branco doutor oriundo das elites seja mais importante num espaço como esse do que uma mulher negra da periferia oriunda de movimentos sociais? A meritocracia branca brasileira. Essa é a resposta.

Nós temos que rever essa meritocracia se nós queremos, de fato, chamar esse estado de democrático de direito. Porque no estado democrático de direito as instituições públicas e privadas deveriam refletir minimamente a diversidade étnico-racial, de gênero e de orientação sexual e outras tantas do seu povo e não refletem.

OP - Outro ponto é que, segundo o IBGE, há apenas 2% de mulheres negras no Congresso Nacional. Como essa sub-representação das mulheres negras na política impacta o cotidiano dessas mulheres?

Lívia - De maneira muito intensa e contundente, embora ainda silenciada. Eu vou dar o exemplo dos dados dos Atlas da Violência. Repetidamente, esses Atlas têm revelado que, a cada dez anos, nós temos uma redução dos feminicídios de mulheres brancas e, no mesmo período, um aumento dos feminicídios de mulheres negras. Eu sempre tenho trazido essa discussão e esse debate.

O que acontece com a Lei Maria da Penha "Lei criada para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. O nome homenageia e farmacêutica e ativista cearense, vítima emblemática deste tipo de violência" ? As leis não são universais? Por que a Lei Maria da Penha não consegue proteger mulheres negras da mesma maneira que protege mulheres brancas? Eu não estou dizendo que a proteção de mulheres brancas é suficiente, não é suficiente, mas é mais eficiente ou menos ineficiente do que a proteção de mulheres negras. Por quê? O problema está com a lei ou está em quem aplica ou deixa de aplicar a lei? Ou está com o nosso sistema de justiça e de segurança pública, que não conseguem acolher essa mulher negra porque também reproduzem racismo? Porque essas mulheres negras não estão lá representadas.

É preciso que nós estejamos representadas, as mulheres negras em todos os espaços de poder e no Congresso Nacional, principalmente, para propor políticas públicas para propor a concretude, a execução dos direitos fundamentais que mulheres negras não costumam acessar. Quando nós pensamos que o feminicídio negro sempre esteve em curso no Brasil e há um silêncio sobre isso e que as poucas mulheres negras que acessam os espaços, como Marielle Franco "Vereadora carioca, assassinada por milícias do Rio de Janeiro em 2018" , denunciam esse tipo de opressão é como se nós tivéssemos ecoando vozes de toda uma ancestralidade que nos permitiu chegar até aqui.

É muito importante que eu diga, já que tenho esse espaço pra falar — embora não queira falar por toda uma coletividade —, mas é muito importante dizer que nós chegamos até aqui sem o apoio do sistema de Justiça, do estado brasileiro e da academia jurídica.

Se eu estou aqui na sua frente hoje podendo falar sobre o que estamos falando, é porque muitas mulheres negras antes de mim abriram caminhos, morreram, deram sangue e suor para que eu esteja aqui. Eu preciso honrar esses passos que foram dados antes e continuar abrindo caminhos. Não é mais sobre mim, apenas, é sobre abrir caminhos para que outras mulheres negras estejam presentes nesse espaço. Porque representatividade é importante mas não basta.

E as cotas raciais são sobre a presença, é sobre incrementar presença, óbvio, representatividade é importante porque é muito difícil uma criança negra querer ser uma promotora de justiça, por exemplo, se ela nunca viu uma promotora de justiça negra. Acaba que esses poucos exemplos acabam sendo inspiradores, acabam sendo de algum modo referências, mas nada adianta que essas referências estejam nesses espaços reproduzindo as mesmas opressões.

É importante que as cotas sejam respeitadas e valorizadas por muito mais tempo, revisadas e não revogadas porque os dez anos da lei não implicam em revogação da lei, ela fala em revisão. Se a revisão não for feita, ela vai ficar sendo devida pelo Poder Público. Mas, o fato de a lei alcançar os dez anos não vai revogar a política pública automaticamente de modo algum. A importância dessas cotas é justamente incrementar essa presença negra em todos os espaços de poder e decisão.

O que importa para o racismo no Brasil é a imagem que a pessoa carrega. Se o racismo tem como critério a imagem da pessoa, as comissões de heteroidentificação só têm que seguir esse mesmo critério para que pessoas potencialmente vítimas de discriminação racial, no contexto brasileiro, sejam aquelas a acessar o sistema de cotas

OP - O Ceará chegou a registrar um aumento de 259% nas denúncias de racismo em comparação ao ano passado. Foram 79 ocorrências este ano e 22 em 2021, de janeiro a junho. Como você analisa esse cenário e qual a importância de reconhecer o racismo e falar sobre o assunto no cotidiano?

Lívia - Para mim, houve um despertar lento e tardio do sistema de Justiça para as questões raciais. Isso é evidente. Mas há uma um momento de girada de chave que foi o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos. Infelizmente, a gente precisa do assassinato de um homem negro nos Estados Unidos para repensar a questão racial no Brasil, quando a cada 23 minutos morre um jovem negro assassinado aqui em território brasileiro.

Esse caso do George Floyd foi importante, embora nós tenhamos vários George Floyds, todos os dias a cada 23 minutos. Mas ele é importante porque gerou uma consternação internacional, uma reação internacional que criou esse despertar também para órgãos, eu diria monocromáticos, órgãos quase que inteiramente brancos com o sistema de Justiça no Brasil.

O sistema de Justiça, desde 2020 para cá — inclusive com o assassinato do João Alberto também ocorrido a véspera do Dia da Consciência Negra no Rio Grande do Sul —, foi um outro fator que vai se somar aos assassinatos do George Floyd, para que esse assunto viesse à tona e começasse a ser debatido seriamente no nosso país. Tanto é que com o assassinato do João Alberto foi criada uma comissão de juristas negros e negras na Câmara dos Deputados, inclusive da qual eu faço parte.

Uma comissão destinada a revisar e aperfeiçoar a legislação antirracista do nosso país debatendo o racismo estrutural, institucional e suas diversas formas de manifestação. Nós temos um debate crescente sobre a questão racial o que faz com que as pessoas procurem os órgãos responsáveis para denunciar, mas nós temos também um contexto político atual que, infelizmente, tem legitimado um discurso de ódio, de ódio religioso, de ódio racial, de ódio a pessoas LGBTQIA+ e de ódio a mulheres.

As pessoas têm se sentido muito à vontade para manifestar esse ódio que tem gerado, por óbvio, um aumento dos casos (de racismo) também. Então, se de um lado nós temos um aumento dos casos — inclusive pelos meios digitais —, pelas redes sociais as pessoas têm manifestado esse ódio acreditando na impunidade e acreditando que essa autoria não pode ser revelada — há mecanismos para isso, a gente tem o marco civil da internet, inclusive. De outro lado, nós temos o aumento na discussão e uma maior abertura das instituições do sistema de Justiça para o tema das relações étnico-raciais para o tema do racismo. Essa união de fatores pode gerar, de fato, esse aumento dos registros de racismo.

Lívia Sant’Anna Vaz esteve em Fortaleza participando do seminário "Políticas afirmativas e cotas raciais: o papel das comissões de heteroidentificação", promovido pelo Ministério Público do Ceará, em parceria com o Tribunal de Justiça e a Defensoria Pública do Ceará(Foto: Divulgação/ Defensoria Pública do Ceará)
Foto: Divulgação/ Defensoria Pública do Ceará Lívia Sant’Anna Vaz esteve em Fortaleza participando do seminário "Políticas afirmativas e cotas raciais: o papel das comissões de heteroidentificação", promovido pelo Ministério Público do Ceará, em parceria com o Tribunal de Justiça e a Defensoria Pública do Ceará

OP - De que forma se pode evitar e combater as subnotificações dos casos de racismo?

Lívia - No Ministério Público da Bahia, nós criamos um aplicativo chamado “Mapa do Racismo e da Intolerância Religiosa”, que garante que qualquer pessoa com o smartphone, ainda que anonimamente, possa denunciar a prática de racismo, injúria racial e intolerância religiosa. É uma maneira de desburocratizar o acesso à Justiça. Por quê? Muitas vezes, as instituições que deveriam acolher, registrar, investigar e punir essas práticas racistas, são aquelas que revitimizam as pessoas, são aquelas que praticam violência institucional ao se negarem a registrarem a desconhecer a prática do racismo.

A partir de relatos de vivências de vítimas de racismo que não conseguiam acessar as autoridades competentes para investigar, apurar, processar, julgar esses casos, é que na Promotoria de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa de Salvador, que é a primeira do Brasil especializada nesses casos e que tem mais de 20 anos, é que nós tivemos a ideia de criar um aplicativo.

Ele desburocratiza o acesso à Justiça, reduz custos na medida em que as pessoas que sofrem racismo não precisam se deslocar para a instituição a fim de registrar essa ocorrência, portanto, uma vez recebida a "denúncia", como é popularmente conhecido esse registro, o Ministério Público acolhe esse caso, instaura um procedimento formal e distribui para o promotor ou promotora de justiça com atribuição, a depender da cidade onde ocorra.

Esse aplicativo ainda é georreferenciado. Eu tenho como verificar quantos casos de racismo, de injúria racial e de intolerância religiosa aconteceram numa determinada cidade. Eu tenho como saber em que cidade se concentram os casos, por exemplo, de racismo religioso. E quando nós falamos em racismo religioso é porque entendemos que a intolerância religiosa é um guarda-chuva que pode atingir qualquer religião.

Se eu consigo, com esse aplicativo georreferenciado, compreender onde se concentram os casos de racismo religioso, eu tenho condições, no papel de Ministério Público, de promotora de justiça, de trazer ações preventivas, de trazer um diálogo com os movimentos sociais, com os órgãos públicos locais para promover soluções e políticas públicas de enfrentamento a esse fenômeno.

Temos que rever essa meritocracia se nós queremos, de fato, chamar esse estado de democrático de direito. Porque no estado democrático de direito as instituições públicas e privadas deveriam refletir minimamente a diversidade étnico-racial, de gênero e de orientação sexual e outras tantas do seu povo e não refletem

OP - Em seu livro “A Justiça é uma Mulher Negra”, a senhora fala do processo de construção da identidade negra e a importância da cultura. A senhora poderia falar um pouco sobre a importância dessa obra?

Lívia - Eu digo que é uma obra paradigmática no sentido de que ela vai confrontar a branquitude, confrontar um pensamento colonial e masculino no sistema de justiça, mas também na academia jurídica de modo a romper com o isolamento epistêmico do direito. Existe uma soberba no direito que desenvolve um pensamento de suficiência, (de que) "os direitos se bastam". Não há necessidade de dialogar com outros saberes e isso empobrece o direito e empobrece a justiça.

Nós desconhecemos por conta de um epistemicídio, e o epistemicídio jurídico, ele é muito grave no nosso país. Os conhecimentos e os saberes que existem e desabrocham de um terreiro de candomblé, de uma comunidade quilombola, de uma comunidade indígena. Há muitos saberes que nós apagamos para nos referenciarmos em poderes eurocêntricos, por exemplo.

Quando eu falo na figura de Themis, como a representação imagética da justiça brasileira, inclusive representada em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), por que não pensar em Oyá "Orixá guerreira, regente dos raios, da força dos ventos no candomblé e no umbanda. Também conhecida como Iansã" ? Ou em outra figura mitológica afro-brasileira? Nós temos uma mitologia própria, única no mundo inteiro, e que apagamos para reverenciar uma cultura embranquecida.

Uma cultura embranquecida que ainda está nas escolas, que ainda está nos livros didáticos e que reforçam o racismo, que reforçam uma subalternização do povo negro indígena nesse país. Então, desde a educação até o sistema de justiça e o poder político, nós precisamos de fato repensar esses saberes e beber desses saberes que nós temos no nosso país, mas que nós viramos as costas para eles.

 

 


 

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