“Chamam de florzinha, meu bem, amor. Nunca pelo meu nome”. “Bruxa, perversa. Quando querem me ferir dizem que sou feia”. “Provar o tempo todo que tem capacidade para estar ali. Trabalhar cinco vezes mais”. As falas da vereadora Adriana do Nossa Cara (Psol) e das deputadas estaduais Dra. Silvana (PL) e Augusta Brito (PCdoB), respectivamente, refletem que ainda há muito a ser feito quando falamos da inserção de mulheres na política.
Esquerda, direita ou centro, as semelhanças que as unem podem ser cruéis. As violências também são diversas e ocorrem em qualquer lugar. Não há segurança. Sendo a política um espaço decisório, mas ainda dominada por homens, a presença feminina no Parlamento traz novas configurações.
Ainda assim, são poucas as mulheres que se candidatam e/ou são eleitas no Brasil. No último pleito municipal, foram 9.196 mil vereadoras eleitas, frente a 48.265 mil homens (16% dos total). Entre de prefeitas, foram 651 vencedoras nas urnas contra 4.750 homens eleitos (12%).
O abismo reflete no Ceará: são apenas nove vereadoras para 43 assentos na Câmara Municipal de Fortaleza (20%) e cinco deputadas estaduais entre os 46 eleitos e eleitas para Assembleia Legislativa (11%). Dos 184 municípios cearenses, 32 são administradas por prefeitas (17%).
Deixar para trás a ideia de que “política não é coisa de mulher” é tarefa herdada por gerações. A socióloga Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos de Política, Eleições e Mídia da UFC (Lepem-UFC), conta que a inserção de mulheres nos espaços vem sempre carregada com violências simbólicas. Isso se reflete tanto na diferença salarial entre os gêneros quanto nos casos de assédios e constrangimentos no geral.
A deputada Augusta Brito compartilha com esse ponto. Ter que provar que merece estar ali, trabalhar cinco vezes mais para solidificar sua imagem, ouvir “brincadeiras” e comentários inconvenientes, são só alguns dos obstáculos que ela precisa enfrentar diariamente.
"É um ambiente realmente de homens. Já tive pessoas querendo ensinar o que é melhor de política públicas e projetos de lei relacionados a nós. Se você é novata e chega com um assessor em um espaço público, se referem a ele como deputado"Augusta Brito (PCdoB), deputada estadual
Augusta relembra o assédio sexual sofrido pela deputada estadual Isa Penna (Psol) na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em dezembro do ano passado. Na ocasião, o colega de Parlamento Fernando Cury (Cidadania) tentou encoxar e passar a mão na lateral do peito de Isa. “Fiquei triste e solidária com o que aconteceu. É como se fosse para realmente derrubar a mulher”, reflete Augusta.
A violência sexual se soma às essas opressões. Tomar a decisão de sair de casa, estudar, trabalhar, viver o básico para todo ser humano, é visto como transgressor. E quando se fala de corpo, o tema se torna ainda mais sensível:
“É objetificação. A ideia que se tem é que ela está à disposição. Está muito vinculada a ideia de predominância do masculino, de dominação. Se a mulher não está no espaço do lar significaria para os homens que ela está disponível para ser acessada”, analisa Paula Vieira.
Adriana Gerônimo, vereadora em Fortaleza pelo mandato coletivo Nossa Cara, não conta as vezes em que seu nome virou “florzinha”, “amor”, “meu bem”, ou das vezes em que esteve nos corredores da Câmara Municipal e ouviu comentários como: “Quando eu vejo uma mulher, fico querendo passar direto”.
Há pouco mais de dois meses no mandato, Adriana e suas colegas de mandato, Louise Santana e Lila M. Salu, ainda estão se ambientando nesse contexto mais institucional de política, apesar de anos de trajetória nos movimentos sociais. Não foi difícil, destaca Adriana, observar que há uma grande disparidade de raça, gênero e classe dentro do Parlamento cearense.
"Até a equipe dos vereadores são de homens brancos. É um choque de estética. A revolução também é estética. A gente está conseguindo quebrar a lógica do susto"Adriana Gerônimo (Psol), vereadora do mandato coletivo Nossa Cara
Para a deputada estadual Dra. Silvana, a compreensão desse problema chega de forma diferente, mas não menos dolorosa. Ela admite que não foi nenhum “demérito” entrar na política através de seu marido, o deputado federal Dr. Jaziel (PL).
Posicionada no polo mais conservador do espectro ideológico, ela vê exercício do mandato como missão e diz acreditar que mulheres devem ocupar esse espaço pelo talento e vocação. “Sou contra cotas”, revela.
A deputada relembra um caso de 2017. Durante a reunião de uma comissão, se sentiu ofendida quando quis falar, mas foi impedida. “Foi uma coisa muito forte na minha cabeça. Acho que a política, o homem, não está acostumada a uma liderança feminina”, comenta. Silvana lamenta também, relembrando emocionada, os comentários que recebe nas redes sociais.
"Quando as pessoas querem ofender uma mulher vão na aparência física: (chamam de) feia, horrorosa, bruxa, perversa"Dra. Silvana (PL), deputada estadual
No ano de 2020, as taxas de violência doméstica e de gênero cresceram no Brasil. O período de isolamento social em decorrência do coronavírus mostrou que, muitas vezes, a própria casa pode ser insegura. A violência contra a mulher na Internet seguiu o mesmo ritmo. Todas estão suscetíveis às agressões.
Um relatório de 2020 da ONU Mulheres apontou os riscos do ambiente virtual. "De acordo com diversos meios de comunicação, publicações em mídias sociais e especialistas em direitos das mulheres, diferentes formas de violência online estão em ascensão, incluindo perseguição, bullying, assédio sexual e trollagem sexual", diz o texto. Publicação criminosa de fotos íntimas e ataques de ódio à carreira também fazem parte.
Para Monalisa Lopes, cientista social e pesquisadora do Lepem-UFC, as redes sociais, principalmente, se tornaram um lugar onde as pessoas se sentem confortáveis, mesmo que para atacar, ofender. “Muitas mulheres relatam que recebem ameaças de morte, agressão, violência sexual”.
Monalisa destaca outro termo importante: para compreender o lugar da mulher na política é preciso atentar para a chamada Violência Política de Gênero. O conceito é recente e passou a ser mais difundido em 2020.
“As mulheres, quando começaram a adentrar no campo político, perceberam que as violências que vivem fora, sofrem dentro. Há uma reprodução. Essas violências chegam, obviamente, nesse sentido: de minar a capacidade das mulheres”, explica. O conceito se aplica tanto para mulheres que estão em mandato quanto para aquelas que estão postulando cargo. “Mulheres candidatas sofrem muito”, afirma Monalisa.
Os desafios internos para conseguir recursos partidários são um exemplo. Quando eleita, conjugar a vida privada e a vida pública, cuidados com filhos, casa, vida profissional e vida política sobrecarrega as profissionais.
É o que estuda Tássia Rabelo de Pinho, doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Autora de artigo intitulado “Debaixo do Tapete: A Violência Política de Gênero e o Silêncio do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados”, ela traz considerações seminais sobre o tema. Para Tássia, o debate sobre a violência contra as mulheres na política ainda é invisibilizado no Brasil.
De acordo com a pesquisadora, a ausência de mulheres em espaços de tomada de decisão contribui para a ideia de que a política não é um lugar destinado à participação feminina.
"Elemento que, combinado a expressões de violência política que menosprezam as mulheres que possuem atuação política, perfaz um quadro que desincentiva outras mulheres a construir uma carreira política"Tássia Rabelo de Pinho, doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
Essa violência, ainda conforme o estudo, pode ter um impacto que vai além das mulheres que a sofrem diretamente. Esse tipo de opressão cumpre um duplo papel: afastar a mulher que é alvo das agressões da política e diminuir o alcance de sua atuação, bem como passar uma mensagem para todas as outras mulheres de que a esfera pública não é o seu lugar (e, caso insistam em disputá-lo, sofrerão “punições”).
Na opinião das mulheres ouvidas por O POVO, um primeiro passo para mudar esse cenário é incentivar as denúncias de violências, dar visibilidade à questão, colocar como pauta para ser discutida. É preciso avançar, no entanto.
A socióloga Paula Vieira considera essencial entender que as vereadoras, deputadas e outras eleitas estão lá para construir políticas públicas, participar das tomadas de decisões, pensar pautas e novos projetos.
“Os homens esvaziam a discussão da representação feminina. É um boicote. Eles não escutam. Se não tem a formação desse interesse, consequentemente valores conservadores que já existem continuam”, afirma.
Apesar do avanço ao longo dos anos, muito facilitado pelas cotas partidárias, o acolhimento a essas outras identidades não ocorre da forma que deveria. A falta de representatividade prejudica o bem-estar público e pode ser um empecilho para pautas progressistas.
Monalisa concorda: “Se elas não estão (no Parlamento), elas não vão decidir sobre as questões e transformar esse espaço de decisão a favor de outras mulheres. Muito importante que a gente fique mais ciente da existência dessa forma de violência”, conclui.
E falar em inserção de mulheres no campo político fica ainda mais dificultoso com a população trans e travesti. O Ceará, por exemplo, ainda não elegeu nenhuma mulher transgênero para o Parlamento.
Lucivânia Sousa, articuladora na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para LGBT, ligada à Secretaria de Proteção Social, Justiça, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), aponta que essa lacuna representa um atraso para o Estado.
“A política ainda é um espaço dominado por pessoas brancas, cis, heteronormativas. Há pouco acesso de pessoas transgêneras. Nosso Estado carece de uma promoção de direitos humanos. Que ganho seria se a gente tivesse uma mulher trans/travesti no poder!”, reflete.
Para minar essas desigualdades, segundo Lucivânia, é preciso também apostar na promoção e na defesa dos direitos humanos de pessoas trans. “Não tem como pensar nesse processo sem pensar em educação de direitos humanos, sem trabalhar a visibilidade, a memória das pessoas trans, promoção de cidadania”, lista.
Para a coordenadora, assim como em outros campos da sociedade, na política há uma interseccionalidade que determina os lugares e possibilidades de acesso dos indivíduos. “A esse grupo (população transgênero) é dado o lugar da rua, da marginalização”, comenta. Para toda a sociedade, a lição, além do que foi citado acima, é praticar a empatia e enfrentar cotidianamente a transfobia.
Para a vereadora Adriana Gerônimo, do mandato coletivo Nossa Cara, é muito potente a presença de mulheres na política, porque “elas vivem de forma única”. “Vivem opressões, contradições, entendem como funciona esse lugar de ser chefe da família. Ser mulher nesse lugar é muito importante”, considera.
O trio pretende aplicar essa visão ao mandato: “Queremos ser vereadoras da cidade. Quero que as pessoas entendam que esse fazer político é para mudar a cidade”, complementa Adriana.
Augusta Brito, mais experiente na política, acrescenta a importância das cotas e defende que os cargos dessas mulheres sejam verdadeiramente ativos “para que todas possam se sentir representadas. O Parlamento é bom por isso, porque tem vários pensamentos, de várias pessoas”, comenta.
E mesmo com as diferenças, poder contar com apoio e proteção de outra mulher é também significativo no campo político. É o que comenta Silvana: “Eu vejo que a gente tem uma união, uma sintonia voltada para nos proteger”. Adriana complementa: “Temos posições que não vamos abrir mão. Temos muitas divergências, mas a gente vai continuar se respeitando”.