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Gig Economy: o desafio de regulamentar a economia dos "bicos" no Brasil
Reportagem

Gig Economy: o desafio de regulamentar a economia dos "bicos" no Brasil

A recente paralisação dos entregadores de aplicativos nas principais cidades do Brasil, no dia 1º deste mês, evidenciou as fragilidades do sistema, como aumento da precarização das relações de trabalho
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Trabalhadores motorizados das empresas de aplicativo ainda precisam arcar com todos os custos de manutenção de suas motos. (Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima Trabalhadores motorizados das empresas de aplicativo ainda precisam arcar com todos os custos de manutenção de suas motos.

De um lado, a facilidade e a segurança de ter um produto em pouco tempo, em casa, a apenas alguns cliques no celular. De outro, muitas vezes, a dura realidade de jornadas exaustivas, remuneração incerta e permeada de riscos de quem torna possível a operação acontecer na ponta. As recentes manifestações dos entregadores de aplicativo em diversas cidades brasileiras, incluindo Fortaleza, no dia 1º deste mês, vêm chamando atenção para as fragilidades desse sistema, conhecido como gig economy (economia dos "bicos"), e a necessidade de regulamentação do setor.

Este modelo que engloba formas alternativas de trabalho, sem vínculo com um único empregador, não é novo, mas vem ganhando impulso com a tecnologia e a flexibilização das regras trabalhistas. Hoje são muitas as plataformas que conectam, em diversas áreas, trabalhadores autônomos às pessoas ou empresas que necessitam do serviço.

Um dos principais questionamentos a este sistema, porém, é a precarização das relações de trabalho e a falta de resguardo de direitos a quem presta o serviço. Sobretudo, em momentos de crise, como alta do desemprego no País e a pandemia.

Perfil do trabalho dos entregadores durante a pandemia

O caso dos entregadores por aplicativo é um exemplo. Um estudo realizado em maio por cinco universidades públicas (Unifesp, UFPE, UFPR, UFJF e Unicamp), com o apoio de procuradores do Ministério Público do Trabalho, mostrou, por exemplo, que mais da metade dos entregadores entrevistados estão trabalhando os sete dias da semana (52%), com jornadas de nove ou mais horas por dia (56,4%). E, embora o volume de pedidos de delivery por aplicativo tenha aumentado na pandemia, a remuneração paga aos trabalhadores caiu, em média, 60%, como relatado por 49,2% dos entrevistados.

Uma das explicações para isso é que o aumento do desemprego tem levado a uma entrada maior de profissionais nas plataformas. O que provoca uma concorrência mais acirrada por entregas e, consequentemente, queda na remuneração.

O presidente do Sindicato dos Motoboys no Ceará (Sindimotos), Glauberto Almeida, o Betão, diz que outras queixas comuns da categoria dizem respeito ao tempo que o entregador fica à disposição da plataforma, sem remuneração, além de falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) e bloqueios indevidos.

“Cada vez mais, temos que ficar um tempo maior à disposição, para ganhar menos. Hoje em dia, os motoqueiros que trabalham só com aplicativo passam de 10 a 16 horas de jornada diárias para fazer de R$ 2 mil a R$ 2,5 mil, e tendo que assumir todo o custo agregado de combustível, manutenção e agora com o risco de contaminação pelo vírus”.

Ele afirma que, apesar da intensa repercussão, nada mudou desde a paralisação. “As empresas dizem que estão dando suporte na pandemia, mas este apoio é praticamente zero, porque deram álcool em gel e máscara uma vez, mas não o suficiente para suprir todo o período de pandemia. Até isso quem está tendo que arcar somos nós”.

As empresas de tecnologia, por sua vez, negam desamparo durante a pandemia e contestam parte das reclamações. De modo geral, sustentam que o valor mínimo pago por hora trabalhada nas plataformas é superior ao equivalente do salário mínimo, além da adoção de medidas de prevenção ao novo coronavírus, como orientação e fornecimento de EPIs, como máscaras e álcool em gel.

Ações trabalhistas não têm sido suficientes

O Ministério Público do Trabalho entende que, de modo geral, as ações não têm sido suficientes e vem, durante a pandemia, emitindo recomendações às empresas e ingressando com ações civis públicas na Justiça para assegurar medidas de proteção e auxílio financeiro para quem está no grupo de risco. E, há mais tempo, vem buscando por meio de ações coletivas na Justiça o reconhecimento da existência de vínculo empregatício entre as partes.

“As plataformas, de modo geral, têm bastante controle sobre o trabalho que os entregadores desenvolvem, estabelecem regras para entrar na plataformas, como deve ser feito o serviço e aplicam punições como suspensão e desligamento. Embora exista o debate que os trabalhadores podem fazer seu próprio horário, ainda assim, não afasta o vínculo de emprego, principalmente, se o trabalho é desenvolvido com frequência”, opina Renan Kalil, procurador do trabalho.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 30.06.2020: A situação dos entregadores de delivery.  Aldeota.   (Fotos: Fabio Lima/O POVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 30.06.2020: A situação dos entregadores de delivery. Aldeota. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

O impacto da pandemia para os entregadores de aplicativo

A Pesquisa "Condições de Trabalho de Entregadores via Plataforma Digital Durante a Covid-19", realizada por universidades federais de São Paulo (Unifesp), Paraná (UFPR), Pernambuco (UFPE), Juiz de Fora (UFJF) e Unicamp, com apoio de procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), revelou que:

52% dos entregadores por aplicativo relataram que estão trabalhando nos sete dias da semana.

56,4% informaram ter uma jornada de nove ou mais horas por dia.

Desde o início da pandemia, houve aumento médio de 30% nos pedidos de entrega em toda a América Latina, informado pelas empresas.

A remuneração paga aos trabalhadores diminuiu em média 60%, com a queda nos valores dos bônus (relatada por 49,2% dos entrevistados) e dos períodos com tarifas dinâmicas.

84,5% revelaram medo de ser contaminado durante o trabalho

Seis em cada 10 entrevistados afirmaram não ter recebido nenhum apoio da empresa para diminuir os riscos de contaminação durante a realização da sua atividade profissional.

Entre os 37,3% restantes, a maioria relatou ter recebido apenas orientações de como reduzir o contato com os consumidores de serviços.

Apenas 19,4% disseram ter recebido álcool em gel das empresas.

A pesquisa ouviu 252 entregadores em 26 cidades brasileiras entre os dias 17 e 27 de abril. A margem de erro da pesquisa é de 6 pontos percentuais para mais ou para menos*

Contexto do mercado de trabalho

Dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (Pnad-Covid19), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que no Brasil são mais de 12,4 milhões de pessoas desocupadas. A taxa de desocupação foi de 13,1%, a maior desde o início da pesquisa, no início de maio.

No Ceará, o rendimento real médio é de R$ 1.322. A taxa de trabalhadores na informalidade ficou em 35%, na segunda semana de junho, atingindo 29,2 milhões de pessoas. Na terceira semana de maio eram 28,5 milhões.

Levantamento feito pelo SINE/IDT, em Fortaleza, mostrou que dentre as pessoas que estavam procurando emprego no período entre os dias 8 e 22 de junho, 7,8% trabalhavam com serviço de entrega na semana anterior à pesquisa.

E 61% destes já exerciam a atividade antes do isolamento social. Ou seja, apesar da atividade, eles já estavam procurando uma recolocação profissional com carteira assinada na agência de emprego.

 

*A matéria foi atualizada às 10h23, do dia 20 de julho, para acrescentar a margem de erro da pesquisa 

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