Ouvidos atentos ao chão em busca de qualquer ruído, sinais de pulso debaixo da pilha de concreto, enquanto os tic-tacs dos relógios teimavam em bater contra. Boletins a cada par de horas para os retratos de angústia que eram cada família à espera. Informações para imprensa. Coordenar 135 bombeiros na chamada zona quente da tragédia, e mais uma operação gigantesca no entorno. Foram cincos dias e os olhos já se acostumavam ao caos dos escombros, e a cada achado de vida a felicidade da corporação causava impacto. Tudo sob a égide de um homem cuja vida correu em um compasso diferente naqueles dias. No dia 15 daquele outubro, o coronel Eduardo Holanda, comandante do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE), cumpria agenda em Brasília quando soube que o Edifício Andréa havia colapsado. Horas depois ele chegava ao endereço na Tibúrcio Cavalcante de onde mal saiu, nos dias que sucederam: das 103 horas de resgate, o coronel contabilizou 94 horas ali. A operação, que retirou sete pessoas com vida e outros nove corpos, é definida, um ano depois, como a "ocorrência mais complexa do 95 anos" do CBMCE e o "ápice do sacerdócio do que é ser bombeiro".
O POVO - Como foram aqueles primeiros momentos, quando o senhor tomou conhecimento da tragédia?
Coronel Holanda - Eu estava em Brasília, no Congresso Nacional em busca de recursos pro Corpo de Bombeiros. Recebi a notícia que havia caído um edifício em Fortaleza. Fui direto para o aeroporto. O próprio governador (Camilo Santana), por coincidência, também estava pousando em Brasília e voltou de imediato. Voltei junto com ele, tomamos as primeiras medidas. Meu subcomandante assumiu a ocorrência, já falou em linhas gerais o que estava acontecendo. Assim que cheguei ao aeroporto de Fortaleza, fomos direto, inclusive o governador, ao local do acidente. Vimos a questão do colapso da edificação, que foi colapso completo, um colapso extremamente agressivo. Depois, a gente teve acessos aos vídeos, e o prédio parecia que havia sido implodido, pela forma como ele caiu quase que sobre o próprio eixo. A gente viu a magnitude e a complexidade que ia ser aquela ocorrência.
OP - Foi o trabalho de resgate mais difícil que o senhor participou?
Holanda - Sem dúvida. Eu tenho 32 anos de Bombeiros. Mas eu reputo que aquela ocorrência do Andréa foi a mais complexa dos 95 anos que a instituição tem. A gente já passou por diversos incêndios de grandes proporções, que duravam dias, inclusive. Teve um acidente, por exemplo, do avião da Vasp, que eu não participei, não estava nos bombeiros naquela época, mas foi uma ocorrência extremamente complexa. Teve um incêndio no terminal ali do Mucuripe também, que durou vários dias. Mas ali, do Andréa, tinha algumas complexidades maiores. Nesses grandes incêndios, não havia aquela questão do conceito de vida e de morte. A gente não esperava ter sobreviventes de um acidente daquela magnitude. No Andréa, cada decisão que a gente tomasse, ali podia ser o resgate de uma pessoa com vida ou não. Sem dúvida foi a mais complexa ocorrência não só da minha história de bombeiro, mas da história do Corpo de Bombeiros.
OP - Como foi o resgate do Davi Sampaio, que ficou 5 horas debaixo dos escombros e fez foto e tudo?
Holanda - O resgate do Davi foi até um pouco incomum. Ele conseguiu chegar até próximo a caixa da escada do prédio, o que a gente reputa que foi talvez por isso que ele conseguiu também sobreviver, já que a caixa é uma grande caixa de concreto armado, um dos mais fortes estruturalmente na edificação. Ele conseguiu ficar consciente. Ele ligou inclusive para o serviço de emergência, e conseguiu o tempo todo conversar, o que facilitou muito também a localização dele nos escombros. Mas também continuou sendo bem complexo. Não era só a gente localizar. Tem que tentar fazer a extração da vítima com muito cuidado, para não haver um novo colapso nas estruturas já caóticas.
OP - Como era a emoção a cada resgate?
Holanda - Sempre que a gente pôde fazer um resgate, principalmente, que a gente pôde salvar uma vida, tirar uma pessoa com vida daquele cenário caótico, eu acho que é o ápice da atividade da profissão, do sacerdócio do que é ser bombeiro. A gente se emociona, né. Naquele momento traduz o melhor sentimento do que é ser bombeiro: chegar ao cenário de caos, onde vida e morte estão ali lado a lado, e a gente poder tirar uma pessoa com vida, entregar para a família essa pessoa com vida.
OP - Teve algum momento que marcou mais o senhor?
Holanda - Uma parte que não saía na mídia, mas era muito marcante, era todas as vezes que a gente ia conversar com as famílias. Eu pessoalmente ia lá e conversava com cada um deles e colocava o que estava sendo feito. Tudo que a gente fazia no cenário na zona quente do acidente, as famílias eram as primeiras a saber. Marcou também como todo mundo se envolveu solidariamente. Esse talvez tenha sido a maior lição para nós, o quão o nosso povo é solidário. Desde aquele que foi até o local e levou um suprimento, aos diversos profissionais voluntários, médicos, enfermeiras, psicólogos, fisioterapeutas. Tem também algumas coisas que eram bem, assim, dramáticas. A gente estava lá duas, três horas da manhã, trabalhando, virando noite e chegava, do nada, essas entregas de comida. A gente dizia: "Ninguém pediu nada". Foi alguém do povo que pediu, comprou e mandou. Até aquelas pessoas que não foram lá, porque não podiam, mais que fazia suas preces, suas orações. Tem centenas de ações que marcaram muito a gente. Como a senhora muito simples, que chegou para mim, fora da área de isolamento. Ela trouxe uma quentinha para ser distribuída lá dentro aos voluntários. Tinha muito voluntário, a gente podia suprir todas as questões dos nossos bombeiros, porque as Forças Armadas do Exército montaram um restaurante, e serviam a todos os bombeiros lá - café, almoço, jantar, 24 horas por dia. Mas essa senhora chegou com essa única quentinha e, aí, talvez não era tudo que a gente precisava, mas era tudo que ela podia oferecer e ela foi lá e ofereceu. Marcou muito o coração solidário de cada um dos cearenses que ajudou de alguma forma.