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O vazio que fica após o desmoronamento do Andréa
Reportagem

O vazio que fica após o desmoronamento do Andréa

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Local vazio onde desabou o Edifício Andrea em 15 outubro 2019, na rua Tibúrcio Cavalcante, 2405 (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Local vazio onde desabou o Edifício Andrea em 15 outubro 2019, na rua Tibúrcio Cavalcante, 2405

São muitos vazios. O vazio que fica de não ter o vizinho caminhando com o cachorro quando chegava a tardinha, o vazio de não ter a amiga da vida inteira para ir à missa aos domingos, o vazio que ficou no convite para tomar um café naquela manhã do dia 15 de outubro e que nunca se concretizou. Mirar o horizonte e encontrar a vastidão do vazio onde antes era um prédio. É assim a vida de muitos dos moradores do entorno do que já foi o número 2405 da rua Tibúrcio Cavalcante, no bairro Dionísio Torres.

O que há um ano era o Edifício Andréa deu lugar ao vazio. É como sente o cabeleireiro Marcello Rodrigues, 43. Com casa e comércio vizinhos da tragédia, Marcello relembra a rapidez com que tudo se esvaiu, um instante que acabou com a certeza de a vista alcançar o Andréa.

"Uma das coisas que de cara eu me lembro quando toco no assunto é a velocidade da destruição. Pelo o que eu escutei aqui no meu trabalho, foi uma questão de segundos", narra, lembrando que aquele barulho fez morada nele e ainda o acompanha.

Como também segue indelével na vida do piscineiro Elinaldo Torres, o Naldo. Amigo do cuidador Eriverton Laurentino Araújo, 44, uma das vítimas, Naldo iria na manhã daquela terça-feira tomar um cafezinho no apartamento em que Eriverton trabalhava. O fluxo da labuta não permitiu, teria que ficar para outro dia, que não veio. "Quando aconteceu, eu achava que era esse muro caindo em cima da minha cabeça", reconta, e recorda que na noite posterior não conseguiu pregar o olho: "Eu ficava ouvindo o barulho direto".

A recordação do som e da poeira que tomou o ateliê de uma vez é parte da memória da costureira Lindalva Moreira, que até hoje não consegue falar sobre o dia sem se emocionar. "Eu tive uma crise de choro muito grande, me abracei com uma vizinha e não conseguia parar de chorar", diz.

A memória sonora de Marcello ainda recorda dos gritos. "Olhar para o espaço do Andrea é lembrar de gritos de pessoas, tanto de quem tentou ajudar, quanto das pessoas que estavam com vida ainda, deu pra escutar logo de início", descreve. No decorrer dos dias de resgate, com o salão fechado, Marcello rememora o silêncio da vizinhança e as vozes dos bombeiros.

"A forma como eles trabalhavam, a sensibilidade como eles tratavam o assunto, a felicidade que eles tinham quando se comunicavam com alguém, e a tristeza que eles tinham quando perdiam a comunicação. Por morar próximo ao local, eu acompanhei muito esses picos de emoção. Agora, era tudo muito associado a um vazio, era um silêncio que era assustador até", revive.

Passado um ano, Naldo sente que, ao falar do assunto, revive tudo outra vez. Já dona Lindalva foi aprendendo a lidar com o que não consegue esquecer. "A dor na hora sufoca, depois vai amenizando e você vai ficando só com as lembranças". Marcello mudou-se de casa para não remoer os acontecimentos que vivenciou naqueles dias, não anda na frente do muro azul, erguido e pintado em homenagem às nove vítimas, e passou a olhar com mais atenção para aspectos da própria vida. "Hoje, eu começo a observar certas coisas que eu não observava há um ano atrás". (Colaborou Nathally Kimberly, especial para O POVO)

A tragédia por diferentes olhares:

OS SOBREVIVENTES

Lições de um dia ruim

Uma chance para recomeçar

Ponto de vista: estresse pós-traumático

EQUIPES DE RESGATE

Entrevista: "O ápice do sacerdócio do que é ser bombeiro"

OS DENUNCIADOS

Nove homicídios dolosos ou contravenções penais?

"Indiciamento dos engenheiros e do pedreiro foi um equívoco"

Crea-CE não foi responsabilizado

TJCE ainda não tem para julgar competência

 

Estresse Pós-Traumático: o que mudou para quem estava na vizinhança do Andréa na hora da tragédia

A 80 e poucos passos do ex-edifício Andréa, convivo com pessoas repetidas há 20 e muitos anos. Sou do sétimo andar, minha avó do primeiro, tive tios morando no quinto, no oitavo e vi centenas de pessoas se revezarem em 15 apartamentos a um quarteirão da caixa d’água da Estância.

(Mais da) Metade dessa fauna me desperta aquela ânsia odienta de quem cansou das mesmas caras, dos mesmos papos, do conservadorismo tacanho dos privilegiados do Dionísio Torres. Dona B., do segundo andar, sempre foi exceção. Há uns 30 anos ela deve ter 70 e poucos — ou assim especulávamos eu e meus irmãos, que outrora dividiam quarto comigo. Hoje, sei que ela é pouco mais nova que minha avó, Dona Nizinha, de 89 anos. E nesta idade misteriosa, até bem pouco tempo atrás Dona B. dirigia (bem mal), era independente e mostrava uma cabeça privilegiada.

Faz pouco tempo, eu não sabia dizer quando, mas parte dessa mente se perdeu numa densa fumaça. Há poucas semanas, minha mãe, que conhece o filho de Dona B., desfiou a linha temporal de tal senilidade repentina. A queda do edifício Andréa levou consigo um pouco da minha vivaz vizinha anciã.

Ela ainda me reconhecia em viagens pelo elevador, mesmo de máscara, mas hesitava, como que com medo de pouco conhecido. A independência se foi de vez com uma queda e uma fratura no fêmur, que tirou o figurativo da fratura na alma. Minha avó, que também enfrenta certo nível de senilidade, parece hoje bem mais jovem que ela.

Dona Nizinha conhecia Dona Penha, a mais próxima das vítimas da queda do prédio. Eu conheci filhos dela, me acostumei a ver netos, mas praticamente nunca troquei palavras. Era um respeito mudo. Como a memória de minha avó anda rasa e os 89 anos já viram muita dor, o momento passou e a vida nessas famílias disfuncionais da classe média ocidental acabou mudando o foco dela.

Dona B., não. Talvez tenha perdido alguém — Dona Penha, especulo. E quem tantas décadas de certeza viveu, se viu encarada de finitude. E nessa luz que encara de volta, a mente começou a fechar os olhos.

A queda de um prédio é um desastre humanitário. É a quebra da ordem natural das coisas — concreto sobrevive mais que carne.

Não dá para passar incólume.

Tendo a cultivar com carinho todos os meus complexos. É como se os traumas me tornassem alguém mais original, ainda que nem sempre totalmente funcional. Como se minha dor fosse tão — ou quase tanto — pesada quanto a de quem de fato viveu perdas.

A minha vizinhança, ou pelo menos parte dela, viveu um trauma claro e objetivo. Às 10 e pouco acordei com uma explosão. E lembro de todos os detalhes daquele dia. De descer as escadas com chinelas, de ver um amontoado de escombros e ter certeza de que ninguém sobrevivera, de levar água para profissionais, de subir à laje do meu prédio morrendo de medo de uma nova tragédia.

Não tenho idade para o tempo anuviar essas memórias — a principal sendo a do barulho do prédio caindo e das vidas se esvaindo.

Nunca tive medo de trovão. Cresci apegado ao lógico, sabendo se tratar de um eco de um relâmpago já passado. Nunca tive medo de balões estourando, batidas altas na rua, ruídos desconhecidos da noite.

Há seis meses, descobri que estes “nunca” se esgotaram até que as nuvens invadam minha mente e aquele dia, um ano atrás, não seja mais tão vívido.

Para mim, 2020 — morte, perdas, pandemia, o inexplicável — começou em 15 de outubro de 2019.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-10-2019: Clotário Nogueira (camisa vermelha) e Ana Maria Nogueira (de cinza ao seu lado), sobreviventes do desabamento do edifício Andréa, juntos com familiares. Sobreviventes do desabamento do edifício Andréa. (Foto: Júlio Caesar/O POVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-10-2019: Clotário Nogueira (camisa vermelha) e Ana Maria Nogueira (de cinza ao seu lado), sobreviventes do desabamento do edifício Andréa, juntos com familiares. Sobreviventes do desabamento do edifício Andréa. (Foto: Júlio Caesar/O POVO)

Uma chance para recomeçar

Dez minutos foi o tempo necessário para o seu Clotário Sousa Nogueira e a dona Ana Maria Ramos Nogueira estarem fora do Edifício Andréa quando ele desabou. O casal vivia na cobertura duplex, comprada há quase 40 anos. Com eles, moravam a filha do casal, o marido dela e a neta. Ninguém estava em casa no momento da tragédia.

Dona Maria não queria sair de casa, mas precisou acompanhar o esposo ao banco devido à biometria. Chegando lá, um funcionário do sítio da família ligou para o celular dele. O assunto era "para saber se algo havia acontecido", mas o morador do Andréa ainda não sabia da tragédia. "Está aqui na internet que seu prédio caiu. Aqui está todo mundo chorando", narra, Clotário, as palavras do trabalhador. Objetivo, o aposentado respondeu: "Pois diga aí que ninguém precisa chorar porque não aconteceu nada com a gente. Estamos bem".

Dois meses antes do acidente, a sequência de rachaduras nas colunas, motivadas por reforma no prédio anos antes, havia sido discutida em reunião de condomínio. Depois da reunião, a taxa R$ 350 - o valor do condomínio era R$ 1 mil - foi incluída para os moradores.

Passado o choque inicial, o casal, junto há mais de cinco décadas, logo foi para outro apartamento da família, no bairro São João do Tauape. "Nos mudamos temporariamente, e hoje até já estamos em outro apartamento", conta. "Nós perdemos tudo. Tive que comprar tudo novo, mobiliar. Fomos para um apartamento e nossa filha para outro. Dessa vez, nos separamos".

Esta foi a segunda vez que o seu Clotário Nogueira viveu para contar a história. Ele já havia sofrido um acidente de carro. "Sempre fui uma pessoa muito equilibrada. Sofri pouco, graças a Deus, apesar do prejuízo grande. Deu pra suportar", continua. "Senti muito porque o meu apartamento tinha seguro, mas só cobria incêndio. Não tinha cobertura para desabamento. Não recebi nada e nosso advogado está vendo, mas é difícil".

 

O rapaz foi resgatado nesta tarde
O rapaz foi resgatado nesta tarde

Lições de um dia ruim

Para o estudante universitário Davi Sampaio, um dos sete sobreviventes da tragédia do Edifício Andréa, o dia 15 de outubro marcou e deixou aprendizados

"Olha, doutor, esse pilar aqui jogou o concreto pro chão". Foi essa frase dita no térreo que fez acender o alerta para o estudante universitário Davi Sampaio, 22 anos. Morador do primeiro andar do Edifício Andréa, Davi se preparava para tomar café da manhã e seguir a rotina de um dia comum, quando escutou a frase de um pedreiro, e avistou pela varanda um dos pilares cedendo ao peso do prédio.

O próximo alarde foi a viga que quebrou a parede do quarto da mãe de Davi. Ele, então, decidiu deixar o apartamento. A ideia era sair, ir para o térreo, mas foi parado por um motivo.

"Só dei um passo pra fora e o barulho se intensificou. Imediatamente, eu cogitei a possibilidade de correr, descer pro térreo, só que eu tinha um melhor amigo, que morava comigo, que era o meu gato, ele não me deixou descer. No que tive o impulso se sair correndo, olhei para trás e gritei por ele. Foi então que o chão que estava embaixo de mim cedeu e tudo desmoronou", relembra.

Ao permanecer, Davi ficou, ainda que soterrado, protegido em um vão, com passagem de ar. O recanto por entre os escombros foi o lugar de onde ele verificou o movimento do próprio corpo, ligou aos pais para avisar, para a Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops) pedindo socorro, mandou selfie e fez vídeos. Por mais de cinco horas esperou resgate e, ao contrário do que a situação poderia causar de angústia, Davi conta que, após momento inicial de desespero, se tranquilizou.

"Isso me deixou um tempo considerável pra eu refletir sobre tudo, na minha vida, de como eu estava me manifestando no mundo. Não foram cinco horas de aflição", relembra o universitário, um dos sete sobreviventes da tragédia que completa um ano e que ceifou nove vidas.

Com a filosofia de não dar um peso maior que o devido às coisas negativas que acontecem, Davi lembra do dia 15 como um dia ruim, que ficou para trás. "Quinze de outubro ficou marcado pra mim como um dia ruim, um dia que foi um modificador de vidas, para todos os moradores e todos que perderam entes nessa tragédia. Mas eu acredito que os dias ruins servem para valorizar os momentos bons", ensina.

Davi perdeu "pequenos tesouros", como define. Fotografias de família, lembranças da infância. Perdeu também os itinerários do dia a dia, a rotina. Com o prédio se foram roupas, livros, um lar. A queda deixou a dor de cabeça de resolver burocracias: a conta do financiamento do apartamento que continua chegando mesmo que não haja mais apartamento e o seguro do imóvel que refutou as tentativas da família de conseguir algum dinheiro para refazer a vida.

Contudo, mesmo diante do desamparo, Davi tenta focar no presente. "O que mais mudou na minha vida foi que após o acidente isso serviu para eu demonstrar mais afeto aos meus familiares, para que eu não guardasse nada pra mim, que eu não deixasse pra depois, porque o depois pode nem existir", acredita. (Domitila Andrade e Germana Pinheiro)

 

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