Nova York, 1º de outubro de 1977. No país que nunca conseguiu abraçar totalmente o futebol, um estádio apinhado de gente dava o adeus ao maior daquele esporte. "Rei morto, rei posto com Pelé não funciona", explicava O POVO do dia seguinte. “Encerra-se a carreira do jogador mundialmente famoso e insubstituível e que, ao deixar as quatro linhas, não tem a quem transfira a coroa, porque não há ninguém igual a ele”.
Foram-se mais de 40 anos e o trono segue vazio. Hoje, aos 80 anos, Pelé ergue enorme sombra sobre aqueles que desejam ser o melhor do mundo.
Ninguém antes dele, ninguém depois dele, ganhou uma Copa do Mundo aos 17 anos — com três gols em semifinal e mais dois na decisão contra a Suécia frente ao rei escandinavo. Ninguém antes dele, ninguém depois dele, levantou a maior taça do futebol mundial três vezes (1958, 1962 e 1970). Nenhum outro jogador marcou 1.282 vezes. Brasileiro algum é reconhecido no mundo inteiro como Edson Arantes do Nascimento é até hoje, décadas após o fim de Pelé.
"É o maior de todos os tempos", responde na lata Jairzinho, o Furacão de 70, único jogador da história a marcar a cada jogo de uma seleção campeã do mundo. O Brasil de 1970 é considerado o melhor time da história, com os "camisas 10" Gerson, Rivelino, Tostão, Jairzinho e Pelé. Mas não há quem ouse questionar quem era o protagonista. "Ele tinha variedade de movimentos que ficava muito difícil de copiar. Cada jogador tem uma característica principal, mas o Pelé tinha várias. Em alguns minutos, ele mostrava um repertório de movimentos que não tinha como copiar. Eram fantásticos e extraordinários", conta, por telefone.
Pepe, ex-companheiro de ataque no Santos e na seleção — e que chegou a ser técnico do Rei — costuma dizer que na verdade é ele o maior artilheiro do Alvinegro Praiano. Afinal, o amigo dele pode ter feito 600 gols a mais, porém é um extraterrestre. "Técnica super apurada, individualidade, uso absolutamente normal das duas pernas, cabeceio, impulsão e etc. Foi o único completo que vi. Sempre digo que 'Seu Dondinho e Dona Celeste' rasgaram a fórmula e nunca mais veremos nada igual", resume, em carta escrita a punho e enviada ao O POVO.
Mesmo hoje, Pelé é o maior artilheiro da seleção brasileira. Segundo a conta da CBF, são 95 gols. A Fifa considera "apenas" 77 — parte dos tentos foram marcados diante de combinados, o que era comum à época. Atrás dele, Neymar (64), que já tem 11 jogos a mais, Ronaldo (62), Romário (55) e Zico (51).
O Galinho de Quintino, outro camisa 10 histórico do futebol mundial, cresceu vendo o menino de 17 anos desbancar Dida — ídolo do flamenguista Zico — como titular da Canarinho em 1958. Em 1962, no Maracanã, ele ainda era torcedor quando viu o Rei em campo pela primeira vez. Duas décadas depois, o peso do número eternizado por Pelé estava sobre os ombros dele.
"Pra mim foi complicado. Veio o Rivelino com a 10 depois do Pelé. Ficou todo mundo achando que ia ver outro Pelé", lembra o maior artilheiro da história do Flamengo e do Maracanã, ao O POVO. E justifica: "Quando Deus criou um jogador de futebol, ele falou assim: 'Vou colocar todas as qualidades em cima deste cidadão'. Ele é um fenômeno inigualável. Vão passar anos aqui na Terra, e eu não vou ver mais. Acho difícil alguém no mundo que possa chegar ao mesmo nível dele. Já apareceram grandes jogadores, mas igual a ele, não. Pelé tinha tudo que um jogador de futebol precisava", derrete-se.
A deferência é tanta que, em 6 de abril de 1979, o então craque do time cedeu a camisa 10 do Flamengo para Pelé, em amistoso beneficente. Zico foi camisa 9.
Apaixonado por música, Pelé virou amigo de Raimundo Fagner. O cearense acostumado a flashes de câmera admite que nunca viu tanto brilho como em passeios com o Rei. Por intermédio dele, o cantor chegou a dividir vestiário com outros craques imortais, como Johan Cruyff, Eusébio e Alfredo Di Stéfano. Mas a amizade é do sujeito que reina sozinho em um patamar só dele.
"Tenho muita saudade dele. Eu tinha um show marcado em Santos, mas foi cancelado por conta da pandemia. Agora é rezar para que esta loucura tenha fim logo para que eu possa ir dar um abraço nele. Viva os oitenta anos de Pelé."
Entre as marcas do Rei está o fato de ele se referir a si na terceira pessoa. Como se Pelé e Edson nem mesmo fossem a mesma pessoa. Na década de 1980, em entrevista, ele deu uma pista dos motivos. "Perfeito é o Pelé, que não erra, é imortal. Mas o Edson Arantes do Nascimento é uma pessoa normal, deve ter um monte de defeitos que muita gente não gosta e recrimina".
O homem por trás do mito tem, mais que muitos, menos que outros tantos, os próprios esqueletos no armário. A relação espinhosa com o ativismo racial é criticado, mas o capítulo sempre lembrado foi a rejeição de Sandra Regina, filha bastarda do Rei, que faleceu em 1996 com o pedido não atendido de encontrá-lo. É uma mácula humana no currículo de alguém que em campo parecia bem mais divino.
Em 7 de julho de 1957, aos 16 anos, Pelé distribuía cartão de visitas para o mundo ao marcar gol sobre a Argentina no Maracanã. O POVO noticiou o jogo, no dia seguinte, na primeira menção ao maior atleta do século XX. Ao fim da nota, dizia-se. "Não se registrou anormalidade". Não podia estar mais errado.