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Mães de vítimas da Chacina do Curió seguem em busca de justiça
Reportagem

Mães de vítimas da Chacina do Curió seguem em busca de justiça

Ao todo, 11 pessoas, dentre elas 8 jovens, foram mortas e outras sete, feridas
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 Edna Carla Souza Cavalcante,46, militante e mãe do Álef de Souza Cavalcante, uma das vítimas morta na chacina da Grande Messejana (Foto:  Tatiana Fortes)
Foto: Tatiana Fortes Edna Carla Souza Cavalcante,46, militante e mãe do Álef de Souza Cavalcante, uma das vítimas morta na chacina da Grande Messejana

Passados cinco anos, familiares — sobretudo, mães — e sobreviventes da Chacina do Curió não só têm que conviver com o luto e com o trauma como também com o anseio por justiça. Foi em um dia 11 de novembro como este, mas em 2015, que se teve início uma matança que correria pela madrugada do dia seguinte. Ao todo, 11 pessoas, dentre elas 8 jovens, foram mortas e outras sete, feridas. Edna Carla Souza, mãe de Alef Souza Cavalcante, de 17 anos, lembra ter "perdido o chão" à época. Não bastasse ter um filho inocente morto, ainda tinha que lidar com o fato de que os assassinos tinham a missão constitucional de defendê-los, ela relembra. Aos poucos, conta, as mães das vítimas da chacina foram se unindo, até criarem o Movimento de Mães e Familiares do Curió. "Eu quero mostrar para esse Estado que os nossos filhos também têm o direito de viver, igualzinho ao filho do governador", afirma Edna. "Não tive filho para a Polícia matar." A revolta, desabafa, ainda é muito grande. "Para mim, o pior bandido é o policial que mata a própria população que paga o seu salário."

O misto de tristeza com cobrança por justiça é compartilhado por Maria Suderli Pereira de Lima, mãe de Jardel Lima dos Santos, 17. "É uma coisa com que a gente convive 24 horas. É inevitável. A gente deita, acorda e o pensamento é o mesmo", afirma. "Infelizmente, é uma coisa que a gente vai ter que falar a vida toda. Por mais que a justiça seja feita, nunca vai ser reparado o que aconteceu com a nossa família." Um sobrinho dela ainda foi vitimado na chacina. Baleado, ele chegou a ficar em coma, sobreviveu, mas convive com as sequelas do caso. "Eles simplesmente se prevalecerem do cargo, da farda, para fazer o que fizeram e achar que não vai ter retorno, uma cobrança? Tem que ter, a gente vai passar a vida toda cobrando."

Não ter como escapar do sentimento de perda também é relatado por Catarina Ferreira Cavalcante, mãe de Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho, 18. Com o se aproximar da data, "todas as mães já começam a ficar ainda mais abaladas". "O que a gente espera e briga, cada uma à sua maneira, é que a gente consiga elucidar esse caso, que os acusados respondam pelos seus crimes", diz Catarina.

Nenhuma das vítimas da chacina da Messejana tinha antecedentes por crimes violentos, tendo sido mortas apenas por estarem na rua, em uma espécie de demonstração de força a criminosos da região. No caso de Pedro, chegou a ser informado pela Secretaria de Segurança que ele tinha dívidas por pensão alimentícia, o que Catarina esclarece não ser verdade. Na verdade, a dívida era de 1996, contraída por um homônimo. É mais uma justiça que Catarina cobra para Pedro. "Meu filho não era envolvido em nada de errado", ela ressalta.

"Não podemos nos calar. São jovens que foram arrancados dos braços de suas mães, que não deveriam ter morrido. Que deveriam ter o percurso de vida normal, crescer, ir à faculdade, se formar, se casar se quisessem. Mas não: a Polícia veio, com o aval do Estado", diz Edna.

Hoje, às 19 horas, Edna estará na live "Pelos nossos, sempre: por memória e justiça dos (as) adolescentes assassinados (as) no Ceará". O evento é transmitido pelo canal no YouTube do Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará. A iniciativa ocorre no contexto da Semana Estadual de Prevenção aos Homicídios de Jovens no Ceará, instituída por Lei em alusão à Chacina da Messejana. Até a sexta-feira, 13, são realizados eventos onlines, como debates e oficinas com foco na violência contra a juventude, promovidos por Poder Pública e sociedade civil.

Ação judicial quer pedido de perdão público por Chacina do Curió

O Governo do Ceará precisa pedir "desculpas públicas" pelo assassinato de 11 pessoas executadas durante a Chacina do Curió, em 11 de novembro de 2015. As execuções, motivadas por "torpeza e covardia", de acordo com denúncia do Ministério Público, foram atribuídas a pelo menos 45 policiais militares. Desses, 34 viraram réus e serão julgados na 1ª Vara do Júri de Fortaleza.

O entendimento sobre o pedido de um perdão oficial do Estado está na ação civil da Defensoria Pública do Ceará, ajuizada no ano passado. Seria um "reparo simbólico" ao sofrimento de quem teve de enterrar filhos, marido, outros parentes e amigos.

"Existe uma obrigação e um dever do Estado em pedir, formalmente, desculpas. E mais que pedir perdão é o direito à memória e a reparação não só pecuniária para essas pessoas", observa a defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Ceará.

Para Mariana é também uma questão de respeito à memória das 11 pessoas que tiveram as vidas retiradas, criminosamente, por agentes públicos como mostra as investigações da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário.

"É importante manter esse passado vivo para que possamos construir políticas públicas, onde a gente tenha um Estado que proteja, que faça a proteção das pessoas em vez de um Estado, muitas vezes, violador de direitos humanos", justifica a defensora.

O pedido de desculpas está baseado em medidas análogas às existentes na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em caso similar, por causa das chacinas na favela Nova Brasília, o Estado brasileiro foi condenado pela CIDH, por violação de uma série de direitos. Em 1994/1995, mais de 40 PMs e civis do Rio de Janeiro invadiram a comunidade e mataram 26 jovens.

Segundo Mariana Lobo, é a primeira vez que uma ação civil pública da Defensoria sugere que a Justiça determine que o Poder Público reconheça que assassinou quando era para proteger. E seria a segunda vez, desde o fim da ditadura militar (1964-1985) e a redemocratização do Brasil, que um governador do Ceará reconheceria a culpa.

A primeira vez se deu com o governador Lúcio Alcântara (2003-2007), quando decidiu instalar, em setembro de 2003, a Comissão Especial de Anistia Wanda Sidou para indenizar ex-presos políticos - vítimas da ditadura entre 2/9/1961 a 15/8/1979. A lei foi assinada por Tasso Jereissati em janeiro de 2002, mas foi Lúcio que pediu desculpas públicas na época da instalação.

"Esta é a ação de reparação que é muito cara às famílias, pois se trata do reconhecimento público do Estado sobre a responsabilidade de seus agentes na proteção de todos os cidadãos, uma forma de reafirmar um Estado que colabora na construção de paz e na reconstrução da cidadania", afirma Mariana.

A ação civil pública foi elaborada pela Rede Acolhe. Um segmento de direitos humanos da Defensoria criado, em 2017, por sugestão do Comitê de Prevenção de Homicídios de Crianças e Adolescentes da Assembleia Legislativa do Ceará.

Mariana Lobo explica que o intuito da Rede Acolhe é oferecer assistência integral, não só processual, a vítimas e familiares atingidos por ocorrências violentas como a da Chacina do Curió. (Demitri Túlio)

O que pede a ação civil pública da Defensoria

1. Atendimento psicológico permanente e medicamentos às famílias

2. Reconhecimento de responsabilidade do Estado do Ceará

3. Construção de um memorial em favor das vítimas fatais e sobreviventes

4. Publicar, anualmente, um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações das polícias

5. Que o Estado estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial

6. Delegação de órgãos independentes para investigar policiais suspeitos por crimes de homicídio, tortura ou violência sexual

7.Prazo de um ano, a partir da intimação da decisão que julga procedente os pedidos, apresentar ao juiz um relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento

 

Os crimes em jogo

25 de outubro 

21h20min a 22h30min — O soldado Marcílio Costa Andrade se envolve em uma confusão, no bairro Curió, com um homem que havia discutido com uma familiar do militar. O PM teria agredido o homem, que chama a Polícia. Pedro Anderson Alves Domingo e Francisco de Assis Moura de Oliveira Filho, o Neném, que seriam traficantes da localidade, reprimem o homem por chamar a Polícia, ordenando que fossem com eles para um local "para dar explicações". No momento em que iam ao local, Marcílio e o cunhado, Giovanni Soares dos Santos, chegam atirando. Neném é morto e o homem, ferido.

29 e 30 de outubro

O pai de Neném, Francisco de Assis Moura de Oliveira, é morto a tiros. Minutos antes, um homem liga para o Ciops dizendo que policiais à paisana e com balaclavas estavam "aterrorizando" as pessoas no Curió. Conforme o inquérito que investiga a morte de Neném, os crimes que vitimaram filho e pai podem estar relacionados, já que este havia ameaçado se vingar da morte de Neném.

11 de novembro

21h30min — Três homens abordaram a esposa do PM Serpa, que estava jogando futebol nas proximidades. O crime ocorreu por volta das 21h30 no bairro Lagoa Redonda. Relatório de inteligência apontou ter havido “comoção” entre os policiais militares, que passaram a se organizar para fazer buscas extraoficiais pelos assaltantes.

23h30 — João Batista Macedo Vieira Filho é ferido à bala, mas sobrevive, após pular o muro da casa de recuperação onde estava internado. Ele viria a ser morto em abril deste ano, no bairro Jangurussu.

23h30min às 3h30 min — Um jovem, então, com 19 anos é mantido sob custódia de PMs para que revelasse os autores do latrocínio que vitimou o SD Serpa. Conforme a investigação, ele for torturado psicologicamente e ameaçado pelos PMs.

12 de novembro 

0h25min — Três jovens são mortos no Curió: Antônio Alisson Inácio Cardoso, de 16 anos; Jardel Lima dos Santos, de 17 anos; Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho, de 18 anos; e Alef Souza Cavalcante, de 17 anos. Outros dois ficaram feridos. Conforme a investigação, homens encapuzados em sete veículos abordaram o grupo, em que ainda havia uma moça, quando estavam em uma calçada. Antônio Alisson e Jardel morrem no local, enquanto Pedro e Alef são socorridos, mas não resistem.

Um dos homens que tentou ajudar no socorro às vítimas foi perseguido e baleado por cerca de oito disparos. Ele, no entanto, sobreviveu. O homem havia pulado da carroceria da caminhonete onde se prestava o socorro, após o veículo ser cercado pelos assassinos.

Por volta de 1 hora — Dois jovens são mortos no bairro José de Alencar. Marcelo da Silva Mendes, de 17 anos; e Patrício João Pinho Leite, de 16 anos, conversavam em uma calçada quando foram capturados pelos criminosos. Eles foram espancados e mortos com tiros na nuca. Ao analisar câmeras de vídeo, a DAI afirma que a viatura sequer chegou a ir efetivamente ao local do crime.

1h05min — Renayson Girão da Silva, de 17 anos, é morto após o ônibus onde estava ser parado pelos assassinos, quando tragegava na Lagoa Redonda. Eles tiraram a vítima, que estava com a namorada, do ônibus e, após agredí-lo, atiraram contra ele.

Por volta de 1h45min — Dois homens são mortos no São Miguel. Valmir Ferreira da Conceição, de 37 anos, é morto no momento em que havia ido a uma bodega comprar cigarros. O dono do comércio, Francisco Elenildo Pereira Chagas, 41, também é baleado e morre. Os criminosos ainda invadem a casa em frente ao comércio e matam Jandson Alexandre dos Santos, de 19 anos, no momento em que este estava deitado na companhia de uma criança de seis anos.

1h45min — José Gilvan Pinto Barbosa, de 41 anos, é morto a tiros no bairro Barroso. Um outro jovem fica ferido. Eles conversavam em uma esquina quando homens em quatros veículos passaram atirando.

O processo judicial

12 de abril de 2016 — CGD indicia 38 PMs pela chacina

14 de junho de 2016 — MPCE denuncia 45 PMs

31 de agosto de 2016 — Justiça aceita denúncia contra 44 PMs e decreta a prisão deles

18 de abril de 2017 — Justiça decide que 8 PMs vão ao Tribunal do Júri. Eles, porém, têm a prisão preventiva revogada

23 de maio de 2017 — Mais 8 PMs são pronunciados, mas, para outros 10, a Justiça decide não haver elementos para levá-los ao Tribunal do Júri. Todos são soltos

31 de maio de 2017 — Outros 17 acusados são sentenciados ao julgamento pelo Júri Popular. Eles também têm a prisão revogada

7 de julho de 2017 — Último PM réu a ser pronunciado. Também tem a prisão revogada

30 de outubro de 2019 — Em decisão da segunda instância, o TJCE manteve a decisão de levar 34 PMs a Júri Popular

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