Da tapioca do Mestre Firmino ao queijo coalho artesanal de Jaguaribe. Da buchada ensinada por dona Neuza à chef Irene Semente à especialidade de língua bovina do chef Nem, ambos no Mercado São Sebastião. A atenção que o chef Fernando Barroso (1955-2023) destinava a diferentes aspectos e sabores da cultura alimentar cearense foi uma das marcas do profissional. Após o falecimento dele, na última terça-feira, 18, aos 68 anos, a característica desponta como um dos legados deixado pelo cearense para a prática e a reflexão de gastronomia no Estado.
Amigo pessoal de Fernando, também chef de cozinha e parceiro profissional, Élcio Nagano define: "O principal legado foi a criação de alicerces para uma gastronomia cearense contemporânea". Entre eles, destaca o desenvolvimento de produtores para os insumos e a capacitação da mão de obra.
Unindo pesquisa, formação e prática, Fernando era pensador e fazedor na área da gastronomia. Nas colunas publicadas sempre às sextas-feiras no Vida&Arte, apresentava não somente figuras como as citadas anteriormente, mas também compartilhava reflexões universais que surgiam a partir das práticas específicas de cada uma delas.
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"As técnicas consagradas da gastronomia são universais, patrimônio da humanidade, porém, cada microclima no planeta tem ofertas específicas e únicas. Unir o consagrado com ingredientes locais abre possibilidades de aprimoramento e contemporaneidade para ofertas de alimento", escreveu Fernando em coluna publicada no Vida&Arte do dia 24 de fevereiro deste ano.
A ideia destacada pelo chef parte de um texto sobre dona Alice, da região do Maciço de Baturité. A visita de Fernando ao local se deu para conhecer o pernil assado feito por ela, que trabalhava para a família Matos Brito, da região, e despontou pelos talentos gastronômicos.
O cardápio de receitas de dona Alice, ressalta Fernando no texto, é "nascido pelas influências das culturas indígenas, europeias e africanas; e criado com ingredientes do microclima serrano". A ponte entre o universal e o regional destacada pelo chef no texto foi uma das principais buscas da própria prática dele durante a carreira.
"O conhecimento humano é universal e está disponível para o aprimoramento de cada gastronomia regional. Isso pode trazer novas possibilidades para o desenvolvimento do regional. É o movimento da gastronomia no mundo. São as técnicas universais sendo aplicadas para enriquecer os sabores regionais", dialoga Élcio, em entrevista ao V&A.
Interessado nas potencialidades de cada região do Estado, Fernando ajudou não somente a gastronomia do Ceará a ser reconhecida, mas também o Ceará a se reconhecer nos próprios insumos, saberes e sabores.
"Sempre tive ele como uma pessoa norteadora. Nessas pesquisas de produtos locais, ele era um estudioso", define Bernard Twardy, chef de cozinha, amigo pessoal e parceiro profissional de Fernando. "Ele é uma pessoa visionária, um estudioso de tudo o que temos aqui na terrinha", reforça.
Destacando no trabalho do chef a missão de "fortalecer uma concepção capaz de transformar a gastronomia e a cultura alimentar cearense", a socióloga Kadma Marques elabora: "A territorialidade e a sazonalidade ocuparam lugar importante nessa concepção, a qual colocava no centro, de forma integradora, o cearense e o meio ambiente que o acompanha".
"Para além disso, Fernando pensava de forma harmoniosa, não segmentada, a existência de diversos microclimas que convertem a imagem de escassez em riqueza, redefinindo o valor da paisagem cearense. Por meio do conhecimento e da pesquisa, Fernando lançou-nos na trilha da apropriação de nós mesmos, de nossas memórias e vivências em torno da cultura alimentar cearense", reflete a pesquisadora.
Nestas "trilhas" que desbravaram o Ceará, Fernando se lançou em diferentes projetos e iniciativas. A Expedição Jornalística Ceará Gastronômico, por exemplo, foi uma dessas ações. Produzida pelo O POVO e pela Rádio O POVO/CBN, teve curadoria e consultoria técnica do chef e consistiu em um trajeto que mapeou a culinária tradicional cearense.
Já o Ceará à Mesa foi um projeto multimídia criado e encabeçado por Fernando em parceria com os chefs e amigos Bernard Twardy e Élcio Nagano. O trio buscou identificar no Estado os insumos que formam a base da gastronomia cearense. A ideia se desenvolveu também em programa de TV, com O POVO.
Em matéria publicada no V&A em 4 de março de 2022, Fernando compartilhou perguntas iniciais que fez a si mesmo como motivação para a criação do Ceará à Mesa: "Cadê a nossa gastronomia cearense? Por que não o que é nosso, realmente nosso?".
"Nós somos um povo que não assume a própria história, somos muitos fixados no que é de fora. Mas isso está mudando... Achei meu trabalho em cima de buscar essas raízes nossas e fazer uma gastronomia usando técnicas consagradas nacionalmente", afirmou.
Ainda no texto sobre o pernil do Maciço, Fernando destaca que a "autenticidade e unicidade nas ofertas de cada região, especialmente quando unidas aos hábitos, costumes, saberes, sabores e técnicas" propicia o nascedouro da "oferta de uma culinária única, preparada com insumos regionais, podendo gerar transformações positivas, criando emprego e renda, ao mesmo tempo que eleva a autoestima".
O escrito se encerra com uma frase que funcionou como guia para as trajetórias profissional e pessoal do chef: "Educar é preciso". Fernando Barroso, seja fazendo pratos ou pesquisando hábitos e culturas, desponta como um dos mestres do fazer e pensar gastronômico no Ceará.
Valores humanos e de gastronomia
Em 2018, participar da Expedição Jornalística Ceará Gastronômico a convite do Fernando foi uma dádiva. Ele havia concebido e feito existir este, como tantos outros projetos. Sem hesitação e com entusiasmo aceitamos a oportunidade dada aos membros do Observatório Cearense da Cultura Alimentar, a de assumir a curadoria científica da Expedição. Eu deveria ter suspeitado na época que não estávamos apenas iniciando um "simples" processo de pesquisa. Apesar do diagnóstico de um câncer agressivo na garganta, Fernando fortaleceu-se como exemplo para nós. Ele foi capaz de manter conosco um diálogo próximo e orientações permanentes ao longo de todo o trabalho. Reuníamos o pequeno grupo em seu apartamento para compartilhar as informações sobre o campo que ele havia visitado antes de receber o diagnóstico. Fernando revelou-se então um daqueles tipos humanos admiráveis. Saímos tocados a cada encontro, impactados por sua dedicação e vivacidade em relação aos desdobramentos que a pesquisa tomava no interior do Ceará. Apesar dos efeitos físicos visíveis do tratamento de quimioterapia, ele mostrava uma disposição inquebrantável para um trabalho que se entrelaçava à sua história de vida. Sua visão espiritualizada do mundo fez com que ele me confidenciasse que a doença havia emergido naquele momento para fazer com que ele reavaliasse e mudasse determinadas coisas em sua vida. Ele acreditava que havia nessa experiência uma mensagem subliminar e isso imprimiu um efeito extremamente positivo às suas ações nos anos que se seguiram. Apesar da fragilidade física, ele cresceu em humanidade, fazendo com que se intensificasse cada momento investido na construção de valores próprios da gastronomia cearense, na elaboração das regras do campo de atuação que era o dele e o nosso também.
Kadma Marques é doutora em Sociologia e professora e pesquisadora da pós-graduação em Sociologia da Uece
Pensar a cozinha cearense
Fernando Barroso, economista de formação, foi um cozinheiro visionário, que pensava a elaboração do alimento de forma complexa, ao considerar a cadeia de produção do alimento e o seu contexto. Diria que Fernando foi o cozinheiro que percebeu que é preciso pensar e conversar sobre o que se cozinha e o que se come, porque cozinhar é uma ação que gera impactos em estilos de consumo e de vida, que impactam nossos modelos alimentares. Em uma sociedade em que a industrialização e hegemonização do alimento invadem nossas cozinhas, foi importante um programa de TV como o "Ceará à Mesa", que nos convidava a olhar para nossa cultura alimentar. Fernando também foi idealizador da Expedição Gastronômica, realizada pelo Jornal O POVO e o Observatório Cearense da Cultura Alimentar (OCCA), que tinha intenção em registrar em livro, caderno de receitas, documentário e programa de rádio, o que os cearenses comem no nosso Ceará profundo. Num ônibus, tinham pesquisadores da cultura alimentar, de diferente perspectivas do conhecimento, como sociólogos, antropólogos e historiadores, que comiam, observavam, analisavam e sistematizavam as práticas e os patrimônios alimentares apresentados por cozinheiras, pequenas produtoras, pescadoras, agricultores, comunidades quilombolas e indígenas. Foi uma experiência absurdamente rica e inesquecível, que me apresentou pessoas e saberes importantes para minhas elaborações como pesquisadora. Sabemos que a cozinha tem seus saberes repassados pela tradição oral, sendo muito importante toda ação de documentar as nossas receitas e memórias sociais. Fernando abriu caminho e deixou um legado que o faz eterno. Hoje, o Ceará é uma referência no Brasil para as políticas públicas da cultura alimentar, porque pessoas como ele fizeram provocações importantes sobre a gastronomia e a cultura alimentar cearense.
Vanessa Moreira é coordenadora de Cultura Alimentar e Pesquisa da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco e doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA
Ceará à Mesa
O Canal FDR irá reprisar episódios do programa "Ceará à Mesa", com Fernando Barroso, nesta sexta, 21, sábado, 22, e segunda, 24, sempre a partir das 10 horas