Perto de completar 25 anos, celebrados no próximo domingo, 28, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC) segue sendo um ponto de conexão em debates acerca do cenário da cultura cearense.
Inaugurado em abril de 1999 sob um prisma de inovação, o CDMAC foi idealizado pelo antropólogo e jornalista Paulo Linhares, então secretário da Cultura, em parceria com o arquiteto e compositor Fausto Nilo. Ao longo destas mais de duas décadas, o complexo moldou e acompanhou as principais mudanças culturais em Fortaleza e no Ceará.
Após mergulhar na análise da construção e manutenção do equipamento na série de reportagens "Raio-X dos Equipamentos Culturais", o Vida&Arte olha novamente para a história do aniversariante por meio das falas de quem também constrói essa trajetória: aqueles que trabalham diariamente no CDMAC e aqueles que visitam e pesquisam o complexo.
Demarcar esta interligação com o público que acompanha o fluxo do local, mesmo que às vezes distante, é importante para entender as modificações que sucederam e também as que estão por vir.
Com base em três tempos distintos — futuro, presente e passado —, a reportagem propõe a reflexão acerca da representação do Dragão do Mar na Cidade. Quais rastros de memória ele já deixou? O que ele abrange no atual contexto? O que deve ser feito para garantir a continuidade linear? São algumas questões que rondam aspectos imaginários e reais, elementos que formam uma trajetória permeada por desafios, entre obstáculos e conquistas.
Quando destrincha a visão sobre o Dragão do Mar, o arquiteto, urbanista e cronista do O POVO Romeu Duarte Jr. menciona que o local foi, desde o início, criado "para ser algo mais que um polo de cultura, lazer e entretenimento". Inspirado em pontos culturais nacionais e internacionais com propostas similares, o Dragão do Mar se firmou como pioneiro com base nos pilares de formação, criação e difusão.
"Tão logo foi inaugurado, criaram-se cursos de design, cinema e outras artes no âmbito de um projeto ambicioso. Tão rápido quanto foram instaladas, desapareceram, por conta das distintas visões dos seus dirigentes ao longo de suas gestões", sinaliza o arquiteto.
Ao longo dos anos, estes embates também ampliaram problemas com o entorno, uma relação considerada "problemática" por Romeu devido à falta de compreensão que o "centro cultural está no bojo de um sítio histórico", como caracteriza o antigo Porto da Capital.
"Há quem defenda que a cidade é um centro cultural, no que concordo. Basta estruturar as ligações entre os equipamentos culturais, os quais, no nosso caso, são federais, estaduais e municipais. É só olhar à volta do CDMAC. Nunca houve uma intenção mais generosa ou amistosa de interligar esses centros de cultura (museus, teatros, bibliotecas, etc.), o que talvez fosse mais interessante. No que tange a esse aspecto, não houve qualquer inovação. A falta de diálogo entre os entes federados sempre foi um problema sem solução"Romeu Duarte Jr., arquiteto, urbanista e cronista do O POVO
Segundo Duarte, a parceria efetiva com demais esferas poderia ter auxiliado nestas questões. Situação parecida também acontece com outros equipamentos da Capital e territórios próximos, como a Praia de Iracema, área que “perdeu completamente a força” que outrora teve para o urbanista.
"Acredito que o Campus Praia de Iracema/UFC, a ser instalado nas proximidades, coloque outra condição ao bairro, mais favorável, e se constitua em um equipamento que atraia públicos de diversos matizes nos três turnos do seu funcionamento, além de se tornar um potente agente de requalificação urbana. Todo mundo ganhará com isso".
Além destes pontos, o arquiteto também sente a necessidade de reforço ao setor de formação na área artística, assim como uma agenda de eventos mais variada. Estes pontos, contudo, foram elencados como eixos centrais no atual planejamento de gestão da superintendente Helena Barbosa, no cargo desde janeiro de 2023.
Em entrevista ao Vida&Arte em janeiro do ano passado, a gestora listou como prioridades a requalificação do entorno e a integração entre os equipamentos estaduais. "Todas as nossas ações vão priorizar primeiro o entorno", disse à época.
A mudança em um complexo gigante — em todos os sentidos —, entretanto, leva tempo de construção e amadurecimento. Para Romeu, a expectativa é que "o CDMAC se inspire naquele de quem tomou emprestado o nome para promover um movimento de libertação de corações e mentes que incrementem os movimentos culturais de Fortaleza e do Ceará nas suas mais variadas áreas".
Tem uma reportagem do Vida&Arte que Magda Mota, coordenadora do acervo do Museu da Cultura Cearense (MCC), não esquece. Ela foi feita em 2000, no final do programa de capacitação solidária idealizado pelo Museu do Ceará em parceria com o Dragão do Mar.
Quando o repórter perguntou sobre a avaliação do percurso de ensino, ela falou: “Conheci um mundo que não vi nos livros”. A frase, lida em um livro durante a juventude, sintetiza a maneira como ela enxerga a própria relação com o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e, consequentemente, com o MCC, parte do complexo. "Minha relação com o Dragão é quase um sonho", delineia.
Ela tinha apenas 18 anos quando concedeu a entrevista, justo no momento de despertar o interesse pela arte da restauração e conservação. "Comecei o estágio em 2006 no MCC e depois virei funcionária. Mas é um grande processo, vim de periferia, moro numa região conturbada, venho de uma restauração muito clássica, europeia, e venho para um museu de cultura cearense. Aos meus 20 e poucos anos eu fui me letrar na minha cultura, o museu me deu essa oportunidade de ir me formando. A formação técnica toda feita dentro do museu, mas eu tinha contato com artistas, curadores, isso também vai gerando uma formação paralela", considera.
As trocas iniciais com o acervo chegaram até a ser, em um certo ponto, "assustadoras". Quando Magda viu a exposição "Vaqueiros", que segue em cartaz de forma contínua há 25 anos, também concebeu novos significados à museologia. "Eu vi que a casa da minha avó estava num museu, a parede da casa da minha tia é um museu, minhas fotos antigas são acervos. Mas a gente não é criado para ter essa noção, principalmente nas regiões mais periféricas. Nessa experiência com o MCC, eu falei: 'nossa, minha memória é o meu museu'", elabora.
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Após passar pelas áreas de restauração, administração e documentação, a coordenadora agora também se dedica a explorar aquilo que vai além do material. "Vou me debruçar na restauração das memórias, do imaterial, do imagético", detalha. E, lado do museu, ela toca iniciativas que estimulam a educação patrimonial, a exemplo do projeto Museu e Cidadania Cultural, que acontece em comunidades da Cidade.
Essa característica de formação é um destaque do MCC para Magda, que também pontua o aspecto "vanguardista". Ela cita como um dos exemplos a exposição "Festa, Baia, Gira, Cura", realizada com imagens de festas da umbanda e do candomblé do antropólogo e fotógrafo Jean dos Santos, que esteve em cartaz entre janeiro de 2023 e fevereiro de 2024. "Dentro do plano museológico, sempre teve um movimento de vanguarda pelas temáticas. Ter um terreiro do Bom Jardim exposto, é cultura. Teve muita oferenda, perfumes, flores no altar, no final da exposição. É o imagético, a subjetividade, a sensibilidade que a gente tem que ter como técnico”.
Para ela, as escolhas do museu falam muito sobre "a mira" necessária para trazer temáticas relevantes e diversas a um espaço cultural. Afinal, como aponta Magda, trabalhar com arte é complexo - opinião que também explica muito do que há por trás de tamanha estrutura. "Existe uma pressão estética muito grande em relação à estrutura do Dragão do Mar, mas o Dragão nunca parou, nem na pandemia. Dentro está pulsante. Você chega aqui, entra no MCC, tem programação no planetário, no Palco Rogaciano Leite. O coração dele continua pulsando fortemente com a galera que é mais que funcionário, é a galera que tem aqui como o primeiro lar, que sabe como funciona a engrenagem, como seguir. E dentro ele continua, nunca parou", arremata.
Uma destas pessoas é o supervisor técnico do Cinema do Dragão, André Matos, quem, assim como muitos, enxergou no terreno uma forma de edificar sonhos. Ele relembra o brilho no olho do primeiro contato com o complexo, encontro que já aconteceu há mais de 25 anos. O espaço abriu oportunidade de realizar um sonho de infância: descobrir o que acontece por trás das telonas dos cinemas. "Eu sempre gostei de cinema, desde criança, e sempre fui fascinado pela cabine de projeção. Eu tinha muita curiosidade, quando eu sentava na plateia sempre gostava de ver de onde saía aquela luzinha", rememora.
Ainda em 1999, no primeiro ano de funcionamento, ele participou de uma seleção de emprego do então Espaço Unibanco Dragão do Mar, gerido pelo Banco Itaú e comandado pelo projecionista Alex Cordeiro. "Me chamaram para ser porteiro. Pensei: 'tô mais próximo da projeção'. A mão de obra não tinha aqui, é difícil conseguir projecionista, não existe curso, é passado de pessoa para pessoa". A aproximação com as máquinas acontecia nos intervalos dos horários de trabalho, quando observava os movimentos de operação. "Um dia ele não veio trabalhar e a sala estava lotada. Lembro que os filmes eram 'Central do Brasil' e 'A Vida É Bela'. Eu perguntei se podia começar o filme".
Desde então, já se foram inúmeras sessões em um dos principais cinemas de Fortaleza. Com mais de 290 lugares, as duas salas conta com tecnologia analógica - para exibição de filmes em 35mm -; digital 4K; e digital laser SP2K-11 2K. "É o único cinema de rua comporta as três tecnologias, creio, no Ceará inteiro", reforça André. Para além do diferencial técnico, o supervisor também destaca a diversidade da programação, fator que permitiu ampliar sua visão de mundo.
"Aqui nós temos um público muito diverso, temos festivais de cinema LGBTQIA+, cinema para negros, indígenas", realça André. Para ele, o espaço vive um momento muito similar ao da abertura. "Em 1999, logo quando eu entrei, era uma magia total. Muito cinema, muitos filmes, planetário lotado, museu lotado. O Dragão passou por diversas fases, de quedas e tudo mais. Hoje eu posso dizer que ele se encontra como no início. O Dragão hoje posso dizer que está em êxtase, não só pelo aniversário, é só a comemoração de mais um ano, mas pelo trabalho que vem sendo feito para todos. O Dragão não é feito para um público só", complementa.
Difícil é encontrar algum fortalezense que não tenha uma história relacionada ao Dragão do Mar. Quando o nome aparece de maneira despretensiosa em conversas, as lembranças vêm rapidamente, muitas vezes conectadas a um sentimento de nostalgia. São recordações de passeios na Praça Verde, momentos que têm a famosa ponte vermelha como cenário. Sem mencionar, claro, os relatos da movimentada cena cultural do início dos anos 2000, levadas pelos jovens que ocupavam também arredores no local. As noites no Órbita, os encontros no Cinema do Dragão, os shows no Maloca e os chopes de vinho no Bixiga. De uma maneira ou outra, são incontáveis aqueles que também trazem a história do complexo consigo.
"Na época da inauguração (do Dragão do Mar), eu tinha, mais ou menos, 21 anos. O Dragão lembra muito o início das minhas farras, dos passeios, rever colegas de escola nos bares. Lembro de alguns shows gratuitos, o Fagner é um dos que marcou, mas Paulinho Moska, Chico César, diversos outros artistas passaram por lá. Vem o Chopp do Bixiga, o Órbita, que tinha ali pertinho. O Dragão tem esse lado de boemia, mas tem também um lado cultural do cinema, do próprio planetário. É um espaço que deve ser preservado. Já está com um tempo que não volto lá, estou em débito, preciso voltar a visitar, rever. Me traz memórias muito boas, acho que é um espaço muito rico"
Rogério Cardoso, professor
"Eu acompanhei bem o começo da revitalização daquele largo, que veio a virar o Dragão do Mar. Andava no Coração Materno, que era um bar, e começou a rolar umas construções. A gente tirou fotos ali, ainda no começo. E foi lá que vi várias coisas que eu nunca tinha visto. Shows no Anfiteatro, Praça Verde, na época não tinha nada. Toquei várias vezes lá com uma banda chamada Soul Zé, a gente fez parte do Movimento Cabaçal, que foi bem importante para a cultura cearense no começo dos anos 2000. Moro em São Paulo há 20 anos, depois eu voltei algumas vezes. É um lugar que toda vez que eu vou bate um saudosismo e me deixa quase emocionado, de alguma forma. Ele trouxe uma efervescência muito importante na cena musical, artística, ali na Praia de Iracema que tava meio morto. Quando a gente ia para lá era um evento, era muita gente na rua e o Dragão do Mar meio que era o pilar principal. Se não fosse o Dragão, acho que isso não teria acontecido. Acho que ele foi responsável por, esse burburinho, esse estouro artístico de Fortaleza nos anos 2000"
Dionísio Dazul, músico
"Vivi intensamente o Dragão do Mar e das mais diversas maneiras. Primeiro como espectadora do cinema e visitante do planetário e do museu, com parada obrigatória para um café com tapioca ou chopp de vinho. Depois como artista, tocando nas várias casas do entorno até finalmente realizar o sonho de me apresentar nos palcos do Dragão. Demorou uns 10 anos, mas consegui. Os festivais de música e as feiras de criadores locais foram oportunidades de entrar em contato com novos universos, e a lembrança que guardo desse começo dos anos 2000 é de efervescência, muita gente fazendo arte e encontrando não só um lugar para mostrar essa arte, mas também gente interessada em conhecer, construir, trocar. Ninguém precisava saber a programação: o Dragão era o destino, e a noite ia ser boa"
Alinne Rodrigues, ilustradora e vocalista das bandas Telerama e Subcelebs
"O que eu posso dizer é que a maioria das minhas lembranças de adolescência e início de vida adulta são ligadas ao Dragão do Mar. Além das festas, dos passeios com os amigos e muitas outras coisas que vivi por lá, eu curti muito a época do início dos museus - amava ir para as exposições no MAC, no planetário, de muitos shows no anfiteatro e na Praça Verde, e todo o período da renovação dos casarões no entorno do Dragão. A noite de Fortaleza praticamente se concentrava ali, então eu estava por lá quase todo final de semana durante anos e anos da minha vida - fosse no saudoso Órbita, o Hey Ho, o Amicis ou o Acervo Imaginário. O mais legal era que tinha muita coisa disponível por ali, desde apresentação de banda de rock, de quadrilha de São João, teatro… tinha tudo! Inclusive, foi lá pertinho que eu e meu atual marido trocamos nosso primeiro beijo no Hey Ho, após um passeio que fizemos para conhecer o Museu da Cultura Cearense para um projeto da faculdade. Aliás, um clássico dos meus tempos era um date lá no Café e depois descer para um 'filme de arte' no cinema do Dragão - praticamente o único espaço que a gente tinha acesso a filmes que não fossem do circuito de Hollywood"
Rafaella Nunes, designer e personal stylist
Parte da Rede Pública de Equipamentos da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult Ceará) e gerido pelo Instituto Dragão do Mar, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC) inicia programação de comemoração dos 25 até o dia 30 de abril. Neste ano, as ações homenageiam Mário Gomes, o "Poeta Descomunal".
Nesta quarta-feira, 24, destaque para o evento de lançamento do Programa de Gratuidade para Comunidades Vizinhas, que contemplará moradores das comunidades Poço da Draga, Graviola e Moura Brasil. Os demais dias seguem com atividades como mostra de cinema, ações educativas nos museus, sessões gratuitas no Planetário Rubens de Azevedo, apresentações teatrais e mais. A programação completa pode ser vista no site.