Após o ano menos violento da década em 2019, os números de homicídio voltaram a assustar em 2020. Até o último dia 29 de dezembro, mais recente atualização disponível até o fechamento desta reportagem, 2020 registrava um aumento de 78,6% no número de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs) em comparação com o mesmo período de 2019. Foram 4.020 CVLIs em 2020 contra 2.250 de 2019, conforme dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Os CVLIs reúnem homicídios, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte.
Os números seguem em patamares inferiores ao observado em anos anteriores, 2018 e 2017, períodos mais violentos da história do Estado, ápice do confronto entre as facções criminosas no Ceará. Mas as estatísticas poderiam ser ainda piores se não fosse um arrefecimento dos homicídios observado no segundo semestre, já que a primeira metade de 2020 encerrou-se com, praticamente, o mesmo número de assassinatos de todo o ano de 2019.
Foi no primeiro semestre que se registraram de maneira mais forte os dois fatores apontados pela SSPDS como tendo impacto direto nos resultados negativos. Ao longo do ano, em diversos posicionamentos à imprensa, a pasta afirmou que a paralisação da Polícia Militar em fevereiro de 2020 e a pandemia de Covid-19 como causadoras do aumento. Os dias do motim foram os mais violentos do ano e fizeram de fevereiro o mês mais sangrento no Estado desde janeiro de 2018.
Logo em seguida, veio a pandemia, que desviou efetivo para garantir as medidas de isolamento e ainda afastou, por doença, agentes de seguranças. Em uma única semana, a segunda do mês de maio, 1.666 policiais militares ficaram afastados ao mesmo tempo com sintomas de Covid-19.
Entretanto, ao deixar a SSPDS, em setembro, o secretário André Costa afirmou que escolheu entregar o cargo em um momento menos conturbado com relação a homicídios. A partir de maio, mês a mês, os números foram caindo, até chegar a 253 CVLIs em setembro, o número mais baixo do ano, ainda que superior aos 183 de setembro de 2019. Os impactos da pandemia e do motim “ficaram para trás”, afirmou ao O POVO o novo secretário Sandro Caron, em outubro. Mas essa tendência de queda mensal parou em outubro, que registrou mais assassinatos que setembro; e novembro, que também teve mais CVLIs que outubro.
O ano ainda viu as facções criminosas intensificarem seus conflitos. Após 2019, registrar uma espécie de trégua, em 2020, as facções criminosas aumentaram a escalada de confrontos por territórios e execuções por acertos de contas.
Um dos capítulos mais dramáticos desse quadro, foi a “proibição” por parte do Comando Vermelho (CV) de áreas “neutras”, ou seja, sem facção. “Neutro q conheço é de automóveis, e massa só de fazer bolo salgado e pão. Ou é com nois ou corre nois CVRL CE Escolha o lado certo nunca fique em cima do muro pra não ser alvejado” (sic), dizia um “salve” encontrado no celular de Mateus Jorge do Nascimento, preso em julho, apontado como comparsa de Francisco Cilas de Moura Araújo, o Mago, suspeito de ser o chefe mor da facção em Caucaia.
O reflexo dessa ordem foi uma espécie de corrida por parte dos criminosos por comunidades. Passou a ser comum ouvir em Fortaleza foguetórios feitos por criminosos “anunciando” a tomada de comunidades. E também um aumento no número de incursões armadas nesses territórios, quase sempre gravadas pelos próprios criminosos.
O próprio secretário Sandro Caron, na entrevista ao O POVO em outubro, afirmou ter sido pouco explorada a existência de uma trégua em 2019.
“Quando foi feito esse excelente trabalho de reorganização do sistema (prisional, durante a administração Mauro Albuquerque), eles (faccionados) ficaram durante muito tempo com dificuldades de comunicação dos comandantes para os comandados das facções. Isso é uma coisa que eu acho importante falar, foi muito pouco explorada, durante um bom período ali do ano passado, houve uma espécie de trégua entre as facções. Grande parte desses homicídios, a gente sabe, são decorrentes da disputa entre facções. Então, como houve ali uma trégua entre eles, eles pararam de brigar entre si para tentar retomar o controle da cadeia de comando.”
Para melhor explicar o cenário de violência que se erigiu em 2020, O POVO preparou uma série de dados que mostram onde se dá essa violência e quem mais sofre com ela.
Visualizar a ocorrência diária de homicídios no Estado em 2020 é observar a existência de sobressaltos de violência ao longo do ano. O que mais se destaca ocorreu em fevereiro, nos dias do motim da Polícia Militar. Os cinco primeiros dias do motim tiveram quatro dos dias mais violentos no ano. O dia com o maior número de CVLIs ocorreu durante a paralisação: em 21 de fevereiro, 38 pessoas foram assassinadas em todo o Estado.
A paralisação da PM teve início no fim da tarde de 18 de fevereiro e foi até 1º de março. Entre as reivindicações dos militares estava reajuste salarial com aplicação da inflação dos anos 2021 e 2022. Após representantes da categoria aceitarem proposta do Governo do Estado, parte da categoria não aceitou a proposta e passou a ocupar batalhões e tomar viaturas. O baque no policiamento levou o Governo a solicitar o envio de tropas da Força Nacional e do Exército.
Enquanto isso, os assassinatos explodiram. Com 456 CVLIS, nunca um fevereiro foi tão violento desde 2013, início da série disponibilizada pela SSPDS. Relatos de fontes policiais dão conta de que as facções aproveitaram a ausência de policiamento para atacar territórios “rivais”.
Em depoimento à Polícia Civil, um integrante da Guardiões do Estado (GDE) afirmou ter recebido ordens para "proteger" a comunidade Santa Filomena, no bairro Jangurussu, "que vinha sendo atacado desde o inicio da paralisação da Polícia Militar", conforme consta da denúncia do Ministério Público Estadual (MPCE). João Pedro de Abreu Severo foi preso ao lado de John Rodrigues da Rocha e Jonas Victor Rodrigues da Silva, depois de atirar contra uma viatura descaracterizada da Polícia Civil — segundo afirmaram, acharam que o carro tinha integrantes do CV.
Com 18 assassinatos, a região que mais sofreu com os homicídios naqueles dias foi a Área Integrada de Segurança (AIS) 9, onde estão localizados bairros como Mondubim, Maraponga, José Walter e Conjunto Esperança. Nessa região, foram registrados cinco homicídios, em um intervalo de três dias, que a Polícia suspeitou ter sido praticado por um mesmo grupo, por causa do modus operandi semelhante.
Testemunhas relataram a existência de grupos de motociclistas em todas as ocorrências. As mortes de Mateus Ferreira da Conceição, Marcelo Vinicius Silva de Oliveira, Adriano Jesus de Sá, Francisco Bruno Cosmo Sena e Antônio Rubens Castro de Souza seguem sendo investigadas e não resultaram em denúncia até o momento. O MPCE solicitou que os projéteis das armas encontradas nos locais do crime fossem comparados.
Outro caso que segue em investigação é o que vitimou Jose Guilherme da Costa Camara, 17, no bairro Vicente Pinzón. A investigação apontou que o crime foi cometido por cerca de 12 homens, que usavam balaclavas e estavam em seis motos. Eles abordaram a vítima e ordenaram que ele ficasse de costas, com as mãos na parede. Foi quando José Guilherme se virou para trás que eles dispararam. Após atirar, eles teriam juntado as cápsulas e permanecido rindo no local do crime. Neste caso, porém, relatos de testemunhas levaram os investigadores a suspeitar da participação de agentes de segurança no crime. Por isso, o caso é investigado pela Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD).
O POVO solicitou à SSPDS, através da Lei de Acesso à Informação (LAI), o número do inquérito de todos os assassinatos ocorridos durante o motim para verificar o andamento das investigações sobre o caso. A pasta não repassou os dados, afirmando que os dados são “estratégicos”.
Apesar de os assassinatos terem aumentado em todo o Estado, a região se deu de maneira mais incisiva em determinadas regiões. Na Capital, a Área Integrada de Segurança (AIS) 8, de bairros como a Barra do Ceará e o Pirambu, foi a que registrou o maior aumento no número de assassinatos na comparação entre os 11 primeiros meses de 2019 e 2020.
Até novembro deste, haviam sido registrados 116 CVLIs, um aumento de 231% diante dos 35 registrados em 2019. Outro aumento substancial ocorreu na AIS 10, de Papicu, Dionísio Torres e outros: saiu de 25 para 63 casos. Na capital, todas as AIS registraram aumento no número de homicídios. O menor aumento, porém, ocorreu na AIS 2, onde ficam Bom Jardim e Conjunto Ceará. O aumento foi de 25,4%: saiu de 118 para 148 CVLIs.
A SSPDS não divulga os homicídios por bairro, apenas por AIS. Neste ano, a pasta ainda deixou de disponibilizar os relatórios diários de ocorrência em seu site, o que permitia um levantamento parcial dos homicídios por bairro. Levantamento feito em junho por O POVO havia mostrado que o Jangurussu era o bairro com o maior número de assassinatos na Capital, com 39 casos.
Na Região Metropolitana de Fortaleza, também todas as regiões registraram aumento de assassinatos. O maior deles foi na AIS 13, que contempla os municípios de Eusébio, Aquiraz e Pacajus. Os 333 homicídio registrados até novembro representaram crescimento de 123% contra os 149 casos de 2019.
Também no Interior todas as regiões registraram crescimento nos números da violência. O maior aumento se deu na AIS 18, que engloba regiões do Litoral Leste e Vale do Jaguaribe. Os 222 CVLIs registrados em 2020 representaram um aumento de 131,2% na comparação com 2019.
Outra região que viu dobrar o número de assassinatos foi a AIS 21, de Iguatu, Icó, Lavras da Mangabeira, entre outros. Dos 50 CVLIs de 2019, a região passou a ter 105 assassinatos em 2020. Na outra ponta, a região de menor crescimento no número de homicídios foi tem Itapipoca, Jericoacoara e Pentecoste. A AIS 17 teve aumento de 32,5%, saindo de 94 para 141 casos.
A pirâmide etária das vítimas de assassinatos no Estado revela: são os jovens as maiores vítima da violência armada no Ceará. Até novembro, 1.422 pessoas entre 18 e 25 anos haviam sido mortas no Estado, o que representa mais de um terço (38,2%) do total de CVLIs ocorridos no Estado no período. São essas oitos idades as que registram mais vítimas: a nona é 26 anos, idade de 148 assassinatos.
A situação, porém, não é novidade. Em dados de 2017 e 2018, Dos 9.651 CVLIs registrados naqueles anos, 3.440 tinham vítimas entre 18 e 25 anos — ou seja, 35,6% dos assassinatos totais.
Os jovens são vítimas principalmente de homicídios dolosos. Em 2020, entre os latrocínios, apenas sete têm idade entre 18 e 25 anos. Já nos feminicídios, quatro tinham essa faixa etária. Nas lesões corporais seguidas de morte, são sete vítimas com essa idade.
A SSPDS ressaltou a reformulação sob a gestão Sandro Caron da área de inteligência como trunfo no combate aos CVLIs no Estado. O POVO solicitou entrevista com o secretário para abordar o tema, mas a SSPDS se posicionou apenas com uma nota. Confira-na na íntegra.
A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informa que, como diretriz do secretário Sandro Caron, tem reestruturado e fortalecido seu Subsistema Estadual de Inteligência de Segurança Pública (Seisp), que tem como agência central a sua Coordenadoria de Inteligência (Coin) e abaixo dela o Departamento de Inteligência Policial (DIP) da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE), a Assessoria de Inteligência (Asint) da Polícia Militar do Ceará (PMCE) e a Assessoria de Inteligência do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará (CBMCE). Os levantamentos de informações feitos por essas unidades subsidiam investigações realizadas pela PCCE com foco na resolução de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) e ajudam a direcionar o policiamento ostensivo feito pela PMCE.
Outra orientação para a redução desses crimes abrangidos por esse indicador é a territorialização nas regiões onde são registrados os maiores índices de CVLI, bem como a atuação no fortalecimento da Polícia Civil nesses locais. O intuito é coibir a atuação e a disputa entre organizações criminosas. A Coordenadoria Integrada de Planejamento Operacional (Copol) da SSPDS é responsável por conduzir as operações integradas que ocorrem com o apoio de órgãos estaduais e municipais. Um exemplo disso é a Operação Apostos, que teve início no último dia quatro deste mês, e que segue ocorrendo todas as semanas em pontos estratégicos escolhidos a partir de dados extraídos pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública do Estado do Ceará (Supesp/CE).
É importante destacar também as ações proativas baseadas nas doutrinas do policiamento de proximidade e comunitário, que são realizadas pela Polícia Militar do Ceará (PMCE) nas 15 Unidades Integradas de Segurança (Unisegs) localizadas em Fortaleza, Juazeiro do Norte e Sobral. Os projetos contam com o envolvimento de outros atores sociais e incluem aulas de música e esportes, que utilizam espaços e estruturas públicas para a realização desse trabalho. Outro exemplo é a criação do Programa de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger). Além da instalação dessas estruturas fixas da PMCE, o Proteger realiza o mapeamento de 70 indicadores como CVLI, renda, saneamento e educação, referentes às áreas críticas de Fortaleza. Atualmente, territórios em Fortaleza, Maracanaú e Caucaia contam com o programa.
A SSPDS frisa que as ações de investigação da Polícia Civil ganharam reforço na RMF com a instalação de Núcleos de Homicídios e Proteção à Pessoa (NHPP) nas Delegacias Metropolitanas de Caucaia e de Maracanaú e nas Delegacias Regionais de Juazeiro do Norte e Sobral. Os dois municípios também receberam recentemente bases e policiais militares do Programa de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger), que mantêm policiamento fixo nas comunidades. A pasta destaca ainda que a presença permanente da Polícia nos territórios têm o objetivo de neutralizar a ação de grupos criminosos e construir uma relação de confiança junto aos moradores.
É importante salientar também a ampliação do trabalho de investigação nas delegacias de todo o Estado, o que deu ainda mais capilaridade à Polícia Judiciária cearense, bem como intensificou as investigações de crimes em todo o Ceará. Nos últimos seis anos, o número de delegacias 24 horas no Ceará mais que dobrou, passando de 13 para 32 unidades plantonistas.
por Ricardo Moura*
O Ceará vive um paradoxo. Ou não. O estado que, em 2020, viu sua Capital se tornar a maior economia da Região Nordeste, superando Salvador no quesito Produto Interno Bruto (PIB), assistiu também a outra escalada: da violência letal. Desde 2010, os assassinatos atingiram um patamar inédito, quando a taxa estadual de homicídios superou a barreira dos 31,8 por 100 mil habitantes. Os números se alternam entre quedas bruscas e altas vertiginosas, como se estivéssemos em uma montanha-russa macabra.
O ano de 2020, por exemplo, interrompeu a tendência de queda registrada em 2019. O esforço da sociedade e das autoridades se perdeu em pouco menos de dois meses, com a eclosão do motim da Polícia Militar. Em seguida, tivemos de lidar com o maior desafio civilizacional já vivido pela nossa História. A pandemia do Coronavírus acabou se mostrando também uma pandemia da violência armada no Ceará. Os crimes violentos letais intencionais (CVLIs) e as mortes por intervenção policial bateram recordes no período de isolamento social mais rígido, entre abril e maio. Embora os assassinatos tenham diminuído com a diminuição do rigor das medidas de prevenção, os índices voltaram a subir nos últimos três meses, sinalizando um começo de 2021 pouco auspicioso.
Desde a década passada, a economia cearense vem apresentando bons resultados, em um crescimento anual constante do seu PIB. Em escala micro, saímos de um índice de PIB per capita de R$ 9,2 mil, em 2010, para R$ 18,8 mil, em 2019, ou seja, mais que o dobro. A hipótese de que a pobreza possui relação direta com a violência encontra no Ceará um contraexemplo. Nunca geramos tanta riqueza e, ao mesmo tempo, nunca tantas vidas foram perdidas por causa da violência urbana.
Equacionar esses dois fatores não é tarefa fácil. Construir um modelo de desenvolvimento sócio-econômico em que as vidas humanas não sejam percebidas como descartáveis só será possível, no entanto, com a redução das desigualdades em nosso Estado. Enquanto isso ocorrer, crescimento do PIB e aumento da violência permanecerão sendo realidades em nada excludentes. Se tem uma coisa que há muito tempo se tornou o “novo normal” no Ceará foi isso: o completo descompasso entre os bons índices da economia e a garantia da proteção da vida humana. Entre a bolsa ou a vida, nossa escolha já foi feita.