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De onde surgiu e como funciona a primeira facção criminosa cearense
Reportagem Especial

De onde surgiu e como funciona a primeira facção criminosa cearense

Fundada em 1º de janeiro de 2016, os Guardiões do Estado (GDE), a primeira facção criminosa cearense, completa meia década com mais de 20 mil membros, mas enfraquecida, conforme os órgãos de segurança. Saiba detalhes de sua criação e expansão

De onde surgiu e como funciona a primeira facção criminosa cearense

Fundada em 1º de janeiro de 2016, os Guardiões do Estado (GDE), a primeira facção criminosa cearense, completa meia década com mais de 20 mil membros, mas enfraquecida, conforme os órgãos de segurança. Saiba detalhes de sua criação e expansão
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No dia 1º de um janeiro como este, no ano de 2016, a organização criminosa Guardiões do Estado (GDE) era fundada. A primeira facção criminosa surgida no Ceará chega a cinco anos com mais de 20 mil membros, conforme depoimentos de seus chefes, mas com relatos de enfraquecimento, entre outros motivos, por toda a sua cúpula estar presa.

Detalhes da criação e expansão da facção são expressos no Relatório de Inteligência (Relint) nº 364/2020, da Coordenadoria de Inteligência (Coint) da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP). Elaborado em outubro último, o Relint trazia informações sobre Yago Steferson Alves dos Santos, o Yago Gordão, a fim de embasar o pedido de permanência dele em presídio federal. Conforme a inteligência da SAP, Yago é um dos sete fundadores da GDE, integrantes de um quadro da facção chamado “Sétima Torre”, que reúne os maiores chefes da organização.

Ações da facção criminosa nascida no Ceará tiveram início em 2016
Foto: Alex gomes em 3/2/2019
Ações da facção criminosa nascida no Ceará tiveram início em 2016

Ainda segundo o Relint, os fundadores da organização tinham “fortes vínculos” com a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC). Entretanto, eles estariam insatisfeitos com as altas taxas que precisavam pagar para pertencer ao PCC. Outra argumentação que os fundadores trariam para justificar a criação do novo grupo era a de serem “os legítimos defensores dos criminosos cearenses”.

“A liderança da Orcrim (Organização Criminosa) seria feita de maneira equivalente entre os fundadores, que estruturam grupos próprios de acordo com as áreas de cada fundador”, diz o relatório. “Dessa forma, a GDE passou de um pequeno grupo para milhares de integrantes em alguns meses de existência. As lideranças do PCC no Estado, aparentemente, não viram problemas na criação do grupo local contanto que continuassem sendo os principais fornecedores de drogas para a recém criada facção”.

Disputa entre facções criminosas por territórios do tráfico de drogas em Fortaleza causa triplo assassinato no bairro Vila Velha
Foto: Foto: O POVO
Disputa entre facções criminosas por territórios do tráfico de drogas em Fortaleza causa triplo assassinato no bairro Vila Velha

Outra fonte que detalha o surgimento da GDE é monografia apresentada pelo delegado Harley Filho, titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), em sua pós-graduação. O trabalho, ao qual O POVO teve acesso, aponta que a GDE surgiu nos presídios do Estado, a partir de uma ideia trazida por um dos fundadores durante estada em penitenciária federal.

Harley narra que as investigações da Draco apontaram que, em um primeiro momento, houve uma "corrida" entre Comando Vermelho (CV) e PCC pela “conquista” do Ceará, sobretudo, Fortaleza e Região Metropolitana. O propósito, prossegue, seria convencer os chefes dos grupos locais a se batizarem nas facções sob uma ideologia que pregava "justiça, liberdade e igualdade".

"Os batismos nos presídios também ocorriam diariamente", diz. Foi durante essa corrida, conforme a apuração da Polícia Civil, que surgiu, em 1º de janeiro de 2016, a GDE. Nesse primeiro momento, a expansão das facções teria ocorrido com ordens por parte das cúpulas de não-agressão.

Ação policial durante operação para cumprir mandados em bairros como Vicente Pinzón, Conjunto Palmeiras e Aerolândia
Foto: Divulgação/Polícia Federal
Ação policial durante operação para cumprir mandados em bairros como Vicente Pinzón, Conjunto Palmeiras e Aerolândia

No entanto, em junho de 2016, a partir do assassinato do traficante Jorge Rafaat, conhecido como Rei da Fronteira, CV e PCC teriam rompido e passado a deflagrar uma guerra em todo o País. No Ceará, o PCC se aliou à GDE, que passou a antagonizar com o CV, que tinha ao seu lado a Família do Norte (FDN), do Amazonas.

Conforme Harley, durante 2018, o PCC passou a ficar "em segundo plano" nesse conflito, tendo a GDE ganhado destaque. Naquele mesmo ano, a FDN deixou de atuar no Ceará, após ruptura com o CV, facção que abrangeu a maior parte dos membros daquela. 

Fluxo de alunos no Centro de Educação de Jovens e Adultos, em Horizonte, cai após assalto que deixou uma pessoa refém e mais 30 mantidas em cárcere durante a ação, em 2017
Foto: Mateus Dantas / O POVO)
Fluxo de alunos no Centro de Educação de Jovens e Adultos, em Horizonte, cai após assalto que deixou uma pessoa refém e mais 30 mantidas em cárcere durante a ação, em 2017

Com a prisão de diversas lideranças da facção a partir do trabalho de investigação da Polícia Civil e a “retomada” dos presídios na gestão Mauro Albuquerque, Harley defende que a GDE foi "esfacelada". Entretanto, no trabalho, o delegado questiona outros policiais civis da Draco sobre as perspectivas de futuro para a GDE.

Um dos policiais afirmou que o fim da facção só seria possível com a inanição financeira da organização e prisão da liderança secundária, o que geraria a "conscientização" de que pertencer a uma facção criminosa "não compensa”. No entanto, o restante dos entrevistados afirmou não acreditar no fim da facção.

 > Assista a todos os episódios da série https://mais.opovo.com.br/webdocs/grandesreportagens/guerra-sem-fim

 

 Facção está esfacelada, mas fim é “utopia”, diz delegado 


O delegado Harley Filho está na linha de frente no Estado no combate às facções criminosas e tornou-se um dos maiores conhecedores da GDE. Em entrevista a O POVO, ele afirma que os órgãos de segurança do Estado trabalham para mapear as facções e poder se antecipar aos seus movimentos — exemplo disso é a substituição da cadeia criminosa após prisões de lideranças. Harley, porém, é cético quanto ao fim da organização. “Facção, não só no Ceará, mas no Brasil como um todo, é algo que já está enraizado.” Confira a entrevista com Harley Filho.

 Harley Filho, delegado: os rumos do GDE no Ceará
Foto: FÁBIO LIMA
Harley Filho, delegado: os rumos do GDE no Ceará

O POVO: O senhor falou em sua monografia que a facção estava esfacelada. Esse quadro permanece, mesmo após um 2020 que foi mais violento que 2019?

Harley Filho: Permanece. E o grande desafio hoje da Polícia Judiciária, da Secretaria de Segurança como um todo, é tentar equilibrar o poderio dessas facções. Porque, a partir do momento que a gente bate de um lado, naturalmente, o outro acaba se sobrepondo. Como é que se inicia a queda da GDE? Com um episódio que marcou, a Chacina do Forró do Gago, (o assassinato de 14 pessoas no bairro Cajazeiras, que, conforme a investigação, foi autorizado pela cúpula da GDE), em janeiro de 2018. Então, a partir desse momento, a gente utilizou todos os esforços no sentido de tentar prender todas essas lideranças que se encontravam em liberdade e, ao mesmo passo, tentar deixá-los incomunicáveis, aqueles que já se encontraram encarcerados. Só que a gente percebeu que isso acabou trazendo uma força à facção rival (Comando Vermelho). Então, o trabalho aí desde o início de 2020 é exatamente voltado para bater no outro lado.

 

"Na verdade, essa perda de liderança traz essa consequência, porque, quando você tira a cabeça pensante, o corpo como um todo não tem mais uma estratégia de ação, ocasionando esses ataques".

 

OP: Em 2020, houve alguma mudança no perfil, no poderio da GDE que poderia justificar o aumento de homicídios?

Harley: Não, a gente não enxerga nenhum episódio específico que pudesse ocasionar isso. Na verdade, essa perda de liderança traz essa consequência, porque, quando você tira a cabeça pensante, o corpo como um todo não tem mais uma estratégia de ação, ocasionando esses ataques. E uma outra ideia também é o fato da facção rival tentar perceber, entre aspas, o melhor momento para sobrepor-se.

 

"É o que eu digo: quando uma cadeira tá desocupada, sempre vai ter alguém pra tentar sentar. Agora, a dificuldade dele é de orquestrar essa facção, porque o cara já não tem tanta expertise".

 

OP: Já que todas os chefes foram presos, houve alguma substituição?

Harley: Hoje, todas as lideranças estão presas, com exceção de uma pessoa, que é o Francinélio Oliveira e Silva, conhecido como Geleia. Ele recebeu o benefício da tornozeleira eletrônica, com a saída temporária, e, duas horas depois, ele a rompeu e até hoje está em local ignorado. A gente trabalha hoje na tentativa de capturá-lo e, dessa forma, ter a absoluta convicção de que todos os líderes se encontram encarcerados. A questão da substituição, a gente sabe que é normal. É o que eu digo: quando uma cadeira tá desocupada, sempre vai ter alguém pra tentar sentar. Agora, a dificuldade dele é de orquestrar essa facção, porque o cara já não tem tanta expertise.

OP: Na monografia, o senhor afirma que a facção, em 2019, tinha cerca de 25 mil integrantes. Existe perspectiva de diminuir esse número? O que os dados de 2020 mostraram com relação a isso?

Harley: Isso é um um fato que a gente tirou de entrevistas com investigados e que a gente teve mais ou menos essa ideia. Hoje, o corpo do sistema penitenciário gira em torno de 27 a 28 mil presos. E o que a gente percebe? Existe essa dificuldade, dessa sobreposição da facção rival, e a gente já não vê tanto batismo (de novos faccionados) como havia nos anos anteriores. E, ao mesmo tempo, é o que a gente diz, embora tenhamos feito um trabalho de excelência na captura dessas lideranças, hoje, a gente se preocupa em desarticular a facção rival.

 

"No meu ponto de vista, é uma utopia falar em fim do crime. E a facção, não só no Ceará, mas no Brasil como um todo, é algo que já está enraizada. O que devemos ter é uma sobreposição, um mando da Polícia Judiciária, do Estado sobre as facções, mostrar que quem manda é o Estado".

 

OP: Como o senhor ver a questão do fim da GDE? É realmente algo que pode se vislumbrar no horizonte?

Harley: No meu ponto de vista, é uma utopia falar em fim do crime. E a facção, não só no Ceará, mas no Brasil como um todo, é algo que já está enraizada. O que devemos ter é uma sobreposição, um mando da Polícia Judiciária, do Estado sobre as facções, mostrar que quem manda é o Estado. E isso é uma queda de braço, que eu costumo dizer, ocorreu em janeiro de 2019 (série de atentados em retaliação às medidas de endurecimento nos presídios), em que o crime quis ter uma queda de braço, mas o Estado, mais uma vez, mostrou que quem manda é o Estado. Então, qual é o desafio? A gente sabe que o crime vai existir, aí, nós temos que controlá-lo e trazer aquela paz que a sociedade merece.



 

 Como Funciona a GDE 

O ingresso

 

Em 2018, no contexto de uma investigação sobre expulsão de moradores no bairro Jangurussu, um integrante da GDE deu detalhes à Polícia Civil sobre como se dá o ingresso na facção.

Conforme ele, o "bastismo" ocorre mediante convite de um "padrinho", integrante já batizado na facção, que bate uma foto do interessado e envia para membros de uma instância superior. Estes aprovam ou não o ingresso. "Depois que é batizado só sai morto ou se for para a igrea, que eles chamam 'entrar na benção'", afirmou a fonte, de identidade preservada.

Outro integrante da GDE, também em depoimento à Polícia Civil, em 2017, afirma que, para entrar na facção, não se pode ter "erro no crime como roubar na área e estuprar, além de bater em mãe ou roubar ônibus". Ele ainda afirmou que pagar todo mês entre 50 e 15 reais para a "caixinha" da facção, através de uma contra que não quis dizer o número.

 





 

Os fundadores


Além de Yago Gordão, o Relint nº 364/2020, da Coint/Sap, afirma que fundaram a GDE: Edgly Dutra Barbosa, conhecido como Padeiro; Marcos André Silva Ferreira, conhecido como Branquinho; Francisco de Assis Fernandes da Silva, conhecido como Barrinha; Francisco Tiago Alves do Nascimento, conhecido como Tiago Magão; Deijair de Souza Silva, conhecido como De Deus; e Ednal Braz da Silva, conhecido como Siciliano. Todos eles estão presos.

Na operação Reino de Aragão, deflagrada em dezembro de 2019, a Polícia Federal afirma que a GDE estava presente em cerca de 47 bairros de Fortaleza e em 56 cidades do Interior.

 





 

A estrutura

 

A monografia do delegado Harley Filho traz ainda um estudo detalhado da composição da Guardiões do Estado. Confira:

 

 

Abaixo, vêm diversos quadros, com funções diversas:

— Missão: arregimenta membros para a prática de crimes contra rivais;

— Disciplina: apura condutas de membros;

— Punição: desdobramento da disciplina. Responsável pela sanção do faccionado;

— Esclarecimento: trata de controvérsias internas, levadas a instâncias superiores para que sejam explicados os pormenores

— Geral da liberdade: coordena os "sintonias" em liberdade, ou seja, chefes locais;

— Progresso: responsável por praticar crimes que tragam lucro para a facção;

— Edital: Responsável por levantamento de informações para ações como atentados;

— Resumo: responsável, por após levantamento do "edital", deliberar sobre os crimes;

O delegado ainda cita a existência de outras células da facção como: Geral das Caixinhas, Fortalecimento, Sintonia das Cadeias, Sintonia das Ruas, Geral das Cadeias, Sintonia dos Mapeamentos — Batismo

 





 

Peça já apreendida diversas vezes pelas forças de segurança do Estado com diretrizes e regras para os integrantes da facção. Reproduzido tal como redigido pelos criminosos.

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