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Mães do semáforo: a rotina de mulheres que buscam sobrevivência no trânsito
Reportagem Especial

Mães do semáforo: a rotina de mulheres que buscam sobrevivência no trânsito

Conheça as histórias de algumas das mulheres que estão nos sinais pedindo dinheiro para alimentar os filhos. Algumas tornaram-se pedintes durante a pandemia. Houve caso de quem saiu de relacionamento violento para tirar o sustento dos cruzamentos. Elas relatam o acesso ao gás de cozinha como desafio para sobreviver

Mães do semáforo: a rotina de mulheres que buscam sobrevivência no trânsito

Conheça as histórias de algumas das mulheres que estão nos sinais pedindo dinheiro para alimentar os filhos. Algumas tornaram-se pedintes durante a pandemia. Houve caso de quem saiu de relacionamento violento para tirar o sustento dos cruzamentos. Elas relatam o acesso ao gás de cozinha como desafio para sobreviver
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30 segundos separam as mães do sinal dos motoristas nas avenidas de Fortaleza. Às vezes, elas não conseguem chegar até o fim da fila de carros; o tempo acaba, a chance de algumas moedas também. A reportagem circulou por cinco das mais movimentadas avenidas da Capital: Senador Virgílio Távora, Oliveira Paiva, Domingos Olímpio, Antônio Sales e Desembargador Moreira. No percurso, foram encontradas mais de 20 mulheres nessa situação. Com relatos de humilhação e desespero, elas contam que foi a fome dos filhos e o desemprego na pandemia que as empurraram para a rua.

Antes mesmo de a Covid-19 chegar, na capital cearense eram as mulheres as principais chefes de família. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 484 mil mulheres estavam nessa situação, 67 mil a mais do que os homens (417 mil). Com a pandemia, muitas ficaram desempregadas: 84 mil mulheres no primeiro trimestre do ano passado.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, revelou que, em 2020, a Insegurança Alimentar e a fome no Brasil retornaram aos patamares próximos de 2004.

Made with Flourish

Cerca de 19 milhões de brasileiros passaram a ter em seu cotidiano a experiência da fome. Essa insegurança alimentar é quatro vezes maior em trabalhadores informais e seis vezes maior entre desempregados. Em 2018, o Ceará era o oitavo estado brasileiro com maior número de famílias em situação grave de segurança alimentar, com 175 mil famílias nessa situação, conforme os dados do IBGE.

Antônia Adriana Teixeira, Natalia Nunes, Maria Ester, Claudiana Monteiro e Silvia Fernandes dão rostos às estatísticas. Essas mulheres são mães solo e desempregadas, que tiveram que buscar ajuda na rua para alimentar os filhos. Carregando pedaços de papelão, percorrem o asfalta quente das avenidas Antônio Sales, Desembargador Moreira, Senador Virgílio Távora e Oliveira Paiva, respectivamente. Tentando — às vezes em vão — sensibilizar motoristas em troca de algumas moedas.

 

 

As mães dos sinais

 

Antônia Adriana Teixeira(Foto: NATALI CARVALHO/ESPECIAL PARA O POVO)
Foto: NATALI CARVALHO/ESPECIAL PARA O POVO Antônia Adriana Teixeira

Aos 48 anos, Antônia Adriana Teixeira passou a pedir dinheiro na avenida Antônio Sales. Seus três filhos mais novos, Creudo, Ana Kelly e João Vitor, costumam acompanhá-la. Quando conversamos com ela, apenas os dois últimos citados estavam presentes. Antes da pandemia, ela trabalhava vendendo produtos de limpeza, indo de porta em porta. A fome a empurrou de vendedora para pedinte.

“Tem dia que tem comida e tem dia que não tem, hoje foi um dos dias que eles [filhos] me pediram um pedacinho de pão e eu não tinha. Então eu venho para cá [sinal] para conseguir pagar o aluguel e comprar algo para comer. Mas, eu não levo meus filhos para o sinal, eles ficam brincando na praça, banhadinhos, limpinhos, brincando”, afirma.

Diferentemente de Antônia, Natalia Nunes vai sozinha para a avenida Desembargador Moreira. Morando em Maranguape, percorre 27 km até a Capital. Após se separar, ela e os três filhos passaram a morar com a mãe dela, já idosa, e a irmã de Natália, que é mãe de uma criança pequena. Ela explica que se tornou “o alicerce da casa”, devido às condições das outras familiares.

Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN)(Foto: Rede PENSSAN)
Foto: Rede PENSSAN Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN)

“Infelizmente, eu não achei outro meio além de pedir ajuda aqui no sinal, porque não tem como numa época dessas arrumar emprego, foi a única forma que eu consegui enxergar para ajudar em casa. Já teve vezes que um ovo teve que ser dividido para cinco pessoas. Meus filhos não tinham nada para comer e eu fiquei desesperada… Foi a forma de trazer alimento para dentro de casa, porque eu não consigo roubar, sabe? O jeito é pedir”, explica.

Natália saiu de um relacionamento conturbado. Já Maria Ester, mãe de duas crianças, tornou-se pedinte quando pôs fim em um relacionamento violento em meio à pandemia. Após o marido sair de casa, a solução para ganhar algum dinheiro foi ir ao sinal da avenida Senador Virgílio Távora. "Ele saiu de casa, e eu fiquei pagando as contas, sozinha. Eu recebo um auxílio do governo, mas que não dá para muito. Eu já cheguei a passar fome."

Claudiana Monteiro compartilha a mesma avenida de Maria Ester, e afirma que mais de 10 mulheres dividem o mesmo local, alternando apenas os sinais e dias em que pedem. Ela explica que passou sempre por dificuldades na vida, mas só depois da pandemia passou a pedir nas ruas.

A renda da população do Ceará foi afetada, segundo pesquisa(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA A renda da população do Ceará foi afetada, segundo pesquisa

“Eu não estava mais conseguindo alimentar minhas três filhas. Às vezes tem para comer, às vezes não, e é muito chato ver os filhos passando fome. Só eu, mãe solteira. Sou sozinha. Tem dia que comemos só arroz com ovo. Ontem foi o dia que não tinha mais gás, e eu já vim para tentar juntar. Eu e minha filha passamos fome, fomos dormir sem jantar. Eu não como para dar a elas.”

Entre as várias mulheres e até crianças caminhando no sol das 11h30min pela avenida Oliveira Paiva quando o sinal fechou estava Silvia Fernandes de Alencar, mãe de duas filhas adolescentes. Carregando um copo d’água em uma mão, a outra se mantinha estendida aguardando uma moeda que podia vir do outro lado do vidro. Após perder o emprego de cozinheira em uma fábrica de estofados, ela tentou a sorte de ser vendedora de pipocas no sinal, até que não conseguiu mais comprar a mercadoria e acabou na Oliveira Paiva pela promessa de que aquele era um local em que os motoristas ajudavam.

“Estou aqui porque perdi meu trabalho na pandemia, e eu preciso pagar água, aluguel, luz e botar comida na mesa. Minha vida depois da pandemia ficou péssima, só não ficou pior porque ainda tenho saúde”, relata.

 

 

Auxílios do Governo são insuficientes

 

Natalia Nunes(Foto: Natali Carvalho/especial para O POVO)
Foto: Natali Carvalho/especial para O POVO Natalia Nunes

Todas as mães com quem O POVO conversou recebem algum auxílio governamental. O maior valor relatado é de R$ 300. Das principais angústias, o gás de cozinha esteve presente em todos os depoimentos, custando quase R$ 100. Elas afirmam que passam dias sem tê-lo em casa, pois não conseguem comprar. “Recebo R$ 200 do governo, mas não dá para nada. Só o gás já leva metade”, contou Claudiana.

Com entrevistadas em horários e locais diferentes, o retrato da miséria e dificuldades financeiras dessas mulheres provocou em todas a ideia de construírem fogão à lenha, a que elas nomeiam de fogareiro. O que as impede de construírem é justamente os filhos pequenos, pois temem que eles acabem se ferindo. Mas, o que arrecadam nas ruas também não é o suficiente para viverem com o mínimo de garantia. Em alguns dias, chegam a ganhar até R$ 100. Em outros, não passam de R$ 20, conforme relatam.

O Ministério Público do Estado do Ceará informou, em nota, que vem acompanhando e fiscalizando as políticas destinadas às pessoas em situação de rua e de moradia, assim como os programas de capacitação para o trabalho, renda e políticas de emprego. Conforme explica, o fenômeno da presença de mulheres pedindo dinheiro no sinal foi agravado pela crise econômica amplificada pela pandemia.

“O empobrecimento da população deve ser enfrentado pelas políticas públicas desenvolvidas pelas pastas competentes, notadamente da Assistência Social e Desenvolvimento Econômico, podendo o MP ser um agente indutor, o que tem feito de uma forma transversa”, diz o texto.

 


A dificuldade nas ruas

 

Embora exista o preconceito de que quem pede dinheiro tem preguiça de procurar emprego, todas as mulheres entrevistadas disseram preferir estar trabalhando a sobreviver naquela situação. Elas relatam humilhações no lugar de socorro.

“Teve uma vez que eu chorei muito, eu estava pedindo e uma mulher disse coisas comigo. Foi tão dolorido que eu fiquei na frente do carro dela, parei ela e contei minha vida. Ela começou a chorar e me pediu desculpa”, relata Antônia.

Silvia Fernandes de Alencar em sinal na avenida Oliveira Paiva(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Silvia Fernandes de Alencar em sinal na avenida Oliveira Paiva

Quando as humilhações não são explicitadas verbalmente, elas vêm de uma forma que, para Silvia, é ainda pior. “Muitas vezes as pessoas nem abrem o vidro do carro para saber o que queremos. Isso às vezes magoa, me sinto humilhada. Não devido às palavras, mas porque eles nem ligam para quem está pedindo ajuda, parece que somos invisíveis”, explica.

Da imensa lista de dificuldades que essas mães apresentam, está também o cansaço diário pela condição de miséria, que as obriga a se submeterem a horas no sol, sem alimentação, hidratação e descanso.

“Às vezes eu procuro força que eu não tenho, ter que criar força é muito cansativo. Tem dias que não dá vontade de fazer nada, a minha rotina é essa. Quando venho para o sinal, eu saio de casa com o café da manhã, e se aparecer quentinha é que como”, detalha Natalia.

Mesmo passando o dia sendo submetidas ao sol, fome e humilhação nas avenidas, o valor arrecadado nem sempre é suficiente. O que é inversamente proporcional, afinal os dias em que apuram menos é o que elas precisam passar mais tempo para tentar compensar. “Eu chego umas 6, 7 da manhã e volto de tarde. Tem vezes até que vou embora à noite. Não gosto de estar aqui, o pessoal manda trabalhar, sou muito humilhada. Mas mesmo assim tenho que estar aqui, porque preciso”, afirma Claudiana.

 

 

Falta dados sobre situação de mulheres em situação de miséria em Fortaleza

 

Maria Ester Sousa Barros, no semáforo da avenida Senador Virgílio Távora(Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Maria Ester Sousa Barros, no semáforo da avenida Senador Virgílio Távora

O motorista de aplicativo Sebastião André considera que antes da pandemia o número de mulheres pedindo dinheiro com os filhos nos sinais era muito menor, na percepção dele. Trabalhando há três anos rodando Fortaleza, ele percebe a concentração de pedintes maior nos bairros mais ricos.

“Antes de ser motorista de aplicativo, eu trabalhava para a antiga Coelce. Eu rodava a cidade inteira. E sempre encontrava gente pedindo, mas não como agora. Aumentou muito depois da pandemia, em todo ponto aparece alguém, mulheres com filhos também aumentou… principalmente em bairros mais ricos”, relata.

Embora seja visível o aumento de mulheres nessa situação após a pandemia, a Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) não possui nenhum levantamento ou programa voltados para elas. Porém, está previsto um censo da população em situação de rua para este ano, fazendo um recorte de gênero desta população. Apesar de algumas das mulheres entrevistadas não viverem na rua, a pasta afirmou que, por usarem as ruas na condição de pedintes, a ideia é, possivelmente, aproveitar o momento do censo/pesquisa para um diagnóstico também dessa realidade.

Cenário semelhante se repete na Secretaria Municipal do Desenvolvimento Econômico (SDE), que desde 2015 não produz nenhuma pesquisa voltada para gênero e desemprego em Fortaleza. A pasta explicou que não realiza pesquisas de campo e depende do censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para analisar os dados.

Essa falta de informações envolvendo esse perfil de mulheres também foi questionado ao MPCE. O órgão respondeu que uma pesquisa pelo critério de "mulheres mães" deve ser empreendida. “Assim, iremos encaminhar também essa demanda especializada para os órgãos de execução competentes para analisarem e promoverem os desdobramentos cabíveis para a efetivação dos direitos e preservação da dignidade”, informa.

As duas secretarias mencionadas afirmaram que estão em fase final de planejamento para uma ação intersetorial, que já iniciou o Programa Fortaleza Capacita. “Para que mulheres que não possuem ou que perderam a vinculação com empregos formais ou temporários, ou aquelas que tiveram seus negócios suspensos, em especial devido à pandemia, com destaque para as provedoras do lar, possam se capacitar para poder montar um pequeno negócio próprio”, destaca a SDHDS.

A Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres da Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social informou que planeja estratégias e ações para que as mulheres que participem do programa possam dar materialidade ao próprio negócio, fornecendo recursos e suportes para tal.

Natali Carvalho, do projeto Diversidade nas Redações, da Énois Conteúdo, especial para O POVO

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