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Paleontólogos apresentam o pterossauro mais completo do Brasil
Reportagem Seriada

Paleontólogos apresentam o pterossauro mais completo do Brasil

Encontrado na Bacia do Araripe, no Cariri, o fóssil do pterossauro Tupandactylus navigans foi resgatado do tráfico de fósseis em 2014; hoje, é o fóssil de pterossauro brasileiro mais bem conservado já escavado
Episódio 6

Paleontólogos apresentam o pterossauro mais completo do Brasil

Encontrado na Bacia do Araripe, no Cariri, o fóssil do pterossauro Tupandactylus navigans foi resgatado do tráfico de fósseis em 2014; hoje, é o fóssil de pterossauro brasileiro mais bem conservado já escavado
Episódio 6
Tipo Notícia Por
 
 

Imagine que você é um pesquisador e conhece uma espécie de bicho apenas por alguns crânios encontrados aqui e ali. Usando técnicas de comparação, você até consegue propor, com grande margem de acerto, como era o corpo daqueles animais; mas nada seria tão empolgante quanto vê-lo por completo: ossos e tecidos moles, a maioria deles ali, prontos para serem analisados.

Pois bem. Por muito tempo, a enorme crista e bico do Tupandactylus navigans (chamado de Tapejara navigans até 2007) eram as únicas pistas que os paleontólogos tinham do pterossauro caririense. Mas tudo muda nesta quarta-feira, 25 de agosto, com a publicação de um artigo na revista científica Plos One descrevendo o fóssil mais completo e bem preservado do Tupandactylus navigans, uma das 24 espécies de pterossauros encontradas na Bacia do Araripe, sítio paleontológico do Cariri.

O artigo foi coordenado pela paleontóloga Fabiana Costa, da Universidade Federal do ABC (SP), e tem como primeiro autor o Victor Beccari, da Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Paleontologia pela Nova School of Science and Technology (Portugal).

 

 

O grupo de tapejarídeos (do qual o Tupandactylus faz parte) também ocorreu no que hoje é a Espanha, o Marrocos e a China. No país asiático, os fósseis dos pterossauros também são bem completos, mas carecem de preservação de tecidos moles - como a queratina do bico e a membrana da crista.

Por isso, é até possível dizer que esse indivíduo é o ptero mais completo do mundo. Isso sem contar as investigações moleculares em andamento, que procuram possíveis traços de melanina na crista, como aconteceu com um Tupandactylus imperator, em 2019.

Ilustração do Tupandactylus navigans, agora o pterossauro com o esqueleto mais completo do Brasil.(Foto: Victor Beccari)
Foto: Victor Beccari Ilustração do Tupandactylus navigans, agora o pterossauro com o esqueleto mais completo do Brasil.

Além disso, os ossos faltosos do esqueleto - a ponta da cauda e algumas costelas - são bem menores, a ponto de nem prejudicarem na análise anatômica, destaca Felipe Lima Pinheiro, paleontólogo na Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e integrante da pesquisa.

Oriundo da Formação Crato (na Bacia do Araripe)o fóssil estudado pelo paleontólogo Victor Beccari, da Universidade de São Paulo (USP), tem mais de dois metros e meio de envergadura (ou seja, de uma ponta a outra das asas abertas), enquanto a crista no topo da cabeça tem meio metro de altura. No total, o pterossauro mede cerca de 1,40 metro - o que, comparado com outros pterossauros, nem é tão grande assim.

 

 

Mas apesar de os pterossauros serem conhecidos como os primos voadores dos dinossauros, o Tupandactylus navigans provavelmente não manjava tanto de voar. De acordo com Beccari, estudos de anatomia e comparações com outras espécies de pterossauros indicaram que o navigans passava mais tempo em terra firme, provavelmente alimentando-se de sementes e pinhos.

O voo era possível, sim, mas geralmente para fugir de possíveis predadores: parecido com o hábito dos pombos, que cismam em andar na rua e só planam para escapar dos carros em movimento.

 

 

 

Fóssil foi resgatado do tráfico em 2014

Mas sendo brasileiro, a história do esqueleto do pterossauro Tupandactylus navigans não começa hoje. Em 2014, ele quase foi retirado do Brasil pelo tráfico de fósseis, com destino à Europa, aos Estados Unidos e outros países do hemisfério norte. Graças a uma operação da Polícia Federal, ele foi interceptado junto a outros três mil fósseis contrabandeados no Porto de Santos (SP).

Após a operação, Tupa encontrou refúgio no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), integrando a exposição “Fósseis do Cariri”, no Museu de Geociências da universidade. Desde então, ele já tinha ganhado a fama de fóssil mais completo de um pterossauro do Brasil - só não tinha sido descrito ainda.

“Foi como uma vitória (contra o tráfico). Mas também foi estranho, porque se tudo fosse correto, talvez o fóssil estivesse no Cariri agora, sendo estudado por pesquisadores de lá”, comenta Victor Beccari. Para ele, houve também um grande peso de responsabilidade. Afinal, quando Victor começou a trabalhar com o espécime, ele ainda estava no segundo ano da graduação; e ele sabia, pela história do Tupandactylus, que ele precisava fazer um trabalho exímio.

Fóssil de Tupandactylus imperator leiloado em plataforma internacional.(Foto: Reprodução/Catawiki)
Foto: Reprodução/Catawiki Fóssil de Tupandactylus imperator leiloado em plataforma internacional.

“Ao mesmo tempo, foi muito bom ter um brasileiro descrevendo um fóssil geralmente descrito por alemães e britânicos”, comemora, fazendo alusão à dificuldade que o tráfico de fósseis impõe aos paleontólogos brasileiros. Quando esses materiais saem do Brasil, eles são vendidos para colecionadores de vários países do hemisfério norte e ficam limitados a coleções particulares, inviabilizando o acesso de brasileiros.

Os pesquisadores reforçam que os fósseis são patrimônio histórico e cultural do Brasil, além de serem grandes chamarizes para o turismo. É só imaginar o peso atrativo que há nos dizeres “pterossauro mais completo e bem conservado do mundo”: algo que, por muito pouco, não foi perdido para sempre, diz Felipe Pinheiro. “Parece que além da responsabilidade científica, tu tens uma responsabilidade social com aquele material”, comenta o paleontólogo.

 

 

 

Ciência contra a maré

Por trás da pesquisa, há ainda um tremendo esforço na análise do fóssil. Desde que Beccari viu pela primeira vez o esqueleto do Tupa. navigans, em 2016, ele tem trabalhado para garantir o máximo de detalhamento.

Por exemplo: o fóssil, encontrado em seis lajes de calcário, estava todo achatado, como é típico dos materiais vindos da Formação Crato. Para conseguir um modelo 3D dos ossos, Victor conseguiu submeter o material a uma tomografia no Hospital Universitário da USP. Com isso em mãos, o pesquisador pintou digitalmente osso por osso para um estudo mais detalhado do material - procedimento que durou três semanas. Tudo isso enquanto estudava e trabalhava como assistente em escolas, já que ele não tinha bolsa de iniciação científica.

Fóssil do Tupandactylus navigans na rocha, à esquerda, e, à direta o esqueleto organizado.(Foto: Victor Beccari)
Foto: Victor Beccari Fóssil do Tupandactylus navigans na rocha, à esquerda, e, à direta o esqueleto organizado.

“Mesmo que eu quisesse muito, nunca conseguia ter dedicação exclusiva. Não é uma situação agradável, até porque amor (à carreira) não me dá nutriente no final do dia”, desabafa. Ironicamente ou não, a notícia que evidencia o potencial científico brasileiro vem quase um mês após o apagão do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agência federal de fomento à pesquisa.

“Saber que, se eu voltar para o Brasil (atualmente, Victor faz mestrado em Portugal), as minhas perspectivas iam cair é bem triste. Ao mesmo tempo, eu valorizo muito mais a pesquisa brasileira. A gente vê que as pessoas estão lutando”, afirma. Ainda há muitas perguntas a se responderem em relação ao Tupa. navigans, mas os passos já estão sendo dados, mesmo contra a maré do governo.

 

  • Edição Fátima Sudário
  • Capa e ilustração Victor Beccari
  • Vídeo e imagem com montagem do esqueleto Victor Beccari
  • Concepção visual e recursos digitais Catalina Leite
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