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Um Nordeste inventado pela xenofobia que vai além das eleições
Reportagem Especial

Um Nordeste inventado pela xenofobia que vai além das eleições

Onda de ataques xenofóbicos contra Nordeste após primeiro turno da disputa presidencial de 2022 escancara preconceito enraizado na cultura brasileira. No Dia do Nordestino, O POVO celebra a cultura regional

Um Nordeste inventado pela xenofobia que vai além das eleições

Onda de ataques xenofóbicos contra Nordeste após primeiro turno da disputa presidencial de 2022 escancara preconceito enraizado na cultura brasileira. No Dia do Nordestino, O POVO celebra a cultura regional
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Em mais uma eleição marcada pelo acirramento (seja de ânimos ou de resultados), a região conhecida por “carregar o Brasil nas costas” se torna o centro do debate eleitoral por uma expressão de ódio bastante familiar e que mora nas subjetividades construídas ao longo da formação da sociedade brasileira: a xenofobia.

O eleitorado nordestino se tornou alvo de ataques xenofóbicos após o primeiro turno das eleições para presidente da República no último domingo, 2 de outubro: com todas as urnas do País apuradas, Lula (PT) liderou os resultados nos nove estados e teve 12,9 milhões de votos a mais em relação a Jair Bolsonaro (PL) na região.

A citação ao peso dos votos dos nordestinos começou ainda durante a apuração, quando, até então, Bolsonaro estava na frente. A partir da consolidação dos votos em todo o território, o cenário se inverteu e Lula passou a liderar.

Acompanhe no mapa como votaram os estados do Nordeste para presidente

 

O discurso do preconceito e da ignorância

Quando o resultado final confirmou o segundo turno (o petista com 48,43% dos votos e o atual chefe do Executivo com 43,20%), as mensagens ofensivas passaram a receber ainda mais destaque e entraram em uma crescente.

Um ex-jogador do Ceará, Fabrício Manini, chegou a incitar a violência e pedir que apoiadores de Bolsonaro atropelassem pessoas passando fome ou pedindo algum alimento “pro país não ter mais despesas com esses vermes” (sic).

Revoltada contra a maioria nordestina que votou em Lula, a advogada Flávia Moraes, vice-presidente da OAB Mulher em Uberlândia, postou um vídeo afirmando que não iria mais “alimentar quem vive de migalhas”.

Sobre o assunto

“Nós geramos empregos, nós pagamos impostos e gastamos nosso dinheiro lá no Nordeste. Não vamos mais ao Nordeste dar nosso dinheiro para quem vive de migalhas. Vamos gastar no Sudeste, no Sul ou até fora do país”, disse Flávia no vídeo, que viralizou e gerou revolta.

A advogada chegou a postar um pedido de desculpas quase tão ofensivo quanto a publicação feita, mas foi exonerada pela OAB e a Defensoria de Minas Gerais abriu uma ação civil contra ela, junto da cobrança de uma indenização de R$ 100 mil por danos morais coletivos.

O comentarista político Rodrigo Constantino, apoiador de Jair Bolsonaro, compartilhou em seu perfil no Twitter uma imagem do mapa do Brasil em que o Nordeste aparece pintado de vermelho, separado do resto do País e classificado como “Cuba do Sul”.

Na publicação, ele afirmou que “a parte do país que mais recebe assistencialismo decide sobre a parte do país que mais produz para o PIB”.

O próprio candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, reforçou o discurso em mais uma fala preconceituosa contra o Nordeste: três dias após o primeiro turno, o presidente citou que o analfabetismo da região seria uma explicação para a derrota sofrida nos nove estados nordestinos.

“Lula venceu em 9 dos 10 estados com maior taxa de analfabetismo. Você sabe quais são esses estados? No nosso Nordeste. Não é só taxa de analfabetismo alta ou mais grave nesses estados. Outros dados econômicos agora também são inferiores nessa região”, disse durante uma transmissão ao vivo.

Bolsonaro alegou que a votação massiva de Lula foi uma herança das gestões petistas: “Esses estados do Nordeste estão há 20 anos sendo administrados pelo PT. Onde a esquerda entra, leva o analfabetismo, leva a falta de cultura, leva o desemprego, leva a falta de esperança. É assim que age a esquerda no mundo todo”.


O discurso do ódio e a reação afirmativa

Camilo Santana (PT), ex-governador do Ceará e senador eleito com recorde de votos no Estado, rebateu: "Presidente, respeite os nordestinos! Somos um povo trabalhador e inteligente. E grato. Seu comportamento intolerante e desrespeitoso com o Nordeste não nos faz baixar a cabeça. Pelo contrário. Só aumenta nossa força para lutar e voltar a ser feliz de novo”.

Sobre o assunto

 

Izolda Cela(Foto: FáBIO LIMA)
Foto: FáBIO LIMA Izolda Cela

A governadora do Ceará, Izolda Cela, por sua vez, escreveu que “o presidente dá provas evidentes do que já se sabe: ele não conhece o Brasil e não tem respeito pelas pessoas. Infelizmente, o analfabetismo ainda é um problema brasileiro. Ele não sabe disso porque o Governo Federal não dialoga com estados nem com municípios”.

“O Ceará, estado do Nordeste, criou há mais de 15 anos o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), que vem sendo uma referência para estados e municípios em todo o Brasil. De acordo com os dados do Inep/MEC, o Ceará tem atualmente 87 das 100 escolas com melhores desempenhos no País nos anos iniciais do ensino fundamental”, continuou.

“O presidente, que deveria cuidar de todos os brasileiros, destila preconceito e xenofobia com o povo nordestino, sem o mínimo conhecimento. Uma pena! Inaceitável!”, lamentou Izolda.

Nas redes sociais, palavras como “Nordeste” e “nordestino” ficaram entre as mais comentadas, impulsionadas por usuários que atacavam e defendiam a região. A maioria das postagens associa a região à pobreza e nas buscas do Google esses termos também ficaram entre os mais procurados, principalmente ao longo da última semana, quando a discussão tomou conta da internet.

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Xenofobia é crime e você pode denunciar

A central da organização não-governamental de proteção dos Direitos Humanos Safernet Brasil recebeu 348 denúncias de xenofobia um dia após o primeiro turno das eleições, uma média de 14 registros por hora. Segundo a ONG, os indicadores de sua central de denúncias de crimes cibernéticos indicam que “as eleições são como um gatilho para o avanço do discurso de ódio”.

Ilustração de Carlus Campos celebra as singularidades dos nove estados que integram a região(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Ilustração de Carlus Campos celebra as singularidades dos nove estados que integram a região

Xenofobia é um crime previsto no artigo 140 do Código Penal, e incitar discriminação a nordestinos ou a pessoas de qualquer outra região pode resultar em reclusão de 1 a 3 anos, mais multa.

Se o crime for praticado na internet se torna qualificado e a pena varia de 2 a 5 anos de reclusão, mais multa. As denúncias do crime cometido nas redes podem ser feitas no site denuncie.org.br, a plataforma da Safernet que atua em parceria com o Ministério Público Federal.

A cantora paraibana e ex-BBB Juliette Freire usou seus perfis para incentivar a denúncia: “Você tira print, vai no site da Polícia Federal ou do Ministério Público Federal, preenche o formulário e faz sua notícia-crime. Já que não há respeito, resta pelo menos, Justiça”.

Apesar disso, essa não é a primeira eleição em que o Nordeste se torna alvo de xenofobia. Em 2018, na disputa entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, por exemplo, a cena se repetiu.

 

Eleições 2018 - Votação para Presidência do Brasil por Estado (Segundo turno)


 

Como entender a construção do pensamento xenofóbico em relação ao Nordeste

O pensamento xenofóbico não é novo, e suas raízes são muito antigas. É o que mostra o historiador Giuseppe Ponce Leon, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

“Na nossa história política recente, o mesmo discurso circulou com relação à população nordestina quando da eleição e reeleição de Dilma Rousseff em 2010 e 2014, respectivamente. Se retrocedermos mais um pouco, poderemos ver o mesmo posicionamento de políticos e da imprensa paulista quando Erundina (na época ainda era filiada ao PT), foi eleita prefeita da cidade de São Paulo em 1989”, indica.

Giuseppe Leon é professor do curso de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), onde ministrou a disciplina História do Nordeste(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Giuseppe Leon é professor do curso de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), onde ministrou a disciplina História do Nordeste

O estudioso toma como ponto de partida as teses defendidas por Durval Muniz, autor de “A invenção do Nordeste e outras artes” para explicar que o Nordeste e o nordestino miserável, seja na mídia ou fora dela, não são produto de um desvio de olhar ou fala, de um desvio no funcionamento do sistema de poder, mas “inerentes a um sistema de forças e dele constitutivo”.

“Esta formulação, Nordeste, se dá a partir do agrupamento de uma série de experiências tidas como caracterizadoras deste espaço histórico e geográfico e de sua identidade regional, o nordestino”, expõe.

Segundo Giuseppe, essas experiências históricas são agrupadas, fundadas em discursos teóricos, políticos, econômicos, literários, estéticos, cinematográficos e midiáticos que pretendem ser o conhecimento da região em sua essência.

Ele cita um trecho da canção Conheço o meu Lugar, de Belchior: “Nordeste é uma ficção, Nordeste nunca houve”. “Existem muitos nordestes, o de Gilberto Freyre, o de Djacir Menezes, o de Ariano Suassuna, de Patativa do Assaré, o das novelas da Rede Globo, o das especificidades e particularidades culturais de cada estado que compõem a região”.

Para o professor de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), Frederico de Castro Neves, qualquer forma de tentar estabelecer uma identidade ao “Nordeste” é a reprodução de preconceitos e generalizações que não correspondem à diversidade da vida social brasileira.

“A ideia de Nordeste é do início do século XX, logo após as grandes ondas de secas de 1877 a 1915. As migrações descontroladas e a exposição da miséria pela imprensa geraram a percepção de uma região onde predomina a miséria, o subdesenvolvimento, a seca e a política coronelista”, relata.

Autor de  "Nordeste em disputa: imprensa e construção de territórios regionais", Frederico de Castro Neves é professor do curso de História da Universidade Federal do Ceará (UFC)(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Autor de "Nordeste em disputa: imprensa e construção de territórios regionais", Frederico de Castro Neves é professor do curso de História da Universidade Federal do Ceará (UFC)

“No início, era apenas ‘Províncias do Norte’, ‘Norte’ ou mesmo ‘seca do Ceará’. Um jornal do Rio de Janeiro chegou a nomear como ‘região maldita’. Ao longo do desenvolvimento do regionalismo paulista, criou-se a ideia de São Paulo como a locomotiva do país, que carrega vagões vazios. O Nordeste passou a ser, segundo esses intelectuais paulistas, um desses vagões”, explicita.

De acordo com Neves, o desejo pelo separatismo, inclusive, é resultado desse preconceito: “A xenofobia pode fomentar ódios e ressentimentos que acabam por se tornar elementos que dificultam a convivência”.

“O ódio aos nordestinos tem a mesma origem que o ódio aos pobres, ou o ódio aos judeus, ou o ódio aos estrangeiros, o ódio aos esquerdopatas, etc. O que se deve observar é o "ódio", ou seja, a incapacidade de conviver com a diferença”, ressalta.  

A busca por um distanciamento cultural e racial entre Nordeste e Sul/Sudeste não é nenhuma novidade. As práticas discursivas e construções de identidades que enfocam nessas diferenças vêm sendo construídas, inclusive por meio da imprensa. Para o professor, o estigma do Nordeste reforçado pela imprensa sudestina é o da música de Luiz Gonzaga, Riacho do Navio.

 

"Sem rádio e sem notícia da terra civilizada" Trecho da música “Riacho do Navio”, de Luiz Gonzaga, parece nunca ter saído do imaginário de uma parte do País

 

Autor de “Nordeste em disputa: imprensa e construção de territórios regionais”, o professor Frederico de Castro Neves demonstra que a imprensa vem reproduzindo o preconceito por meio da reafirmação dos estereótipos do Nordeste, procurando qualificar identidades ao espaço regional.

“A miséria sempre é associada à região, como se todos na região fossem miseráveis. Essas generalizações são sempre estereotipadas e reafirmam preconceitos, mesmo quando se propõem a dizer o contrário”, explana.

O historiador interpreta que “se a imprensa sudestina procura vincular a vitória de Lula a uma região de analfabetos, como faz o presidente Bolsonaro, a imprensa nordestina procura fazer o contrário, ou seja, vincular a vitória de Lula a uma opção inteligente e politicamente correta... do Nordeste”.

No ponto de vista do professor Giuseppe, da UFRPE, da mesma maneira que Bolsonaro utiliza a mídia e as redes sociais para disseminar discursos de ódio contra os nordestinos, estes mesmos meios estão sendo utilizados para circular um “contra discurso” que enaltece a identidade nordestina.

Por coincidência, esses ataques, impulsionados, inclusive, nas falas do próprio presidente da república, acontecem às vésperas do Dia do Nordestino, que é comemorado neste dia 8 de outubro.

Sobre o assunto

O professor Giuseppe retoma a questão na perspectiva de enaltecer aspectos positivos que moldam as identidades e subjetividades nordestinas: “E nisso podemos citar grandes nomes nordestinos na literatura, nas artes, na ciência, na política, como José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Science, Zeca Baleiro, Lenine, Paulo Freire, Luiza Erundina”.

“Que nesse dia seja um momento de dar visibilidade a esses ilustres, positivando a diversidade cultural que compõe o Nordeste”, finaliza. 

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