Desde 2021, pelo menos 13 prefeituras cearenses foram alvos de operações do Ministério Público do Ceará (MPCE) que apuram suspeitas de irregularidades nas gestões municipais. Levantamento feito pelo O POVO, considerou o fluxo de ações realizadas pela Procuradoria de Justiça dos Crimes contra a Administração Pública (Procap), braço do MPCE responsável pela prevenção e repressão de crimes contra a administração pública.
Foram ao menos 21 operações da Procap registradas entre o início de 2021, primeiro ano de gestão dos prefeitos eleitos no ano anterior, e o último dia 25 de outubro. Só em 2023, foram apreendidos pelo menos R$ 644 mil, além de US$ 11,4 mil (o equivalente a R$ 57,3 mil na cotação atual) e € 3,1 mil (correspondente a R$ 16,7 mil na cotação atual). Somados, os valores ultrapassam R$ 700 mil.
Os valores apreendidos são sempre depositados em conta judicial atrelada ao processo, em banco público, e ficam à disposição da Justiça. No caso das moedas estrangeiras, ocorre a conversão para o Real, feita pelo banco, e, posteriormente, há o depósito na conta.
Em seis municípios alvos de investigações da Procap, o MPCE pediu à Justiça o afastamento dos prefeitos, o que foi atendido pelo Judiciário. Os gestores eleitos em Pacatuba, Itaiçaba e Santa Quitéria continuam afastados dos respectivos cargos ainda hoje.
Nos casos de Acopiara, Hidrolândia e Catarina, os prefeitos retornaram ao poder após o fim do prazo inicial de afastamento ou de forma antecipada, via decisão judicial.
Entre os crimes mais comuns apurados pela Procap desde 2021 estão: peculato, fraude em licitações, corrupção e lavagem de dinheiro, por exemplo. É importante ressaltar que a atuação jurisdicional da Procap está sempre condicionada à presença, na condição de investigado, de uma autoridade com prerrogativa de foro perante o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE).
Um dos casos mais emblemáticos ocorreu em Pacatuba, em abril deste ano, quando o prefeito Carlomano Marques (MDB) e oito secretários - que compunham mais da metade do total de pastas da gestão - foram presos temporariamente e afastados dos respectivos cargos por suspeita de irregularidades na contratação de empresas.
A Justiça afastou os gestores e determinou o encerramento imediato dos contratos da Prefeitura de Pacatuba com empresas investigadas. Segundo o MPCE, são investigadas irregularidades em contratos que chegariam ao montante de R$ 19 milhões, feitos sem licitação, em suposto esquema de lavagem de dinheiro (ver gráfico).
A suposta fraude começaria com a divisão do que seria um contrato de valor elevado, que exigiria licitação, em vários contratos menores, de valor que dispensam a realização do certame. Conforme as investigações, no momento em que os integrantes da Procap iniciaram as inspeções em Pacatuba, os pagamentos aos fornecedores investigados começaram gradualmente a cair.
Na época das prisões, O POVO esteve no município e acompanhou o clima de incertezas diante do afastamento dos gestores. Moradores do município ouvidos pela reportagem ressaltavam a queda na qualidade dos serviços prestados e das estruturas dos equipamentos públicos.
Pressionados pela população, no dia seguinte das prisões, a Câmara Municipal deu posse ao vice, Rafael Marques (de mudança para o PSB), sobrinho de Carlomano. Em outubro, a Procap pediu a renovação do afastamento do prefeito e dos secretários.
A defesa de Carlomano disse esperar que a prorrogação não fosse acolhida. “Confiamos na serenidade do Judiciário para que não haja nenhuma prorrogação e que o sufrágio legítimo das urnas seja respeitado com a manutenção do eleito na função”, manifestou. A Justiça, no entanto, deferiu o pedido de afastamento feito pelo MPCE por mais 180 dias.
Outro caso que chamou atenção ocorreu em Acopiara, onde o prefeito Antônio Almeida Neto (MDB) foi afastado e retornou ao cargo mais de uma vez. Ele deixou a administração municipal em outubro de 2022 após ser alvo de operação do MPCE que apurava suspeitas de crimes de corrupção, fraude em licitações, falsidade ideológica, associação criminosa e lavagem de dinheiro.
O gestor retornou ao cargo em março deste ano, após decisão da Justiça. Três meses depois, em junho, o prefeito foi afastado novamente, por 180 dias, após nova operação do MPCE.
O órgão destacou investigação de possíveis crimes envolvendo a gestão e representantes de duas cooperativas que prestavam serviço à Prefeitura. O contrato, que teve início ainda em 2019, teria movimentado pelo menos R$ 48 milhões dos cofres públicos. A Justiça determinou a suspensão dos contratos com as referidas cooperativas.
Em setembro, Antônio Almeida anunciou que retornaria ao cargo, após decisão judicial que acatou ação da defesa. O POVO questionou o TJCE, que confirmou o retorno do gestor às funções junto à Prefeitura de Acopiara. Almeida celebrou nas redes sociais: “Quero agradecer a todos que rezaram, oraram, se preocuparam e choraram, estamos de volta".
O número de operações não reflete o total de municípios onde há investigação da Procap. Em Várzea Alegre, por exemplo, está em curso uma ação penal, que corre em segredo de Justiça, contra o prefeito e outras 17 pessoas, sendo 11 delas ex-agentes públicos.
“A Procap está comprometida em combater a corrupção e outros crimes que afetam a administração pública, e seu trabalho continua em andamento para garantir a justiça e a transparência no setor público”, ressaltou o órgão em nota enviada ao O POVO.
A menos de um ano das eleições municipais de 2024, o balanço de ações envolvendo gestores municipais e agentes públicos investigados pela Procap ganha ainda mais relevância. Tendo em vista que os candidatos vão às urnas em 6 de outubro do ano que vem, cabendo aos eleitos tocar as administrações municipais a partir de 2025.
O órgão explica que a atuação preventiva, sobretudo no início e no final de mandatos de Executivos municipais, se dá devido a observância de desmontes da máquina promovidos por gestores em fim de mandato e de contratações diretas feitas por prefeitos em início de mandato que decretam emergência, sem necessidade real, como forma de driblar licitações.
Qualquer pessoa pode reportar um fato à Procap, que tem jurisdição para a apuração de crimes contra a administração pública praticados por agentes públicos estaduais e municipais e/ou terceiros em situação de coautoria ou participação, que gozem de foro privilegiado. No município de Santa Quitéria, um dos alvos da Procap neste ano, a investigação teve início a partir de representação feita por vereadores da cidade.
Em outros casos, há uma colaboração entre diversos órgãos, dentre os quais está o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE). Dentre as operações destacadas no levantamento do O POVO, em Itaiçaba e Morrinhos, as investigações tiveram início com o repasse de informações da corte de contas, que monitorava a execução de contratos e licitações.
Na prática, o tribunal, que é vinculado e atua como auxiliar do Legislativo, verifica como o orçamento das prefeituras tem sido gasto. Nem tudo que o órgão encontra de irregularidades configura crime, mas há, em muitos casos, indícios que chamam a atenção dos técnicos.
As compras públicas precisam seguir parâmetros e o descumprimento deles acende um sinal de alerta. “Nós conseguimos ter parte desse conhecimento que trata muito mais sobre a gestão de recursos e que, eventualmente, pode ajudar a identificar outros problemas. Pode ajudar, por exemplo, o Ministério Público a entender que além de ser um problema na gestão, pode ser algo que se enquadre como um crime”, ressaltou Carlos Nascimento, secretário de Controle Externo do TCE-CE, em entrevista ao O POVO.
Nascimento explica que algumas investigações podem acontecer com a colaboração de três ou mais órgãos como MPCE, TCE e a Polícia Civil, por exemplo.
“É natural e até corriqueiro que tanto a Polícia como o Ministério Público, eventualmente, ao ler os nossos relatórios também busquem informações que sirvam como insights para eventuais investigações. Eles nos buscam sobre alguns questionamentos que eles têm sobre uma movimentação financeira ou algo que pode apresentar ali um sinal vermelho, um sinal amarelo, de que algo pode estar acontecendo”, concluiu.
Outros dois casos envolvendo prefeitos cearenses nos últimos meses estão sendo observados pelo MPCE, embora não envolvam a Procap. São os casos dos prefeitos ‘sumidos’ de Limoeiro do Norte, José Maria Lucena (PSB), e de Tianguá, Luiz Menezes (PSD).
Ambos são suspeitos de se ausentar de suas cidades por tempo superior ao permitido, sem observar a legislação ou passar o cargo para os vices, com quem romperam politicamente. As ausências envolveriam problemas de saúde dos gestores.
Em Limoeiro do Norte, o MPCE chegou a pedir o afastamento de Lucena e a devolução de valores referentes à remuneração do prefeito, após meses de um imbróglio que envolveu as denúncias de ausência.
No último dia 11, o prefeito solicitou afastamento do cargo por 120 dias. O pedido ocorreu dias após a 1ª Procuradoria de Justiça de Limoeiro do Norte, pedir o afastamento de Lucena, a fim de evitar ilícitos diante da ausência do gestor.
O promotor Felipe Carvalho de Alencar solicitara ainda a devolução de R$ 166 mil, bem como pagamento de multa no mesmo valor, totalizando R$ 333 mil sob a acusação de improbidade administrativa.
Durante o impasse, O POVO viajou a Limoeiro do Norte e não conseguiu localizar o prefeito. O resultado da viagem foi citado na reportagem: Sussurros, desconforto e salas vazias: um dia na cidade em que ninguém vê o prefeito.
Em Tianguá, o MPCE afirmou ter provas da ausência do prefeito Luiz Menezes por tempo superior ao permitido por lei e cobrou providências do Legislativo, a quem caberia julgar a referida ausência. No último dia 16 de outubro, o órgão enviou à Câmara de Tianguá, documentos que comprovariam a ausência do prefeito.
A promotora Anna Celina de Oliveira Nunes Assis, titular da 7ª Promotoria de Justiça de Tianguá, apontou que o prefeito está internado há mais de um mês em um hospital de Fortaleza, superando o tempo permitido pela Lei Orgânica do Município. Pela legislação, está estipulado que para se ausentar do município por prazo superior a 10 dias o gestor deveria solicitar autorização da Câmara, o que não teria ocorrido.
O MPCE reforçou que, após instaurar inquérito sobre o caso, tentou notificar o gestor por 16 dias consecutivos, mas não conseguiu encontrar Menezes. Foram feitas ainda tentativas de contato via WhatsApp, mas sem sucesso. Na ocasião, também foi enviada documentação à Polícia Civil para instauração de inquérito contra quatro servidores da gestão que teriam praticado crime de falso testemunho, segundo o MPCE.
No início deste mês, a Câmara de Tianguá aceitou denúncia e iniciou processo para apurar o caso. A manobra para eventual afastamento esbarrava no fato de que a maioria dos vereadores integrava a base do prefeito.
Recentemente, houve movimentação da oposição para dialogar com parlamentares governistas. Isso resultou numa virada de rumo no Legislativo, que aceitou denúncia no último dia 5 de outubro e iniciou processo que pode culminar na cassação do prefeito Luiz Menezes.
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