Fama, casas de luxo e salários altos. É assim que parte do público enxerga a vida de um jogador profissional nas Séries A e B do futebol brasileiro. Essa percepção não está errada — muitos realmente desfrutam desse status e padrão de vida. No entanto, a rotina desses atletas vai além do glamour e envolve uma série de aspectos que costumam passar despercebidos.
Hoje, as atividades extracampo ganharam relevância e, cada vez mais, exigem a participação de profissionais especializados que, até alguns anos atrás, não faziam parte do cotidiano dos atletas. Na estrutura conhecida como
"Para ser um atleta de alto nível é preciso o trabalho destes profissionais por trás das quatro linhas. Sabemos que hoje os jogadores podem se destacar por sua habilidade natural, mas ela só vai ser aprimorada através destes profissionais, que estudam e podem explorar todo esse potencial. [...] Não é só o que acontece nos treinamentos, é preciso uma rotina regrada, seja de saúde, alimentação, sono", diz Éderson, com exclusividade ao O POVO. O volante se destacou no Fortaleza em 2022, hoje é um dos grandes nomes da Atalanta, da Itália, e já até acumula passagens pela seleção brasileira.
Com o processo de profissionalização crescente no esporte nacional, os jogadores se veem na necessidade de contar com uma equipe de suporte multidisciplinar para gerir suas carreiras de maneira eficiente e sustentável.
"É de extrema importância ter um estafe cuidando de você fora do clube. Quando um jogador tem fisioterapeuta e preparador físico, ele sai na frente. A gente muda a rotina, principalmente sono, alimentação e hidratação para evitar erros ou lesões", enumera o meia Lucas Crispim, ex-Fortaleza e atualmente no Buriram United, da Tailândia.
Além dos ex-tricolores, o meia Lucas Mugni, do Ceará, também ressaltou a importância de ter um acompanhamento especializado além do clube. No caso do argentino, ele destacou o trabalho psicológico feito focado no ambiente esportivo.
“Tenho um profissional (psicólogo) que me acompanha, que é mais como um guia para mim. (Ele) Me ajudou muito. Decidi que não iria me considerar um mal ou bom jogador. Ano a ano, iria trabalhar. Trabalhar para me superar. Quero dar minha melhor versão. Estou querendo me superar, aceitando as dificuldades", disse ao O POVO em agosto.
Donos de boas remunerações — nos campeonatos de nível mais alto —, os jogadores de futebol de ponta estão cada vez mais interessados em como administrar suas finanças. Prática que não era tida como costume em décadas passadas.
O contador Adalto Laranjeira atende a jogadores que atuam em clubes cearenses. "Quando a gente olha para o futebol enquanto mercado, o atleta de alto nível precisa de um estafe formado por empresário, assessor pessoal, contador, assessor de investimentos, entre outros. A gente tenta explicar aos atletas tudo relacionado a tributos, quanto vai descontar do salário dele, o que ele precisa pagar", explica o profissional.
"O jogador que atua em um mercado de alto nível já é bem educado financeiramente. Antigamente, nós víamos muitas histórias de atletas que faliram, e eu acho que no futuro não veremos isso. Primeiro pelo potencial econômico; segundo, justamente por conta desse suporte que o jogador da atualidade tem", complementa.
Para Adalto, é natural que o atleta de futebol se preocupe em saber onde seu dinheiro está sendo gasto. "A maior dificuldade é fazer o atleta entender a legislação trabalhista, tributária e previdenciária brasileira, até porque não é simples nem para a gente. E o atleta quer saber o que são os descontos do salário dele, e ele está correto em querer saber isso", pondera.
O contador também revela de que forma os jogadores costumam investir parte dos seus vencimentos e conta como é feito o processo contábil em casos de carreiras curtas, como a de um atleta de futebol.
"Os jogadores, em sua maioria, preferem investimentos conservadores, já visando uma garantia para o futuro. A carreira de jogador é muito bem remunerada, mas curta. Nosso papel é deixar o jogador ciente de todas as obrigações mensais e anuais, não perder prazo e fazer o certo pelo certo. Temos que trazer segurança para o atleta, empresário e até para o contador do país dele", diz Adalto Laranjeira.
O psicólogo esportivo Joel Marinho tem como foco principal atender atletas e árbitros. Na sua visão, o futebol exige do jogador, além do físico e técnico, uma parte psicológica forte. Isso porque a cobrança é alta não só nos estádios, mas também nas redes sociais — onde são destilados comentários de ódio que, muitas vezes, afetam o psicológico dos atletas.
"Se não for trabalhado o controle de distrações, dificilmente o atleta vai conseguir ser mentalmente forte. Isso porque, nos dias atuais, as redes sociais dão acesso a todo e qualquer tipo de informação. Se eu, atleta, dou abertura de ficar olhando os comentários das redes sociais, certamente isso vai me abalar em algum momento. Para o jogador se manter forte mentalmente, é preciso entender os processos individuais e coletivos", comenta.
O profissional também destaca que o número de jogadores que procuram auxílio psicológico cresceu nos últimos anos, embora ainda haja resistência no meio.
"Existem atletas que se recusam a ter um acompanhamento dentro do esporte. Alguns não entendem que a psicologia está ali para ajudá-lo. Mas hoje a imensa maioria tem o conhecimento da importância da psicologia. O número desses que não querem é menor."
Calendário desgastante, viagens longas e constantes, gramados ruins. Tudo isso afeta o físico do jogador e, consecutivamente, o faz ter maior tendência a sofrer lesões. Portanto, cientes desses problemas, os atletas também têm recorrido a profissionais particulares para otimizarem o trabalho.
Especialista em prevenção de lesões no futebol, o fisioterapeuta Rodrigo Oliveira analisou o cenário atual do futebol brasileiro e criticou a forma como o esporte é tratado.
"O calendário brasileiro não favorece a performance. Estamos sempre tentando recuperar o atleta para que ele possa atingir o máximo de disponibilidade energética para poder ser exposto a um novo jogo. E, no meio disso, também há vários treinos que precisam ser executados. Isso sem contar qualidade de gramado, deslocamento. Temos que somar todas essas dificuldades, que, somadas, estragam o espetáculo. É ruim para o esporte", diz.
Rodrigo explica como é feito o trabalho diário com os jogadores. Com passagem por Ceará e outros clubes, ele já atendeu atletas como Thiago Galhardo, Lucas Crispim e Calebe — meia do Fortaleza que tenta superar um difícil histórico de lesões.
"Quando se trabalha individualmente, se estabelece algumas métricas, nós chamamos de KPI, que são índices chaves de performance. A partir disso, você começa a tentar desenvolver mudanças na rotina, na alimentação, no sono, na hidratação, melhorar a recuperação, prevenir lesão e, se tiver lesão, tratar. É um trabalho de muitas facetas e isso tem que se encaixar na rotina do atleta e da família dele."
Por fim, Rodrigo destacou a relação entre clubes e profissionais particulares. "Precisa ter confiança, respeito e ética. O fisioterapeuta particular, no meu entendimento, tem a obrigação de se comunicar com o clube, que tem que entender os interesses e particularidades do atleta. Tive experiências positivas e negativas com clubes brasileiros, mas os profissionais de bom nível entendem o papel do profissional particular e conseguem fazer um trabalho colaborativo. Por exemplo, tive uma ótima relação com a comissão do Fortaleza, onde me comunicava com chefe de fisioterapia, preparador físico etc."
Outra área que está em crescimento entre os atletas é a da performance física, que trabalha a melhoria de processos relacionados ao corpo focado em maior desempenho dentro das quatro linhas.
Porém, de acordo com o preparador físico Victor Fernandes, o foco não é resumido apenas na performance em campo, mas também na saúde do jogador.
"O ponto maior, além da performance, é a saúde. A gente sabe que trabalhar em alto rendimento, ser exigido no seu máximo, muitas vezes ultrapassa limites físicos e emocionais. Nosso trabalho vai além de fazer o jogador ter boas atuações, mas também ter uma vida saudável em casa com a família, com os companheiros e, principalmente, com ele mesmo", explica.
Victor trabalha diretamente com jogadores conhecidos nacionalmente, como Éderson, que atualmente defende a Atalanta, Lucas Mugni (Ceará), Osvaldo (Vitória), Felipe Jonatan (Fortaleza), entre outros.
Para Victor, a atividade mais relevante da performance é levar o atleta a trabalhar em cima do que é considerado "desconfortável" para ele, pois, com isso, a capacidade será aumentada no futuro.
"Cada atleta possui dificuldades de acordo com sua cultura, daquilo que ele criou como hábito desde a infância. Tem muitos atletas que têm problemas com peso, sono, excesso de treino etc. O mais importante do nosso trabalho é identificar as demandas específicas de cada indivíduo e trabalhar em cima do desconforto. Aquilo que é desconfortável é o que vai fazer com que ele saia do seu limite momentâneo e consiga aumentar a capacidade dele", finalizou o preparador.