A ideia do início de mais um ciclo de metas e objetivos é como remédio para o nosso estado físico e mental; afinal, somos a sociedade que está vivenciando a modernidade e seu progresso. Mas, em meio a essa passagem de tempo, você já se perguntou como você está?
Infelizmente, mesmo com muitos avanços, nossa sociedade é também marcada por muitos retrocessos. O sedentarismo, a dependência com tecnologias, a má alimentação e a cultura do consumismo e do individualismo são exemplos dessa regressão.
Apesar disso, o que não podemos deixar de lado é a nossa saúde, tanto física, quanto mental. “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença”, define a Organização Mundial de Saúde (OMS).
O começo de ano é o ideal para lembrar disso, já que estamos planejando os primeiros passos para ele. Com o tema O que fazer pela saúde mental agora e sempre?, a campanha do Janeiro Branco já vem há mais de uma década para alertar a sociedade sobre a importância do bem-estar emocional.
O movimento brasileiro, que nasceu em 2014 em Uberlândia (MG), foi idealizado pelo psicólogo, professor, palestrante e escritor mineiro Leonardo Abrahão, de 50 anos. Tudo começou em 2006, quando Leonardo, na época professor de história e sociologia, terminou um relacionamento.
O fim desse ciclo afetou diretamente sua saúde mental, e consequentemente sua vida, o levando a procurar ajuda. “Com a psicóloga comecei a enxergar e a entender muitas coisas na minha vida, no meu coração, na minha cabeça e no meu comportamento”, relembra.
O processo de cura foi uma questão de tempo e, durante este período, Leonardo foi cada vez mais se encantando pela psicologia. Como nada é por acaso, o professor logo se viu ingressando no curso da área no final daquele mesmo ano, o qual terminou em 2011.
“Como psicólogo vi a quantidade de sofrimentos, dores e questões que poderiam ser prevenidas. As pessoas precisavam de mais educação emocional (psicoeducação), vivemos como analfabetos emocionais. A gente não vai evitar que o ser humano sofra, mas podemos aprender a lidar com esse sofrimento”, conta.
Essas reflexões, em uma época em que falar sobre saúde mental era ainda um tabu, foi o suficiente para Leonardo idealizar uma campanha focada na saúde mental. Em novembro de 2013 ele criou um grupo no WhatsApp e convocou os profissionais da área da sua cidade a irem às ruas falar sobre o assunto.
A caminhada de lançamento da campanha do Janeiro Branco ocorreu no dia 10 de janeiro de 2014, marcando o início dessa trajetória. A mensagem foi entregue em vários lugares pelas cidades durante todo o mês, e segue assim até hoje, indo até para além do Brasil, como Angola, Japão, Dinamarca e Colômbia.
Em 2018 foi criado o Instituto Janeiro Branco, que segue trabalhando ativamente na campanha e ganhando forças entre grande instituições brasileiras.
Conselhos e grupos de trabalho especializados colaboram para a implementação de diversas ações realizadas durante todo o ano. A campanha já é reconhecida como Lei Municipal, 15.303/16, e como Lei Federal, 14.556/23.
Diversas pesquisas apontam o Brasil sempre ocupando o topo dos países com problemas relacionados a má saúde mental. O ranking The Mental State of the World mostrou que o nosso país está com a quarta pior taxa de saúde mental do planeta, e se destaca com o pior resultado na América Latina.
Publicada pela plataforma Neurotech Sapien Labs, o ranking mapeia a qualidade da saúde mental ao redor do globo, e ao todo são 71 países analisados pela pesquisa. Conforme o levantamento, 34% dos brasileiros estão entre os que mais relatam sentir estresse e dificuldades com a parte mental de sua saúde.
Mês de recomeços
Janeiro foi escolhido estrategicamente para representar a campanha porque é o mês em que as pessoas estão mais propensas a fazer planejamentos e mudanças em suas vidas. “É um simbolismo da virada de ciclo”, afirma Leandro Abrahão.
Cor de possibilidades
Já o branco remete a uma folha em branco, ou seja, Janeiro Branco é um mês para reescrever histórias, planejar o futuro e dar atenção à saúde mental, muitas vezes negligenciada em outros períodos.
Mês de Jano, divindade dos começos
A palavra “janeiro” tem origem no latim, derivada de "Ianuarius", que é o nome do mês dedicado a Jano (ou Janus, em latim), uma divindade romana associada aos começos, portas, transições e mudanças. Jano era geralmente representado com duas faces, uma olhando para o passado e outra para o futuro, simbolizando o início de um novo ciclo.
Esse agravamento é também reflexo de um mundo que ainda não se recuperou do impacto da pandemia de Covid-19. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), apontam que cerca de um bilhão de pessoas no mundo (uma em cada oito) apresentam pelo menos um problema relacionado à saúde mental.
Para o psicólogo Leonardo Abrahão, a conscientização plena sobre o assunto continua muito longe. “Começamos a olhar para isso, mas ainda falta muito a percorrer. Acredito que o Janeiro Branco tem uma grande parcela de contribuição para a descoberta desse novo mundo, mas agora é adentrar”, diz.
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Ele explica que o Janeiro Branco é tridimensional, ou seja, ele olha para os cidadãos comuns e para as instituições, empresas e prefeituras, o qual é necessário acolher para a continuidade plena e fortalecimento da campanha, gerando aprofundamento da conscientização.
“A gente viu cidadãos despertando essa consciência, aprendendo o que são os centros de atenção psicossocial e a importância de lutar por políticas públicas e cobrar as autoridades para a saúde mental. Cada grupo social pega a campanha e usa como uma ferramenta e arma para esse direito”, relata Leonardo.
Esse ano o Instituto Janeiro Branco disponibilizou panfletos que destacam os principais cuidados que devemos aderir a nossa saúde mental, como a adoção de um estilo de vida saudável e sociável. Como profissional, Leonardo Abrahão destaca alguns sinais de alerta para cuidarmos.
“Apesar das nossas diferenças, a gente não é montanha-russa. Vivemos em um padrão, de sono, de alimentação, de humor, entre outros. Se isso muda de maneira radical já é um sinal de alerta. Outra coisa é a falta de disposição com a vida, uma apatia ou desânimo inexplicável”, aponta ele de maneira geral.
Leonardo destaca ainda que precisamos ficar em alerta conosco e com quem vive ao nosso redor, e sempre está antenado ao que é falado e publicado nas redes sociais. “É uma campanha para gerar esperança, não desista de você. ‘O que é verdadeiramente imoral é desistir de si’, como dizia Clarice Lispector”, conclui.
Ana Beatriz tem 26 anos, já Augusto Martelo tem 23, o que ambos têm em comum? Além de cursarem Publicidade e Propaganda, os dois pararam de consumir álcool para cuidar de sua saúde mental. A história de Ana começa aos 17 anos, idade em que a maioria dos jovens começa adentrar neste mundo.
A jovem nunca foi uma pessoa de beber com frequência, mas quando bebia socialmente tinha que inserir grandes quantidades, pois tinha uma alta resistência ao álcool. Nesta época, ela teve uma crise depressiva e um diagnóstico de ansiedade generalizada.
“Comecei a fazer um tratamento psiquiátrico, e foi lá que entendi que o álcool poderia interferir no tratamento, além de ser uma droga que deprime o sistema nervoso, o que poderia piorar o quadro. Resolvi parar de beber por um tempo”, relata.
Ela conta que o processo em si foi tranquilo, mas a maior complexidade era ter que lidar com os questionamentos das pessoas do porquê ela não bebia, além da insistência para ela voltar a beber. “O que me ajuda até hoje a me manter estável é a terapia e o autocuidado, comecei a fazer exercício físico”, esclarece.
Para Augusto a trajetória foi um pouco diferente, começando no início de sua graduação. A empolgação com esse novo ciclo e com as novas amizades levava o jovem a ir sempre a um barzinho aproveitar um happy hour. O problema teve início quando essa curtição começou a ficar cada vez mais frequente
“Eu comecei a me tornar uma pessoa completamente diferente do que sou, uma pessoa mais raivosa, que não dava prioridade para as coisas e as pessoas certas. A virada de chave foi após um pequeno surto de raiva que tive bêbado, e na época foi muito traumático, pois estava dependente daquilo para poder ser feliz”, diz.
Em seu relato, esse episódio e o início da terapia o ajudou a reconhecer isso, fazendo com que ficasse um ano sem beber. “Foi um pouco difícil no começo, na minha cabeça eu só podia me divertir com a bebida. Me aproximei mais da minha família e minha saúde mental e física melhorou bastante”, revela.
Augusto perdeu mais de 40 quilos, chegando a pesar 75. Além disso, criou alternativas para socializar nas festas, como beber água tônica, e suas relações foram mais aproveitadas. Hoje, ele segue se cuidando e está morando com a sua namorada e suas três gatinhas.
“A vida vai para além disso, você tem infinitas opções de aproveitar ela. A campanha do Janeiro Branco existe para não precisar falar só do Setembro Amarelo. Está aí para mostrar a importância de cuidar de nossa saúde mental, hoje me sinto uma pessoa mais feliz e mais leve”, finaliza.
A psicóloga e psicanalista, Fernanda Cruz, esclarece sobre a dependência por qualquer tipo de substância, a qual é considerado um agravo secundário e decorrente de um conflito/transtorno primário que entra como uma condição de alívio daquilo que a pessoa não consegue lidar.
“A consequência é a perda mais relevante da condição do indivíduo lidar com seus conflitos e impasses, um descolamento da realidade que precariza mais ainda a capacidade de autorregulação. No plano terapêutico se faz necessário tratar do problema primário e o quadro de dependência da substância”, afirma.
Segundo ela, a intervenção psicoterápica é o acesso que o sujeito pode abrir para tratar seus conflitos. “Não é um trabalho fácil e depende de muitos fatores, sobretudo da relação que o sujeito estabeleceu com a substância”, explica. A psicóloga também fala sobre a cultura do uso excessivo de medicações.
“Essa é uma questão complexa, pois cada indivíduo tem seus modos de enfrentamento desses conflitos ou problemas. Mas, é da ‘natureza humana’ buscar soluções rápidas para livrar-se de suas dores, ainda mais em um tempo onde a máxima é performar, bater metas e ser feliz sempre”, clarifica.
A especialista aponta que o avanço da indústria psicofarmacológica promoveu um “alívio rápido” ou uma promessa de cura para as “dores da alma”, sem questionar o porquê daquele sintoma ou o que ele denuncia, mas destaca que o uso desses remédios são eficazes para tratamentos de quadros mais agravados.
“Não se trata de depender de medicações e sim de ter acesso ao tratamento adequado para cada caso. A crítica é sobre a “medicalização da vida”, de estarmos perdendo a capacidade de lidar com nossas dores existenciais e recorrer aos alívios. Zele por sua saúde emocional cotidianamente”, conclui.
De acordo com dados de 2024 da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, houve um aumento significativo nas taxas de suicídios entre 2009 e 2023, com 9.290 óbitos registrados, especialmente nas faixas etárias de 20 a 39 anos e 40 a 59 anos.
A população idosa, apesar de números absolutos menores, também apresentou crescimento, principalmente entre os 60 anos ou mais, o que destaca a importância dos cuidados com a saúde mental.
O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece diversos serviços gratuitos de apoio psicossocial, como CAPS, Unidades Básicas de Saúde, UPAs, Samu 192 e cartilhas sobre Saúde Mental, integrados à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Essa rede inclui centros especializados e leitos de saúde mental no Brasil, com 157 CAPS, 4 SRTs, 10 UAs e 90 leitos no Ceará.
Em 2024, o Ministério da Saúde aumentou os investimentos em saúde mental em 53%, totalizando R$ 4,7 bilhões. Para o período de 2023–2026, estão previstos 150 novos CAPS, beneficiando 13,4 milhões de pessoas. Em Fortaleza, o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto é referência no tratamento psiquiátrico, com mais de 17.000 atendimentos realizados em 2024.