Imerso em um silêncio natural, a folhagem densa das árvores do Parque Rio Branco bloqueia não somente o sol, mas também boa parte do barulho persistente dos carros, ônibus e motos da Avenida Pontes Vieira, em Fortaleza.
A vegetação predominante torna o clima agradável, retém a umidade do solo, ecoa a brisa e convida a permanecer ali, longe da agitação e do calor do asfalto. Quem pode, aproveita as manhãs para levantar e correr sob os poucos e preguiçosos raios de sol que atravessam as folhas.
Rodeado pelo caótico centro urbano, o parque parece uma realidade alternativa, um portal para o bem-estar. As pessoas que caminham pelas trilhas podem nem imaginar que manter o Rio Branco de pé foi, e ainda é, uma luta travada por muitos há mais de 30 anos.
Lutar, reivindicar e proteger: essa tem sido a fórmula que grupos comunitários dos entornos dos 27 parques urbanos de Fortaleza têm adotado para manter e preservar as áreas verdes de lazer, ainda mais valiosas diante das ameaças climáticas que se aproximam.
Luta que perpassa várias camadas sociais e políticas, que vão desde defender a permanência desses espaços com proteção da lei até educar as populações que usufruem dos parques para cuidar e zelar pela manutenção, garantindo também participação coletiva na supervisão administrativa e no manejo.
Muito além da valorização visual que os parques geram nas paisagens cinzas das grandes cidades, são quase infinitos os benefícios que lugares seguros e bem preservados de vegetação podem proporcionar a uma comunidade.
Em Fortaleza, a difícil tarefa de amenizar a quentura fica a cargo dos 27 parques urbanos, sendo 14 parques urbanos de lagoas e 5 lineares. Considerados áreas de preservação especial, os parques foram configurados em fevereiro de 2009, quando foi instituído o Plano Diretor Participativo da cidade de Fortaleza, dentro da macrozona de proteção ambiental.
No mapa a seguir, a área apontada do Parque do Cocó equivale ao espaço urbano e não toda a extensão da unidade de conservação.
Parques Urbanos de Fortaleza
O Plano apresenta em suas diretrizes a Política Municipal de Meio Ambiente e cita a “ampliação, conservação, fiscalização, monitoramento, manejo e gestão democrática dos sistemas ambientais, das áreas verdes, das unidades de conservação e dos espaços públicos”.
De acordo com o Plano Diretor, os parques que abrigam nascentes e recursos hídricos são caracterizados pelo Plano como Zonas de Proteção Ambiental (ZPA), dentro da faixa de preservação permanente dos recursos hídricos. Já os sem recursos hídricos são classificados como zonas ambientais de desenvolvimento sustentável.
Nos últimos anos, a gestão municipal de Fortaleza tem investido na revitalização dos parques urbanos. Reformas que acabaram se tornando sinônimo de urbanização. Dos 27 parques, 18 têm áreas com calçamento, pontes, pistas e equipamentos como Areninhas e quadras poliesportivas.
Cocó e Raquel de Queroz: os maiores parques de Fortaleza
Estruturas urbanísticas que podem parecer inofensivas, mas, se mal planejadas e alocadas, podem representar riscos à preservação da vegetação e dos recursos hídricos. Apesar de excelentes para a ocupação de moradores, equipamentos e trilhas podem representar maior impermeabilização do solo, reduzindo a capacidade de absorção.
O planejamento e a execução de alterações em áreas de parque deveriam ser orientados pelo Plano Diretor Participativo, desatualizado desde 2019. Sem um diagnóstico atual e um plano de manejo das áreas de preservação da cidade, gestões municipais decidiram guiar obras no escuro.
Decisão que pode ter colocado em risco a estrutura natural das áreas verdes comuns e mobilizou movimentos coletivos que exigiam manutenções mais assertivas, que considerassem toda a complexidade de lidar com zonas de preservação, sem prejudicar suas características naturais.
Caminhando tranquilamente pelas trilhas do Parque Rio Branco, Luísa Vaz se aproxima da equipe do O POVO+ com um semblante gentil. Ela aceitou conversar conosco e mostrar um pouco do parque que defende como parte de sua história há 30 anos.
“Quando eu comecei, não tinha nem cabelo branco”, comenta, risonha. Revisora de textos, Luísa, junto com o jornalista Ademir Costa, foram os fundadores do movimento Proparque do Rio Branco, em 1995, para reivindicar melhorias. Uma vida dedicada ao cuidado e à luta pela preservação.
O movimento surgiu como associação civil para garantir as condições mínimas de uso pela população. Na época, o local, apesar de reconhecido por lei, estava abandonado pelas autoridades e acumulava muito entulho.
“O que sensibilizou a população foram dezenas de caçambas depositando material de construção sobre o riacho Rio Branco, que nasce no parque. As pessoas, discordando daquilo, apresentaram a ideia de criar uma entidade para defender o parque daquela agressão, e esta é a razão da nossa permanente campanha”, explica Ademir.
Sem fins lucrativos e de forma independente, o grupo de ativistas ambientais passou a organizar atividades para dinamizar o parque e melhorar a socialização. Ao todo, estiveram à frente da reivindicação por revitalização durante a gestão municipal de cinco prefeitos e participaram de encontros com equipes responsáveis pela revitalização do parque, entregue em 2024.
Decretos assinados para regulamentar os parques urbanos em Fortaleza
Integrantes do movimento relataram dificuldades no relacionamento com as gestões anteriores. Alegaram que o canal de comunicação com a prefeitura foi fechado na gestão de Roberto Cláudio e permaneceu fechado até o fim da gestão de Sarto Nogueira, responsável pela revitalização.
Durante as obras, o movimento foi impedido de visitar o parque, por isso não conseguiu acompanhar o andamento das alterações, e os projetos de infraestrutura eram apresentados de maneira precária e desorganizada.
Segundo o movimento, houve também tentativas de descredibilizá-los perante a população do bairro, colocando-os como contrários à instalação de equipamentos. Os integrantes comentam que nunca se opuseram à criação de equipamentos, mas que estes não poderiam ser construídos muito próximos das nascentes, e as alterações deveriam impermeabilizar o solo o mínimo possível.
A falta de transparência, planejamento inadequado e desconsideração das opiniões do movimento e de projetos existentes resultaram em intervenções que podem ser prejudiciais ao meio ambiente e que não correspondiam às necessidades do parque.
As principais queixas que Luísa Vaz apresentou após a entrega estão relacionadas às quadras poliesportivas. Um campo de beach tennis com areia artificial, construído a menos de 50 metros de uma nascente, é ilegal de acordo com a legislação das Áreas de Preservação Permanente. Devido às chuvas, o espaço está atualmente inutilizado por conta da água e apresenta uma das redes quebradas.
Outra construção irregular, conforme o regimento das APPs, é a Areninha. Dois decretos foram aprovados na Câmara Municipal, ignorando o Plano Diretor e o Código Florestal, que protegem as nascentes, para permitir a construção do campo de futebol a menos de dois metros de um riacho.
O movimento Proparque tentou, sem sucesso, impedir a instalação da grama sintética, defendendo a grama natural e levando a questão ao Ministério Público. Há preocupações com o potencial de microplásticos liberados pela grama sintética se infiltrarem no lençol freático, conforme um parecer do biólogo e vereador Gabriel Biologia.
Luísa também pontua outras questões, como a segurança, a manutenção e os animais domésticos, principalmente gatos, abandonados no local. “Falta um plano de manejo, plano que deveria existir há muito tempo. Ter um plano impediria que acontecesse o que aconteceu recentemente”, comenta.
Vanda Claudino Sales, pós-doutora em Geografia, ambientalista e professora aposentada da UFC, explica que existe “uma falta de visão e sensibilidade para a problemática ambiental” por parte das gestões municipais.
Não há uma política voltada para manutenção, controle e manejo da cobertura vegetal das áreas verdes. A Secretaria do Meio Ambiente, durante anos, foi um órgão empresarial. Ela está muito mais voltada para atender aos interesses econômicos dos grupos empresariais da cidade do que para realizar um trabalho de meio ambiente. Vamos ver como vai ser daqui para frente”, comenta.
A professora participa de movimentos ambientais no Ceará há 45 anos e observa um retrocesso na manutenção das áreas verdes em comparação com 15 anos atrás, mesmo existindo tantas evidências dos benefícios desses espaços para a população.
Vanda exemplifica alguns dos vários benefícios que os parques urbanos podem proporcionar para uma cidade. A diminuição da temperatura é um dos principais e mais perceptíveis, especialmente para quem não pode viver sempre no confronto com um ar-condicionado.
“Os parques diminuem as temperaturas por meio de trocas de energia e matéria, água e umidade com a atmosfera. As coberturas vegetais naturais impactam a atmosfera e criam climas e microclimas mais amenos, o que é especialmente importante no contexto das mudanças climáticas e das ondas de calor”, comenta a geógrafa.
Outro benefício apontado pela professora está no controle de cheias e enchentes. “A cobertura vegetal infiltra água no subsolo através das raízes e faz com que isso resulte em duas situações muito importantes. Primeiro, diminui o acúmulo de água nas áreas urbanas onde elas existem. Segundo, alimenta o lençol freático, os rios, as lagoas, os córregos, os recursos hídricos superficiais, que também são fundamentais para regular o clima”, completa.
A vegetação também é indispensável ao controle da erosão do solo, fixando-o com suas raízes e impedindo a erosão e a formação de canais, como as voçorocas, em áreas urbanas. Até mesmo estruturas urbanas se beneficiam com a permanência de parques, com a contribuição que eles proporcionam na conservação de vias e rodovias, evitando a destruição de pavimentos.
Além dos benefícios ambientais, como explica Vanda, os parques urbanos também proporcionam ganhos sociais e socioambientais. Eles geram melhorias na qualidade de vida, diminuição do estresse, redução da violência, manutenção de atividades de lazer e turismo, e cumprem um papel importante para famílias de baixa renda.
“Parques urbanos, e áreas verdes de forma geral, se colocam como um bom instrumento de caráter social com respostas ambientais, oferecendo espaços para atividades de lazer e recreação acessíveis à população de menor renda”, diz Vanda.
Para além do descaso administrativo, os parques urbanos também precisam resistir ao descuido de parte da população. Banheiros sujos e quebrados, lixo nas trilhas, depredação de equipamentos e instalações são alguns dos principais danos causados pela falta de zelo.
A falta de sentimento de apropriação por parte da população em relação aos parques, tão fundamentais para a vida na Terra, pode refletir o comportamento dos gestores e revela uma falta de educação ambiental.
“Mais do que um benefício, é uma necessidade premente da vida”, inicia a professora de Serviço Social do Centro de Ensino Superior Cearense (UniC) e militante do movimento Proparque há três anos, Rúbia Gonçalves.
Ela explica as relações do homem com a natureza e fala sobre o distanciamento do natural. Os seres humanos tentam se colocar como superiores, quando são animais conscientes que compartilham o mesmo lar com outros seres não conscientes. Com o sentimento de distância, as pessoas acabam não enxergando a natureza como essencial.
“Essa ideia de defender a natureza é algo não comum, é algo que saiu de pauta, não só do poder público, mas também da população, que internalizou essa apartação da natureza”, comenta Rúbia.
A professora expressa seu descontentamento com a falta de soluções para as questões climáticas, que também esbarram na falta de educação ambiental, e acredita que precisamos, para além das mudanças no macro, pensar em nossas pequenas atitudes. “Cuidar da terra é também cuidar dos outros. É preciso cuidar da natureza como um sujeito de direitos; esse deve ser um objetivo buscado por todos nós”, completa.