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Tabu: assédio em escolas
Reportagem Seriada

Tabu: assédio em escolas

Em série sobre assédio nas escolas, discutimos questões culturais que mascaram e até ignoram essa violência, a visão de professores e de outros profissionais da educação frente ao tema e ainda o papel de pais e/ou responsáveis na segurança de crianças e adolescentes
Episódio 1

Tabu: assédio em escolas

Em série sobre assédio nas escolas, discutimos questões culturais que mascaram e até ignoram essa violência, a visão de professores e de outros profissionais da educação frente ao tema e ainda o papel de pais e/ou responsáveis na segurança de crianças e adolescentes
Episódio 1
Tipo Notícia Por

Toques não solicitados, cantadas, elogios inadequados sobre o próprio corpo e tentativa de roubar um beijo são algumas situações enfrentadas por estudantes no ambiente escolar. Algumas vezes, essas atitudes partem de quem deveria educá-los e inclusive orientar sobre questões envolvendo sexualidade para alertar sobre prevenção: os próprios professores. Relatos de situações como essas, vividas por meninas e mulheres de Fortaleza e de outras cidades, foram denunciadas no em junho de 2020 nas redes sociais, rompendo o silêncio sobre assunto pouco discutido.

Apesar da falta de discussão quanto à temática, esta sempre surge em pesquisas que estudam a violência nas escolas. A recorrência com que se deparou com denúncias de estudantes até causou espanto quando a socióloga Miriam Abramovay realizou um estudo com 25 escolas públicas em Fortaleza. Coordenadora da área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso Brasil), a professora aponta que o assédio sexual é “completamente diferente”, em relação aos outros tipos de violência nas escolas.

“É um tipo de violência muito agressivo, porque é de adultos contra adolescentes e jovens. Existe uma diferença de idade, uma diferença de sexo, com a visão de masculinidade e de gênero, de força e de poder (em) que muitas vezes essas meninas estão absolutamente à deriva dessas questões.” Vivenciar esse tipo de situação pode ocasionar diversos impactos para os estudantes, uma vez que a adolescência é um período de vulnerabilidade.

Socióloga Miriam Abramovay, coordenadora da área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso Brasil)(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Socióloga Miriam Abramovay, coordenadora da área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso Brasil)

O processo de aprendizagem, por exemplo, pode ser comprometido pela situação. “Se a criança está sendo assediada, em qualquer idade, muitas vezes ela muda o comportamento, não quer mais ir para a escola, tem medo daquele professor, de ficar na sala de aula, de falar para os colegas. E qual criança aprende com tensão, estresse, medo? Isso é muito ruim”, argumenta Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 20-12-2019: Entrevista com  Rui Aguiar do Unicef..(Foto: Thais Mesquita/O POVO)
Foto: Thais Mesquita
FORTALEZA, CE, BRASIL, 20-12-2019: Entrevista com Rui Aguiar do Unicef..(Foto: Thais Mesquita/O POVO)

Os episódios deixam consequências físicas e emocionais nas vítimas, por ainda estarem em desenvolvimento e sem os mecanismos de defesa suficientemente construídos, segundo explica Rui Aguiar, chefe do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Fortaleza. Tudo isso favorece o silêncio e a impunidade.

Quando um docente tem esse tipo de conduta, seja ela presencial ou por meio das redes sociais, ele está “muito desestruturado” em relação à própria formação, defende a coordenadora da Unesco. Uma educação de qualidade, que vá além dos conhecimentos cognitivos e das aprovações em provas, é a chave para o enfrentamento de problemas como esse. Devem ser debatidas as diversas habilidades socioemocionais — como respeito, autoestima e autocontrole. É com esse tipo de educação que se muda a sociedade para melhor, defende Rebeca Otero.

“Temos um fator cultural no Brasil bastante forte que é o machismo, que vem se reproduzindo há anos e anos e anos. Então, é necessário trabalharmos, nas escolas, a igualdade de gênero e formar os jovens para que eles não perpetuem esse machismo que ocorre dentro da sociedade.”

Miriam Abramovay também aponta a importância de se discutir sexualidade e questões de gênero na escola, uma vez que, sem escancarar esses assuntos, os casos continuam acontecendo. “Esses e outros que nem imaginamos”.

 

 

Além disso, é necessário que as instituições ofereçam respostas “duradouras e sustentáveis”, segundo Rui Aguiar. Abusos e assédios devem ser prevenidos e inibidos, assim como os funcionários que os cometerem devem ser responsabilizados. “Mecanismos como programas de prevenção, como o de capacitação obrigatória sobre temas como assédio e abuso, para estudantes e profissionais escolares, podem ser o primeiro passo para criar em cada escola um ambiente livre de assédio.”

Mas essas medidas não são suficientes se não forem criados canais de denúncia com processos objetivos, capazes de coibir falsas alegações e com possibilidade de defesa para os acusados e de proteção para as vítimas. Ele também aponta a necessidade de revisão dos regimentos escolares, que “precisam atualizar-se em termos do contexto social do século XXI”. “As escolas atuais precisam de mais códigos de ética do que regimentos burocráticos, desatualizados e verticalizados em direitos.”


Educação transformadora

Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil

Além de ser um assunto a ser tratado em casa, pela família, a sexualidade também deve estar presente nos currículos das escolas ao longo de toda a Educação Básica. De acordo com a coordenadora de Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, Rebeca Otero, é uma questão de direito das crianças e dos jovens. O tema deve ser adaptado para as diferentes faixas etárias, e os professores devem ter formação para fornecer informações confiáveis e adotar metodologias adequadas. Em entrevista ao O POVO, a coordenadora também aponta a importância de uma educação de qualidade — pautada nos direitos de cada um e no respeito ao outro, e não só na aprovação dos estudantes — para se conquistar uma sociedade melhor.

O POVO- Como a educação sexual deve ser tratada nas escolas?

Rebeca Otero - A Unesco preconiza que as escolas tratem da educação em sexualidade ao longo de toda a Educação Básica, adaptada para cada faixa etária. Ultimamente tem-se falado pouco de educação em sexualidade. Em muitos países da América Latina e em vários lugares, não se tem colocado essas questões no currículo, mas elas são importantíssimas. Claro, adaptado à idade da criança e com evidências científicas e metodologias apropriadas. Tem países em que funciona criar uma disciplina específica, mas aqui no Brasil observamos que é muito melhor fazer a formação de todos os professores e que (a educação em sexualidade) seja tratada de forma transversal, porque isso aparece em qualquer sala de aula.

Você pode ver um comentário relacionado a gênero ou uma risadinha, uma coisa assim que as crianças estão querendo trabalhar, discutir e não sabem como. Tem sempre um tema que o professor, seja ele de qualquer disciplina, pode chamar esse grupo de crianças e falar: ‘O que está acontecendo aqui? É uma questão relacionada mais à sexualidade, ao reconhecimento do corpo? O que é a sexualidade? O que é a discriminação relacionada a sexo? O que é uma orientação diferente?’ Todas essas coisas devem ser colocadas, em especial para evitar o bullying nas escolas. Hoje, crianças LGBT acabam muitas vezes abandonando a escola porque tem uma discriminação, um preconceito muito grande, muitas vezes do professor também. As meninas engravidam, e elas têm que aprender como se prevenir. Claro, falar disso é uma coisa da família, é verdade, mas também da escola. A escola não pode se omitir.

Os professores têm que saber como lidar, como trabalhar essas questões, e isso está muito relacionado às habilidades socioemocionais, que são várias. Temos a questão do respeito, da autoestima, do autocontrole. É muito importante trabalhar também o respeito à mulher, a igualdade de gênero.

 

OP - No final do ano passado, a Unesco e a Fundação Carlos Chagas (FCC) lançaram a publicação “Professores do Brasil: Novos Cenários de Formação”. Quais são os desafios da formação dos professores no que se refere aos temas sobre sexualidade?

Rebeca - Os professores têm que saber como lidar, como trabalhar essas questões, e isso está muito relacionado às habilidades socioemocionais, que são várias. Temos a questão do respeito, da autoestima, do autocontrole. É muito importante trabalhar também o respeito à mulher, a igualdade de gênero. Todos esses aspectos têm que ser colocados, e os professores têm que ter formação. Não é simples. O professor é um ser humano, e, por mais que ele saiba a disciplina, tem alguns pontos que precisa de formação. Muitas vezes, o próprio professor carrega um preconceito, uma discriminação, um tabu, um mito. Isso tem que ser desconstruído, tem que ser trabalhado. Ele tem que ter informações científicas e confiáveis para passar. Se ele tem determinada religião, quando entra na sala de aula, ele tem que deixá-la de lado e tratar as questões dentro da sala de aula com conhecimento científico.

Um professor que comete um assédio, pelas redes sociais ou mesmo pessoalmente, está muito desestruturado da formação dele. Acredito que, se ele tem uma formação bem-feita, se os professores discutem esses temas em grupo nas reuniões, essas coisas são minimizadas. E não adianta tapar os olhos para a sexualidade. Ela está lá, e, em especial na puberdade e na adolescência, em que as crianças passam uma boa parte (do tempo) nas escolas, isso vai aflorar, não tenha dúvidas.

INFO - Assédio sexual entre mulheres brasileiras(Foto: Cristiane Frota)
Foto: Cristiane Frota INFO - Assédio sexual entre mulheres brasileiras

OP - Como um assédio sexual, partindo de professores, pode impactar a/o estudante?

Rebeca - O professor ou a professora tem que ser aquela pessoa que educa, então tem que ser uma pessoa amigável, em quem a criança possa confiar. Se ele (ou ela) assedia a criança, como é que a criança vai acreditar no que ensina? Então, tem um impacto enorme na qualidade da educação, na qualidade do aprendizado e muitas vezes até em abandono escolar. E o professor tem uma relação de poder sobre o aluno. Se ele quer exercer, ele consegue, e isso é um fator terrível. Os diretores e os coordenadores pedagógicos têm que estar atentos, e os pais também, porque as crianças dão sinais quando estão sendo assediadas. Tem que ser muito dialogado, tem que ouvir as crianças, tem que perguntar, ver o que está acontecendo. Aos poucos, ela vai criando confiança na família e falando, ou mesmo em outro professor, no coordenador, no diretor.

OP - Quais mudanças culturais se fazem necessárias para o enfrentamento do assédio sexual no ambiente escolar?

Rebeca - A criança não nasce com essa compreensão (de cultura machista), mas, conforme vai vivenciando, vai vendo o comportamento machista do pai ou uma mãe submissa, muitas vezes vai reproduzir. Mas, se trabalharmos uma educação de qualidade, vamos mudando, e esse jovem vai poder questionar e vai mudando também a família. E isso vai melhorando a sociedade. Mas tem que ser uma educação de qualidade, que não pense só no conteúdo ou que a criança tenha que ser aprovada no Enem ou em uma avaliação. O conhecimento cognitivo é muito importante, mas as habilidades para a vida são fundamentais, e a escola também tem que trabalhá-las. A educação tem que ser transformadora.

A escola tem que traçar quatro pilares básicos: o primeiro é aprender a ser, é o respeito, são as virtudes. A pessoa tem que saber ser nesse mundo. Depois, temos que ensinar o aprender a aprender. Ou seja, todo mundo deve ser capaz, depois de um período vivenciado na escola, de aprender sozinho, porque a aprendizagem nunca termina. Depois nós temos que aprender a fazer, desenvolver uma profissão, dependendo do que a pessoa quer ser na vida. E o quarto pilar, super importante, é o aprender a conviver, conviver em sociedade.

OP - Que atitudes práticas a instituição pode adotar no dia a dia para conquistar essa mudança?

Rebeca - A primeira coisa: a escola precisa conhecer a sua comunidade. Quem é ela, se ela é muito pobre, se tem diferenças na classe social, se tem muita violência doméstica, como é o transporte, como é a poluição, o meio ambiente. Ela tem que conhecer a comunidade para saber quem é aquele aluno que está chegando. Ela não pode se fechar portão adentro. Tem que se aproximar das famílias, para que elas também usufruam do aprendizado. Uma vez conhecendo a comunidade, a escola pode observar o que é mais importante para ela, porque tem uma parte do currículo escolar e nos projetos pedagógicos em que se pode inserir essas questões. E tenho que dar capacitação para os professores para que possam ministrar esses conhecimentos. Depois, tenho que constantemente avaliar e reavaliar, fazendo diagnóstico, vendo quais problemas que estão ocorrendo. (A escola pode) buscar materiais, já existem muitos. A Unesco mesmo tem uma série de materiais relacionados à sexualidade, à violência, à cultura de paz nas escolas. Outro ponto: a Unesco fez um projeto de muito sucesso para a redução de violência, que foi o projeto Abrindo Espaços, abrindo escolas aos finais de semana para as comunidades. Isso reduzia a violência, trazia lazer, integrava comunidades e professores. Foi excelente. Depois até foi transformada em uma política pública, mas aos poucos foi sendo esquecido.

Uma vez conhecendo a comunidade, a escola pode observar o que é mais importante para ela, porque tem uma parte do currículo escolar e nos projetos pedagógicos em que se pode inserir essas questões. E tenho que dar capacitação para os professores para que possam ministrar esses conhecimentos.

OP - A Base Nacional Comum Curricular contempla a educação em sexualidade?

Rebeca - A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) está trabalhada por competências a serem alcançadas pelos alunos. Ela não traz coisas muito explícitas com relação a esse campo da sexualidade, mas traz aberturas para que se inclua e que se trabalhe essas competências necessárias para isso. Então, é totalmente compatível com esse tipo de trabalho. Ela é uma base que traz parâmetros mínimos necessários para serem implantados no País todo, para não ter grandes diferenças (entre estados). A partir daí, de acordo com cada necessidade regional, os currículos dos estados, dos municípios, vão sendo adaptados.

Assédio nas escolas - CAPA(Foto: Domitila Andrade)
Foto: Domitila Andrade Assédio nas escolas - CAPA


Definições importantes
de violências ligadas à escola

Violência à escola

São aquelas cometidas contra o espaço físico ou contra integrantes da comunidade escolar. Abrangem pichações e depredações do patrimônio, agressões a professores e funcionários por membros externos à comunidade escolar, formação pouco qualificada dos professores, suas péssimas condições de trabalho e de remuneração e violência associada à cultura de gangues e de grupos armados.

Violência na escola

Constitui extensões de dinâmicas familiares e comunitárias. Refere-se aos maus-tratos; negligência materna e paterna; violência doméstica contra a mãe, contra os parentes idosos ou contra as próprias crianças e adolescentes; abuso; exploração sexual comercial; alcoolismo e dependência química dos pais e mães, quando não dos próprios estudantes; uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas e tráfico de drogas.

Violência da escola

Algumas vezes, a escola é espaço privilegiado para produção da violência. É ela, no seu modo de funcionamento e na atuação de seus representantes que cria e alimenta as dinâmicas de uma violência institucional. São exemplos desse tipo de violência o bullying, violência sexual e de gênero, violência física e psicológica.

Fonte: A Educação que protege contra a violência, Unicef

 

 Que mudanças culturais se fazem necessárias? 

"O conhecimento cognitivo é muito importante, mas as habilidades para a vida são fundamentais, e a escola também tem que trabalhá-las. A educação tem que ser transformadora, tem que transformar a sociedade para melhor."

Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil 

 

Leia na próxima reportagem: Diretores de várias escolas de Fortaleza revelam quais os canais que as instituições de ensino já disponibilizam para acolher relatos de assédio por parte de professores, e discutem os procedimentos internos adotados por elas.  


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Precisamos falar sobre assédio em escolas

Série de reportagens aborda a cultura das escolas em tratar ou não casos de assédio entre alunos e entre alunos e colaboradores da própria instituição de ensino..