“É como se rodasse uma chavinha dentro de mim, e de repente tudo mudasse.” A frase, dita por uma das personagens desta reportagem, ajuda a desenhar — com dor e lucidez — o que é viver com transtorno de personalidade borderline (ou “limítrofe”, TPB).
Um turbilhão de emoções que não cabem no peito, uma urgência afetiva que ora aproxima, ora afasta. Amar demais, sentir demais, sofrer fundo. E, no dia seguinte, se perguntar: quem sou eu no meio desse caos?
O borderline é um transtorno marcado por instabilidade emocional, impulsividade, medo extremo de abandono e uma constante sensação de vazio.
Borderline: por que tem esse nome?
Para quem vive com o TPB, uma alegria pode facilmente se transformar em tristeza profunda por causa de um “vacilo”, que foi sentido como traição e despertou uma reação explosiva com gritos, palavrões e até socos. Em seguida, uma culpa enorme costuma tomar conta e pensamentos autodestrutivos podem vir à tona.
Essa “montanha-russa” de sentimentos que atormenta as pessoas “border” torna as relações familiares, amorosas, de amizade e até mesmo com médico ou terapeuta extremamente desgastantes.
Em muitos casos, o transtorno fica camuflado entre outros como bipolaridade, depressão e uso abusivo de álcool, remédios e drogas ilícitas. Mas reduzi-lo a uma lista de sintomas é insuficiente — e perigoso.
"Maio roxo é o mês de conscientização sobre o TPB, campanha para aumentar a visibilidade sobre o transtorno, reduzir o estigma e proporcionar acolhimento e informação aos pacientes e seus familiares."
Uma música da cantora sertaneja Maraísa citou o transtorno de forma simplificada e estigmatizante, confundindo traços do TPB com comportamentos abusivos e reforçando rótulos que machucam mais do que explicam.
Nesta reportagem, você vai conhecer a história de duas mulheres que vivem com o transtorno e enfrentam, além da luta por saúde mental, o julgamento de uma sociedade que pouco compreende o que não vê. Vai conferir, também, especialistas que alertam: o borderline é sofrimento real — e precisa ser tratado com escuta, vínculo e cuidado.
No maio roxo, mês de conscientização sobre o TPB, é hora de olhar com mais delicadeza para essas dores que não aparecem em exames, mas transbordam em relações, palavras e silêncios.
Em meio aos corredores do campus Itaperi da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Nicole Evelyn, 23, segue determinada no curso de Ciências Biológicas. Embora à primeira vista não pareça, ela é uma entre os cerca de 2 milhões de brasileiros, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que enfrentam um desafio invisível: o transtorno de personalidade borderline (TPB).
“Desde criança eu era muito ansiosa e depressiva. Como era da igreja, costumava orar para que Deus me levasse para morar com ele”, conta. Nicole nasceu e cresceu em um contexto de vulnerabilidade socioeconômica e, até hoje, o único caminho possível para cuidar da saúde tem sido o Sistema Único de Saúde (SUS).
A universitária lembra que tinha apenas oito anos quando os primeiros sinais apareceram: “Tive alguns problemas com ansiedade que me levaram ao médico por pensar que seriam problemas cardíacos”.
Apenas na adolescência, após um agravamento do sofrimento emocional, Nicole começou a entender melhor o que se passava. “Com 14, vi um vídeo na internet falando sobre borderline e parecia bastante com como eu me sentia. Mas tudo piorou aos 15, quando tentei me suicidar e fui levada ao pronto-socorro.”
Nicole foi encaminhada ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps) infantil, onde iniciou tratamento com psicóloga e psiquiatra. “A psiquiatra suspeitou que poderia ser ansiedade severa e depressão no começo”, recorda.
O laudo oficial de TPB só veio seis anos depois, já na vida adulta, quando Nicole tinha 21 anos e seguia no Caps. “Depois de 6 anos, eu pude receber o laudo médico atestando o transtorno de personalidade borderline.”
Critérios diagnósticos para transtorno de personalidade borderline (TPB)
Com o diagnóstico, vieram os remédios — e alguns resultados. “Com os remédios eu tive um pouco de estabilidade em algumas áreas, por exemplo na ansiedade. Mas até então não tive nenhum medicamento que pudesse me controlar da impulsividade e da depressão. Além disso, algumas vezes fiquei sem acesso aos remédios que estavam em falta no Caps. Lembro que os sintomas ficaram bem fortes nesse período e tive muitas discussões.”
Somada à realidade financeira apertada, a rotina de estudos torna difícil o acesso ao tratamento completo — como a Terapia Comportamental Dialética (DBT), considerada padrão ouro para o TPB, e ainda pouco acessível no sistema público.
“Como eu tive que parar, infelizmente não me sinto melhor”, admite.
Nicole também convive com o peso do estigma. “Infelizmente as pessoas não sabem e não querem entender. É um transtorno com pouca importância e pouca informação. Até as pessoas que possuem borderline não têm muita informação, só são demonizadas.”
Isso afeta, inclusive, suas relações pessoais. “Minhas relações costumam ser superficiais. Não posso ter qualquer amizade por ser influenciável e, pra minha segurança emocional, não posso ir de cabeça em relações.”
Apesar das dificuldades, Nicole defende que o caminho para um acolhimento mais justo começa com informação: “A informação pode salvar vidas. E a internet parar de demonizar as pessoas com um transtorno que já torna suas vidas um inferno poderia ser um começo pra estabilizá-las.”
“Sou uma jovem pobre, estudante de faculdade pública, usuária do SUS e tenho borderline. E, ainda assim, continuo sonhando, estudando e lutando pelo meu futuro”, finaliza.
Antes de saber o nome do que sentia, ela apenas acreditava que havia algo de errado consigo mesma — algo profundo e incontrolável que não se curava com o tempo.
“Eu sempre fui uma adolescente muito depressiva”, conta Luna (nome fictício para preservar a identidade da fonte), 25 anos, que prefere manter o anonimato.
“Mas achei que era uma coisa da adolescência, da escola que eu odiava, das amizades esquisitas... Só que quando cheguei na vida adulta, percebi que o buraco era mais embaixo.”
O que parecia apenas uma névoa emocional tornou-se tempestade. Aos 17, 18 anos, as oscilações de humor se tornaram mais intensas, mais difíceis de contornar.
“Minhas emoções me deixavam disfuncional. Eu era hiperativa, impulsiva. Qualquer frustração virava um colapso. Fui buscar terapia, mas nem imaginava que fosse algo tão sério. Só sentia que tinha alguma coisa, entre muitas aspas, errada comigo.”
Foi durante a pandemia de Covid-19 que a palavra “borderline” apareceu pela primeira vez com força: uma psiquiatra, após ouvi-la em duas sessões, sugeriu o diagnóstico. A psicóloga da época discordou, atribuindo tudo à ansiedade. Mas a dúvida ficou. E cresceu.
“Eu fiquei com a pulga atrás da orelha. A médica tinha falado com tanta certeza… troquei de terapeuta, troquei de psiquiatra. Levei um tempo pra aceitar. Primeiro, me diagnosticaram com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) — e até foi mais fácil de aceitar porque é um transtorno mais ‘aceitável’ socialmente, sabe? Mas o borderline... o borderline foi mais difícil de engolir.”
Difícil porque doía. Porque não era só tristeza ou raiva: era uma bagunça de identidade.
“Eu achava que era só distração, desatenção... mas, na verdade, eu não sabia quem eu era. Meu problema era com identidade. É como se minha cabeça rodasse a chavinha e eu vivesse numa simulação. Eu ia fazendo as coisas no automático, como se estivesse num sonho. Nada parecia real.”
Essa sensação de desconexão com o mundo, chamada despersonalização, é comum em quadros de TPB. Entretanto, o sofrimento não para aí. Luna explica que seus padrões de comportamento, mesmo os mais autodestrutivos, eram formas de lidar com a dor.
Como é feito o diagnóstico do TPB?
“Eu sou o tipo de borderline implosiva. Ao contrário de uma amiga border minha, que explode com os outros, eu explodo comigo. Me punia. Me colocava em situações ruins, comia demais, fazia sexo sem vontade, abusava de substâncias.”
Ela justifica: “Quando estou muito ruim, eu acredito, de verdade, que não sirvo para nada, que sou uma pessoa horrível. Consequentemente, isso me leva a ter pensamentos suicidas, de automutilação. E a questão de se machucar não se resume a isso, a gente pratica outras microagressões”.
As emoções extremas, a impulsividade, a sensação de abandono constante, a idealização e a desvalorização abrupta de pessoas queridas — tudo isso formava um ciclo que, sem tratamento, parecia interminável. “É uma coisa muito física, inclusive. Oscilar tanto me dá um cansaço absurdo. Me dá enjoo, dor no corpo, exaustão.”
Com o tempo e o avanço do tratamento — que envolve psicoterapia e o uso de estabilizadores de humor, como a Lamotrigina, além de Ritalina para o TDAH e Rivotril em momentos de crise — Luna começou a reencontrar a estabilidade. “Hoje eu passo mais tempo bem do que em crise. E isso é muita coisa.”
Apesar disso, o estigma permanece. “As pessoas têm muito preconceito. Já ouvi piadinhas em academia sobre borderline. Então, fora do meu ciclo íntimo, eu quase nunca falo. Mas com minha mãe e alguns amigos, eu consegui explicar. Eles acolhem. Eles aprenderam a perceber quando ‘roda a chavinha’. Eu fico muito diferente quando estou em crise.”
O borderline também impactou seus relacionamentos. Casada com uma mulher autista, ela fala com franqueza sobre as dificuldades da convivência entre dois transtornos tão distintos. “Foi bem difícil no começo. Mas à medida que cada uma foi fazendo seu tratamento, a gente foi aprendendo a se comunicar melhor. Hoje temos nossas ferramentas.”
Borderline: como a psicoterapia ajuda?
Hoje, Luna é uma mulher que trabalha, estuda, cuida da mãe e dos pets. Que aprendeu, aos poucos, a nomear sua dor. Que fala de si com uma maturidade rara aos 25 anos.
“Eu já vivi todas as fases do luto em relação ao borderline”, diz. “Não como desculpa, mas como explicação. Eu entendi que o transtorno não justifica tudo, mas explica muita coisa. E isso me ajudou a parar de me odiar.”
Ela ainda convive com os fantasmas da autodepreciação e dos pensamentos suicidas. “Qualquer frustração vira um pensamento destrutivo. Eu me sinto sem valor, sem amor, sem utilidade. Mas agora, pelo menos, eu sei o que é isso. Eu consigo me observar. Eu consigo pedir ajuda.”
Luna deseja que mais pessoas compreendam o que é viver com borderline — e que deixem de reduzir a experiência a estigmas e memes de internet.
“As pessoas acham que a gente é só dramática, difícil, exagerada. Mas ninguém vê o cansaço que é. O desespero. A solidão. A sensação de que seu próprio cérebro quer te destruir. E que, mesmo assim, você continua aqui.”
Nos últimos anos, o interesse clínico e científico pelo TPB teve uma explosão. E não por acaso: segundo a psicóloga e referência mundial no tema Marsha Linehan, no livro Terapia cognitivo-comportamental para transtorno da personalidade borderline: Guia do Terapeuta (2010), “os indivíduos que preenchem os critérios para o TPB têm inundado os centros de saúde mental e consultórios particulares”.
Estima-se que 11% de todos os pacientes psiquiátricos ambulatoriais e 19% dos pacientes internados tenham TPB. Ou seja, a maioria dos profissionais da saúde mental acabará tratando ao menos um paciente borderline ao longo da carreira.
A presença constante em contextos clínicos e a intensidade do sofrimento que carregam tornam essas pessoas visíveis — e, ao mesmo tempo, difíceis de compreender.
A metáfora usada por Linehan no livro para descrever a relação terapêutica ajuda a iluminar esse desafio: “É como se a paciente e eu estivéssemos nos lados opostos de uma gangorra.”
Uma gangorra, no entanto, instável, oscilante, onde qualquer movimento mais brusco pode provocar desequilíbrio. Em certos momentos, o equilíbrio parece quase impossível: “Estamos na verdade equilibrados em uma vara de bambu, precariamente equilibrada sobre um fio esticado sobre o Grand Canyon.”
Essa gangorra de emoções, impulsos e tentativas de conexão é vivida cotidianamente por quem convive com o TPB. A gangorra não existe apenas na relação com o terapeuta: ela se instala nos vínculos afetivos, nas amizades, nas relações familiares, nos contextos escolares e profissionais.
Como funciona o tratamento do borderline?
A reabilitação tem o objetivo de ajudar o paciente a aprender habilidades para gerenciar e lidar com sua condição. Também é necessário tratar qualquer outro transtorno de saúde mental que geralmente ocorre junto com o transtorno de personalidade bipolar, como depressão ou uso indevido de substâncias, por exemplo.
A busca por proximidade é atravessada pelo medo do abandono. A expressão da dor nem sempre encontra acolhimento — muitas vezes, ela assusta.
Entre os comportamentos mais associados ao transtorno estão os atos autodestrutivos e as tentativas de suicídio. Ainda assim, como aponta Linehan, esse padrão tem sido “relativamente ignorado como alvo no tratamento”.
É uma constatação alarmante, sobretudo quando se observa que “a maioria dos indivíduos que apresentam comportamento autoagressivo não fatal e a maioria dos indivíduos que satisfazem os critérios para o TPB são mulheres” — cerca de 74% dessa população.
Além disso, aproximadamente 75% dos casos de autoagressão ocorrem entre os 18 e os 45 anos, sendo, portanto, uma condição que afeta especialmente mulheres jovens em idade produtiva.
A gangorra, nesse sentido, também pode ser vista como metáfora para a oscilação entre a vida e a morte. Entre o desejo de acabar com a dor e o desejo profundo de ser compreendida.
O comportamento suicida, frequentemente não fatal, não deve ser interpretado apenas como uma ameaça, mas como um grito — um pedido de ajuda, um gesto de desespero e, paradoxalmente, de sobrevivência.
Na perspectiva dialética proposta por Linehan, “os extremos da gangorra representam os opostos (‘tese’ e ‘antítese’); andar até o meio e ao próximo nível da gangorra representa a integração ou ‘síntese’ desses opostos, que imediatamente se dissolve novamente em opostos”.
A ideia não é eliminar a oscilação, mas aprender a caminhar no meio — com o outro, e não contra o outro. O tratamento, portanto, envolve ensinar habilidades de regulação emocional, validação da experiência subjetiva e construção de estratégias mais eficazes para lidar com o sofrimento.
Essa abordagem exige tempo, escuta especializada e uma rede de cuidado sólida — algo ainda muito distante da realidade de boa parte dos pacientes no Brasil.
Para muitos, o remédio não está disponível, seja por ausência de acesso ao SUS, pela escassez de profissionais capacitados ou por preconceitos que ainda pairam sobre os transtornos de personalidade.
Em tempos de sofrimento generalizado e solidão coletiva, pode ser urgente reaprender a brincar de gangorra — com gentileza, escuta e presença.
Quando recebeu o diagnóstico de transtorno de personalidade borderline (TPB), a psicóloga Lara Sales tinha apenas 14 anos. Até então, o que sentia era uma sensação persistente de inadequação: “Sentia como se existisse algo de errado em mim. Como se eu não pertencesse ao mundo ‘normal’”, relembra.
Na época, há 13 anos, pouco se falava sobre o transtorno. “O tema ‘borderline’ era ainda mais estigmatizado do que é hoje. Não era abordado de forma alguma, praticamente.”
Mesmo sem saber exatamente o que era o TPB, Lara já vivia os impactos da desregulação emocional. “Eu era bastante reativa, ainda mais emotiva, era perceptível a instabilidade emocional. Eu não sabia nomear na época, mas era como viver sempre no volume máximo — tudo me atravessava demais, desde relações até pequenas frustrações.”
A primeira vez que ouviu o termo “borderline” foi no momento do diagnóstico. “Receber o diagnóstico foi um divisor de águas pra mim. Não estou afirmando que ter o referido transtorno é algo ‘positivo’, mas quando você cresce se sentindo ‘quebrada’, dar um nome a isso, saber que não há nada de errado e, principalmente, que o tratamento era possível, provavelmente, foi uma das maiores sensações de alívio que já tive.”
Ao contrário do que costuma acontecer com muitos pacientes, Lara teve um diagnóstico precoce e correto. “A primeira profissional que fui conseguiu identificar de maneira correta e em um tempo razoável.”
Ela conta que, antes disso, os sintomas que mais chamavam atenção eram os comórbidos: “Depressão, ansiedade, TDAH e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), naquela época. Mas, desde o início, minha psiquiatra tinha como hipótese diagnóstica o TPB como transtorno central.”
Essa experiência, segundo Lara, difere da realidade da maioria. “Boa parte dos profissionais da saúde mental, infelizmente, ainda não estão devidamente capacitados para o manejo do TPB, além da busca por aprimorar-se na área ainda não ser satisfatória. Logo, muitos diagnósticos são fechados de maneira equivocada.”
Entre os erros mais comuns, ela cita a confusão com o Transtorno Afetivo Bipolar (TAB): “Uma das maiores ‘confusões’ de diagnósticos na clínica acontece entre o TAB e o TPB.”
Após o diagnóstico, Lara teve acesso rápido ao tratamento adequado. “Fui encaminhada para uma psicóloga que também trabalhava com o TPB, então minha farmacoterapia estava ajustada, em relação aos sintomas mais agudos e comorbidades, e dei início ao tratamento, de fato, do TPB na psicoterapia.”
Ela destaca que, embora não existam medicações específicas para o TPB, a farmacoterapia pode ajudar a lidar com sintomas pontuais. “O que acontece é um manejo de sintomas mais agudos naquele momento e/ou de transtornos comórbidos por meio da farmacoterapia.”
Borderline: dicas de autocuidado
O tratamento principal, segundo Lara, é a Terapia Comportamental Dialética (DBT): “Hoje, o tratamento padrão ouro/tratamento de primeira linha para o TPB é a DBT.” E completa: “Significa que é o tratamento que apresenta maiores evidências científicas de eficácia.”
A psicóloga ressalta os resultados da abordagem: “54% dos pacientes que aderem ao tratamento padrão da DBT alcançam a remissão com 1 ano a 1 ano e meio de tratamento. Lembrando que ‘remissão de sintomas’ não significa cura, mas significa que você deixa de apresentar o mínimo de sintomas para ter o diagnóstico.”
Na prática clínica, Lara observa que muitos pacientes chegam em situações-limite. “Normalmente, os pacientes se encontram em um quadro agudo, em relação aos sintomas. Apresentam uma instabilidade emocional exacerbada, oscilações constantes, muitos também apresentam episódios depressivos breves.”
Nos adolescentes, em especial, há um sinal de alerta que costuma mobilizar a família: “É muito comum que a família de pacientes adolescentes procure tratamento após episódios de autolesão.”
A psicóloga explica que a DBT funciona com base em uma hierarquia de alvos: “Ao recebermos um paciente, é preciso definir o nível de desordem, depois determinar o estágio de tratamento (são 4: I, II, III, IV) e então definir os alvos do tratamento.”
Se houver risco à vida, essa é a prioridade. “Comportamentos de risco à vida são alvos prioritários do estágio I. Portanto, às vezes, é preciso, primeiro, estabelecer o manejo ‘emergencial’ e, após ter a certeza da segurança do paciente, será possível olhar para o quadro clínico do paciente com mais clareza.”
Sobre comorbidades como depressão ou uso de substâncias, Lara reforça a necessidade de uma abordagem específica.
“Transtorno Depressivo Maior (ou ‘depressão’) é uma comorbidade comum e, nesse caso, é preciso avaliar o nível de comprometimento funcional e, após tal avaliação, fazer o encaminhamento para o profissional adequado.”
Já no caso do uso de substâncias, a DBT tem uma versão adaptada: “Existe uma vertente da DBT intitulada de Terapia Comportamental Dialética para Transtorno por Uso de Substâncias (DBT-TUS) que, para tornar o tratamento e o manejo ainda mais específico, adaptou os princípios e alguns manejos da DBT padrão para esse público-alvo.”
Questionada sobre os efeitos da psicoterapia, Lara é categórica: “A DBT é considerada padrão ouro/tratamento de primeira linha para o TPB. Ou seja, é a terapia que mais apresenta evidências de real eficácia.”
Ela reforça que, embora medicamentos possam ajudar, eles não substituem a terapia: “Medicamentos não tratam o TPB, eles ajudam no manejo de transtornos comórbidos e/ou sintomas mais agudos em determinado momento, mas o tratamento em si é a terapia.”
Com a autoridade de quem vive e estuda o transtorno, Lara aposta em um cuidado baseado tanto em ciência, quanto em sensibilidade. “Apesar da DBT ter sido desenvolvida, inicialmente, para o TPB, hoje já se sabe que ela apresenta eficácia significativa para outros quadros clínicos.” E conclui: “O sofrimento é real, mas o tratamento também é. E ele pode mudar tudo.”
Segundo o psiquiatra Cláudio Martins, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o funcionamento emocional do TPB fragiliza os vínculos pessoais. A pessoa com TPB idealiza alguém num momento e, diante de um atrito, pode desvalorizá-lo totalmente no seguinte. Isso acaba por afastar as pessoas ao redor e reforçar a sensação de abandono, alimentando um ciclo de sofrimento.
“Muitas vezes, o outro cansa, e aí talvez venha o estigma. O diagnóstico se transforma numa espécie de rótulo, e a pessoa começa a ser chamada de ‘louca’, ‘explosiva’, ‘difícil’.”
A dificuldade de buscar ajuda especializada é outro obstáculo comum, especialmente para pessoas em situação de vulnerabilidade social.
“O borderline pode ser agravado por contextos de abandono terapêutico. A falta de assistência adequada contribui para a cronificação dos sintomas. Se não há intervenção, há um caminho de sofrimento, incapacitação, perda de autonomia e solidão”, alerta Cláudio Martins.
Ele reconhece as limitações da rede pública: “A gente tem dificuldades assistenciais. Não há ambulatórios específicos de saúde mental nos postos e os CAPS não dão conta da demanda. Isso prejudica o cuidado continuado, especialmente num transtorno como o borderline, em que o vínculo terapêutico é fundamental”.
Como posso ajudar alguém com borderline?
A compreensão correta é o primeiro passo para relacionamentos mais saudáveis e conscientes. É essencial evitar simplificações e estigmatizações, especialmente quando falamos de transtornos psicológicos sérios como o borderline.
Mais do que medicação, o tratamento do TPB exige um acompanhamento psicoterapêutico consistente. Ainda, para Cláudio, é fundamental também que a família busque informação e apoio.
“Os familiares vivem o drama do transtorno. Muitas vezes não sabem como agir, não entendem o que está acontecendo. O primeiro passo é sair da culpabilização e buscar compreender. O borderline não é frescura, não é falha de caráter — é sofrimento psíquico que precisa de cuidado.”
Em Fortaleza, casos de urgência ou emergência associados às comorbidades do TPB podem ser encaminhados às Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e ao Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), em Messejana.
A rede pública de saúde mental fortalezense conta com uma estrutura composta por 134 postos de saúde, unidades básicas que são responsáveis pelo atendimento de casos leves de sofrimento psíquico. Já os quadros moderados e graves, como o Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), devem ser acolhidos nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
Atualmente, a Capital dispõe de 16 Caps distribuídos entre seis unidades gerais, sete voltadas ao atendimento de pessoas com transtornos relacionados ao uso de álcool e outras drogas (Caps AD), e três infantis (Capsi), que atendem crianças e adolescentes de até 17 anos.
Mapa dos Caps de Fortaleza
Segundo a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), os Caps priorizam situações de maior risco ou gravidade. O processo de diagnóstico de TPB, por sua vez, exige tempo, vínculo e escuta qualificada.
“Durante o primeiro atendimento em saúde mental, são analisadas as condições clínicas e sociais do paciente para a elaboração de um plano de cuidado individualizado”, informa a pasta, em nota.
A avaliação não se baseia em um único encontro, pois demanda um acompanhamento contínuo que leve em conta a trajetória de vida do paciente: “O diagnóstico do TPB não é imediato. A atuação integrada das equipes define a conduta terapêutica mais adequada”.
A SMS reforça que “o tratamento pode incluir acompanhamento psicológico e psiquiátrico, uso de medicamentos, participação em grupos terapêuticos e suporte à família”.
Ainda conforme a Secretaria, a rede municipal de saúde disponibiliza os medicamentos necessários para o controle dos sintomas de acordo com protocolos das Relações Nacional e Municipal de Medicamentos (Remume).
“Em 2025, 786 pessoas com diagnóstico de TPB estão sendo acompanhadas pela rede pública de saúde mental de Fortaleza”, informa o comunicado da SMS.
Para além das crises e intervenções medicamentosas, dentro das possibilidades e realidades de cada indivíduo, o acompanhamento psicológico deve ser considerado como um aliado.
A terapia pode ajudar a lidar com emoções, traumas e desafios, permitindo um maior autoconhecimento e um estilo de vida mais equilibrado e satisfatório.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Série especial trata dos dilemas da saúde mental no Brasil, desde diagnósticos, passando pela medicalização, até a busca por qualidade de vida