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Mulheres e a maternidade: os dilemas na sociedade contemporânea
Reportagem Seriada

Mulheres e a maternidade: os dilemas na sociedade contemporânea

No terceiro episódio da série especial O que pensam as mulheres , a socióloga Lídia Valesca Pimentel reflete sobre a imposição social da maternidade às mulheres, mas também como ela possibilitou o acesso à força do cuidado. Para ela, a maternidade é expansão - e todos, sem distinção de gênero, podem e devem maternar
Episódio 3

Mulheres e a maternidade: os dilemas na sociedade contemporânea

No terceiro episódio da série especial O que pensam as mulheres , a socióloga Lídia Valesca Pimentel reflete sobre a imposição social da maternidade às mulheres, mas também como ela possibilitou o acesso à força do cuidado. Para ela, a maternidade é expansão - e todos, sem distinção de gênero, podem e devem maternar
Episódio 3
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 A maternagem não é coisa só de mulher 

Mães são forças da natureza porque acessam, por vezes de maneira imposta, a habilidade do cuidado. Toda mulher, independente de ter filhos, é ensinada a maternar: os irmãos, os primos, os pais, os doentes e/ou os maridos. É dizer que homens também podem aprender e descobrir em si o zelo pela família.

Para a socióloga Lídia Valesca Pimentel, a lógica neoliberalista se opõe à essência da maternidade, implicando no sofrimento das mulheres-mães e na decisão de muitas a não terem filhos. Para ela, maternar é expandir-se e reconhecer-se em comunidade, conceito rechaçado pelo individualismo. 

 
Oryporan

Lídia Valesca Pimentel

Cientista social e pesquisadora

É mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em Escrita Literária. Ativista de direitos humanos, é coordenadora da Casa da Sopa, associação de assistência social e defesa de direitos da população em situação de rua. Tem
52 anos, é mãe da Hannah, do Mateo e avó do André.

 

O POVO+ - Quando a senhora virou mãe?

Lídia Valesca Pimentel - Eu sou de 1971 e gosto de dizer isso porque eu acho que a gente tem um efeito geracional muito grande. Eu sou de uma geração que nem era a geração que pensava em casar e ter filhos, se acomodar na vida, como também eu sou da geração que se casou de novo. Eu me casei aos 24 anos e aos 26 anos eu tinha filho. Quando eu olho a geração hoje, pessoas de 30 até de 40 anos sem filhos, porque estão seguindo suas carreiras, seguindo suas vidas, fica muito notada para mim essa diferença de geração.

E eu sou cientista social, fiz graduação, mestrado e doutorado. Enfim, eu cumpri uma carreira acadêmica muito jovem ainda e sendo mãe ao mesmo tempo. Sou uma pessoa que tem um filho que é trans, um rapaz trans de 20 anos, e tem uma mulher de quase 26 anos que já é mãe, então, eu sou avó também, né? E também sou uma ativista social dos direitos humanos.

Isso meio que me levou também para uma condição de pessoa além da vida privada, que tava também para o mundo público. Eu não fui aquela mãe típica. E durante muito tempo eu me perguntava se estava sendo uma boa mãe. Como se fosse aquela culpa materna. Claro, eu tive a sorte de ter um companheiro muito presente também e dividir essa tarefa da maternagem. Então eu começo dizendo que a maternagem não é coisa de mulher. Isso é coisa de quem tem um coração que cuida, então a gente pode imaginar que existem homens que também podem exercer também essa tarefa.

Segundo Lídia, maternar é cuidar de vidas, independente de serem filhos ou não(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Segundo Lídia, maternar é cuidar de vidas, independente de serem filhos ou não

OP+ - A senhora acha que seria correto dizer que todas as mulheres, mesmo não sendo mães, acabam maternando em algum momento?

Lídia - Eu acho que sim, mas isso também é um dado da cultura, não da natureza. Porque se atribuiu às mulheres essa responsabilidade pelo cuidado. A gente vê que existe muita pressão nisso, como um mecanismo também de opressão e de fazer com que essas mulheres estejam sempre fadadas a isso.

Que força social é essa que relega às mulheres o papel de cuidadora, quando não dentro de um sistema que não é igual para todos os gêneros, né? Mas eu faço também a reflexão da importância do cuidado, por isso que eu acho que o cuidado pode vir de qualquer gênero. Os homens também podem cuidar, e quando eles cuidam, eles maternam também. Toda vez que você cuida de alguém, você exerce essa maternagem.

Eu sou muito crítica dessas visões da mulher guerreira. Eu não gosto, sabe? Dizem que eu sou uma mulher guerreira, mas isso trouxe muitas consequências pra minha vida. Muito estresse, muita ansiedade, muitas questões. Mas ao mesmo tempo isso me ajudou a ter muita força, e a força também é um atributo muito importante nas mães. Você precisa ter força para criar, para o parto, para amamentar, para cuidar. Essa força está na espécie humana de modo geral, mas ela acaba aparecendo mais nas mulheres.

Então, quando você opera uma mudança social com mulheres engajadas nela, o potencial de transformação é muito grande. A força delas é maior porque, como esse papel foi socialmente atribuído a ela, ela opera essa energia dela para a criação da própria vida, e a partir daí ela pode transformar o mundo.

 

 

A voz dE.L.A.S: artigos de opinião

 

 

 

 


 

OP+ - É curioso, o acesso a esse potencial de cuidado, ao mesmo tempo muito pesado, confere às mulheres uma força que os homens não têm o hábito de acessar.

Lídia - Mas a eles foi dado o papel de cuidado do mundo público, e não do mundo privado. Quando essa mulher passa para a esfera pública, ela vai com muita força. A gente percebe esse potencial de transformação. Colocando um filho no mundo, cada mulher é agente de transformação.

Eu estava hoje em uma reunião com uma pesquisadora da Unicamp e ela vai mostrando como as pesquisadoras, as mulheres do mundo acadêmico, cada vez têm menos filhos, porque elas não se vêem na condição de tempo para cuidar.

A gente vive em um mundo em que as pessoas trabalham muito, estão muito sobrecarregadas de trabalho. E aí elas não veem em que momento ela vai colocar um filho no mundo, e sem rede de apoio, porque estamos cada vez mais individualistas.


 

Acho que toda mãe toda pessoa que tem um filho se desloca de si e percebe que não é mais só você no mundo. A gente sai da condição do egocentrismo e do individualismo. Então eu posso chegar a dizer que a sociedade individualista neoliberal se põe contra contra o próprio exercício de cuidarmos dos outros, de maternagem.

E aí, quem vai povoar o mundo? Quem vai fazer o mundo acontecer? Por isso que eu acho que Deus é mãe, porque a tarefa dele é maternar a criação dele.

Lídia e família(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Lídia e família

OP+ - E o que a senhora aprendeu com esse amor incondicional?

Lídia - Ensinou muita coisa. Acho que me tornou uma pessoa melhor porque é como se minha existência dilatasse. Eu seria capaz de fazer qualquer coisa por um filho meu, eu diria que eu não sou mais sozinha no mundo. Eu não dou conta mais só de mim. A ideia de que há uma expansão.

A minha mãe teve oito, a minha avó pariu 21 vezes, então você vê o tamanho da expansão, né? Você joga no mundo alguém que você se vincula e isso tá praticamente em todas as classes sociais. Eu lido com mulheres em situação de rua e eu escuto muito isso delas, elas sofrem quando elas perdem a guarda dos filhos, porque você é privado da oportunidade de fazer alguma coisa para alguém, de cuidar do seu modo. Elas estão em sofrimento social, é claro que têm dificuldade de cuidar de outras pessoas, e aí o estado pune essas mulheres.

Então, voltando a sua pergunta, a maternidade me expandiu. Se a gente fosse pensar do ponto de vista social, nós constituiríamos outra sociedade se todos se expandissem como as mães. Em uma comunidade indígena, quando nasce um filho, ele é filho da comunidade. Toda a comunidade se responsabiliza por ele, e essa ideia pode ser transportada para a nossa sociedade. Vamos cuidar dos outros, vamos cuidar da natureza, dos animais, das plantas… Para que essa lógica de amor ela possa ser incluída na sociedade como um todo, e não atributo apenas das mães.

Por isso eu digo, a força feminina pode ser absorvida por toda a sociedade como modelo de criação, de transformação, de vivência.

 

 

Queremos te ouvir!

Que tal responder à enquete abaixo e usar o campo dos comentários para discutir sobre a sua experiência com a maternidade? Você é mãe? Se sim, como é sua experiência com a maternidade? Se você não é mãe, você deseja ser? E o que motiva esse desejo? Vamos conversar nos comentários!


Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Concepção do projeto Regina Ribeiro
  • Reportagem, dados e recursos Catalina Leite
  • Identidade visual Cristiane Frota e Camila Pontes
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Design Camila Pontes
  • Fotografia Fernanda Barros
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