Nos cerca de 10 quilômetros quadrados (km²) de extensão da Sabiaguaba, vivem diversas comunidades. Boca da Barra, Casa de Farinha, Sabiaguaba, Abreulândia e Gereberaba compõem uma miscelânea de identidades e relações com o ambiente.
Por mais que estejam unidas pelas dunas, pela pesca e mariscagem ou mesmo pela tradição alimentar, cada uma das comunidades tem vivências e demandas distintas. Por isso, defendem a participação de todas no Conselho Gestor das Unidades de Conservação da Sabiaguaba.
Das 20 cadeiras do Conselho Gestor, algumas comunidades locais são representadas pela Associação dos Comerciantes e Moradores da Praia da Abreulândia (Acompa) e pela Associação dos Moradores e Amigos da Gereberaba (Amag). Faltam as outras.
Localização das cinco comunidades da Sabiaguaba
“É importante que cada grupo social fale de cada um deles”, resume Roniele Suíra, 37, pescador e pensador da comunidade tradicional Boca da Barra. “O diálogo é seletivo. Se a gente não tem espaço para dialogar com o Estado ou com o Município, como é que eles estão dialogando com a Sabiaguaba?”, questiona.
“É uma grande armadilha. É muito mais fácil generalizar (as comunidades da Sabiaguaba), homogeneizar e dizer que tudo é a mesma coisa, porque aí você as exclui.”
A Comunidade Tradicional Boca da Barra da Sabiaguaba está localizada no estuário do rio Cocó. São cerca de 140 famílias com raízes centenárias no território, descendentes do povo indígena Suíra — uma identidade apagada, “demonizada” e recentemente resgatada por alguns, não sem muita dor.
“Hoje eu tenho consciência de quem eu sou”, reflete Roniele. “O povo Suíra já estava aqui há muito tempo, (mas houve uma) demonização para apagar o povo. Durante (as últimas) quatro décadas e meia, o povo não se sentia pertencente.”
Na década de 1970, a Sabiaguaba foi dividida e loteada, processo definido pelo pescador como de “compressão pela especulação imobiliária”. Desde então, parte do discurso da expansão imobiliária é de urbanizar e desenvolver espaços vistos como inabitados.
“Quando a gente fala de desenvolvimento e progresso, eu tenho medo. Porque é um progresso e um desenvolvimento que excluem e eliminam culturas e povos por pensar diferente”, define.
Para ele, a própria necessidade de conceituar a Boca da Barra como uma “comunidade tradicional” é uma forma de institucionalização. “É igual a própria formação da APA e do Parque. Algo que está num papel, tudo limitado, mas na prática mesmo ainda é um território muito ameaçado. É tudo uma grande farsa.”
Durante o processo de delimitação das unidades de conservação da Sabiaguaba, o intuito inicial era desapropriar o território da Boca da Barra. Foi apenas com o reconhecimento como comunidade tradicional que eles conseguiram seguir no local.
Foi em razão da expansão imobiliária que a comunidade se viu na necessidade de resgatar memórias do passado. Em 2015, conta Roniele, uma empresa entra na comunidade para demarcar as casas, na justificativa de requalificá-las a mando do Estado.
“E um tio meu, que sempre negou nossa cultura, falou: ‘Ó, se eu quiser eu acabo com isso aqui, me reconheço como indígena, me recoloco como cacique e acabo com isso aqui!’”, relembra. “Até então, nem eu sabia que era Suíra.”
A cena motivou o pescador a pesquisar a própria história. Conversando com os mais velhos e as mais velhas, identificou medo e silenciamento. “Isso porque teve capitães do mato dentro da Sabiaguaba, teve a ideia do coronelismo, e essas pessoas dominavam a informação”, descreve.
As “sequelas na memória dos mais velhos” e o receio do povo em se reconhecer como Suíra persistem até hoje, mesmo que muitos já falem sobre a ancestralidade. A externalização foi impulsionada pela presença de uma antropóloga, nos anos de 2016 e 2017, durante a elaboração do Plano de Manejo.
Plano de Manejo da Sabiaguaba identifica três grandes áreas de comunidades
A antiga Sabiaguaba era uma pequena comunidade de pescadores localizada à beira da praia, nas dunas, entre a barra do rio Cocó e o mar. A partir de 1973, loteamentos ocasionaram a chegada de veranistas, pousadas, comércio e barracas na praia.
Está localizada do outro lado das dunas, em frente à lagoa de Gereberaba, antes da Lagoa Redonda. A comunidade mantém um baixo nível de antropização e uma elevada beleza cênica. Os moradores da Gereberaba vivem do extrativismo (pesca) e da agricultura de subsistência.
É o último bairro da região leste de Fortaleza, fazendo fronteira com o município de Aquiraz e as Unidades de Conservação (UCs). Tem "ares de praia do litoral" e está inserido nas margens do estuário do rio Pacoti
“Quando você se assume como indígena, você é sempre questionado”, critica. O reconhecimento é necessário não apenas como uma forma de manter o direito da comunidade a habitar nas unidades de conservação, mas especialmente para garantir a sobrevivência da Sabiaguaba.
Afinal, são as comunidades tradicionais que reconhecem os fluxos do território.
Após a construção da Ponte da Sabiaguaba, Roniele aponta que mais de dez espécies de peixes sumiram da região. O rio também assoreou e perdeu a profundidade.
“Muitas mulheres têm um conhecimento incrível, elas são mestres na área do campo. Mas com muitos anos de apagamento, repassar o conhecimento quando você é inferiorizado não faz sentido”, comenta o pescador.
“Então a maior e melhor forma de se aniquilar um povo é tachando ele como analfabeto, ou como se ele não soubesse o que tá falando.”
Da infância, Roniele guarda com carinho a experiência de viver isolado do mundo. Brincar de bola, correr pelas dunas, aprender com o irmão a pescar de apneia, alcançando até 26 metros de profundidade, sem respirar por dois minutos.
“Eu fui uma criança livre. Fui não, sou. E a gente cresceu sem medo”, lembra. Eu tinha acabado de perguntar sobre insegurança pública, algo que ele negou vivenciar na Boca da Barra — provando, mais uma vez, a diferença entre os territórios dentro da Sabiaguaba.
Perguntei, então, qual medo a comunidade enfrentava. Sem hesitar, Roniele respondeu: “O medo na verdade é: será que vamos continuar aqui?”
“A gente cresceu ouvindo que tinha que sair daqui”, relata Gleiciany Queiroz, 30. Estamos sentadas na sala da nova sede da Biblioteca Comunitária Sabiá, da qual Gleiciany é co-fundadora e facilitadora de leitura.
Enquanto amamenta o filho, ela relembra a infância na Sabiaguaba. Chegou ao bairro com um ano de idade, em uma época na qual o território seguia como extensão das dunas, sem rodovias estaduais no caminho.
Nos dias de ir à praia, o trajeto de quase uma hora em ônibus era marcado por um “alto” dunar. “A gente se ajeitava na cadeira do ônibus para sentir o friozinho na barriga. Parecia uma montanha russa”, ri.
Então a CE-010 chega e o alto é retirado. “E aí, hoje em dia, são lembranças que eu tenho só para contar, tanto para as crianças que me rodeiam, quanto para os meus filhos.”
Essa é apenas uma das memórias do bairro da Sabiaguaba influenciadas pelas obras na região. Com a construção da ponte e o fácil acesso, Gleiciany narra o susto dos moradores com a quantidade de lixo que encontravam.
“A gente via a comunidade limpando, eu cresci vendo as pessoas cuidando do espaço, para hoje as pessoas dizerem: ‘Ai, mas isso só tá sujo porque a comunidade destroi’”, retruca.
Em passeio pelo bairro, no dia 28 de janeiro, ela aponta para o rio Coaçu, passando por debaixo de uma passagem molhada próxima à Biblioteca Comunitária Sabiá — estava recheada de aguapés, um dos indicadores de poluição.
O rio Coaçu é um afluente do rio Cocó, e de seu leito nasce a Lagoa da Precabura, protegida pela APA da Lagoa da Precabura, que também une-se às unidades de conservação da Sabiaguaba.
A Sabiaguaba é um dos bairros com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo de Fortaleza, com 0,267 (muito baixo) de IDH. O dado é do Fortaleza em Mapas, pelo qual é possível analisar os indicadores mais recentes sobre o Município.
A plataforma não indica nenhuma unidade de saúde no bairro, mas registra a presença da Escola Municipal Professora Josefina Parente De Araújo. Já em relação à limpeza de corpos hídricos, os dados mais recentes de limpeza de lagoas são de 2021, e citam que a Defesa Civil não tem projetos de limpeza contínua no bairro.
Por sua vez, a Defesa Civil explica que faz a limpeza anual do rio Coaçu. A última ocorreu no final de janeiro e terminou no dia 14 de fevereiro, priorizando sempre o período anterior à quadra chuvosa. A limpeza é manual, mas em alguns trechos usa-se maquinário para facilitar o trabalho. O uso de máquinas é criticado por Gleiciany, apontando a sensibilidade do corpo hídrico.
No entanto, qualquer demanda por praças, postos de saúde e escolas por parte da comunidade esbarrava com a informação de indisponibilidade de terrenos públicos. Todos tinham donos desde 1972, quando a região foi loteada.
Gosta de ler sobre meio ambiente? Acompanhe nossos colunistas: Catalina Leite (meio ambiente e ciência), Fábio Angeoletto (ecologia) e Eliziane Alencar (veganismo).
Em dissertação no mestrado de Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), a pedagoga e pesquisadora em Educação Ambiental Magda Silony Maciel analisa que “as construções da ponte pequena, localizada na Avenida Sabiaguaba, o loteamento da imobiliária Rêgo Barros e a instalação da Indaiá, segundo os interlocutores desse trabalho, marcam o início do fim da ‘Sabiaguaba natural’”.
Desde a década de 1970, começa a “sensação de perda de espaços” e a especulação imobiliária.
Na pesquisa, um morador identificado como seu Mar aponta que o “o primeiro derramamento de dinheiro na Sabiaguaba” foi durante a construção da ponte, construída para “beneficiar o loteamento, pois até então era muito difícil o acesso à região”.
Foi essa mistura de degradação ambiental e memorial, abandono institucional e expansão imobiliária que motivou Gleiciany e outros moradores a criar o Coletivo Sabiá e, em 2019, a Biblioteca Comunitária Sabiá.
Em meados de 2017, ela conheceu o Conselho Gestor das UCs da Sabiaguaba. Na época, o Departamento Estadual de Rodovias (DER) sugeriu envelopar a Duna da Baleia com palha para evitar o acúmulo de areia na CE-010. Até hoje, ainda é possível ver algumas palhas remanescentes.
Nas três visitas à Sabiaguaba, os moradores indicaram outro fator de tensão ambiental em comum: a peregrinação religiosa. A Duna da Baleia ficou conhecida por grupos religiosos cristãos como “monte”. “Eles tentaram fazer uma igreja em cima da duna, com madeira, lona, pneu…”, descreve Gleiciany.
A alta demanda turística e religiosa está diretamente ligada ao aumento da poluição no local. Em 23 de setembro de 2019, O POVO publicou matéria: “Seuma vai contatar líderes religiosos na Sabiaguaba”.
Nela, a repórter Flávia Oliveira conta que os frequentadores do local confirmam que “o lixo viria, na maior parte, dos cultos realizados no local principalmente aos sábados e domingos por membros de diversas comunidades evangélicas - ao deixar a duna, os fieis não recolheriam as garrafas de água e publicações impressas”.
Segundo Gleiciany, as mudanças na Sabiaguaba refletem o racismo ambiental e a força da especulação imobiliária, além de afetar todas as dimensões da região: os sítios arqueológicos, a importância ecológica para a Cidade e a relação cultural e de vivência com o espaço.
“(O que eu quero) a princípio é que as pessoas tenham respeito mesmo. Não é só um monte de areia”, frisa a moradora. “A Sabiaguaba é muito mais do que só a Duna da Baleia.”
Em um contexto de degradação ambiental e tensões entre as comunidades, como é realmente possível viver as unidades de conservação de forma segura e sustentável? No próximo episódio, conheça a experiência do Parque das Dunas de Natal (RN) e veja o que ambientalistas defendem para o futuro da Sabiaguaba.
Série de reportagens contextualiza a Sabiaguaba como ecossistema complexo e crucial para Fortaleza, além de explorar as tensões sociais, políticas e econômicas que envolvem a região