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O histórico das áreas verdes de Fortaleza: lutas de décadas, exclusões de segundos
Reportagem Seriada

O histórico das áreas verdes de Fortaleza: lutas de décadas, exclusões de segundos

Movimentos ambientais não foram informados das exclusões de áreas de zona de proteção ambiental, votadas na Câmara Municipal de Fortaleza, em dezembro de 2024. Interesses imobiliários miram territórios valorizados por shoppings e pelos próprios parques. A possibilidade de crescimento urbano sustentável, ainda que possível, é escanteada
Episódio 2

O histórico das áreas verdes de Fortaleza: lutas de décadas, exclusões de segundos

Movimentos ambientais não foram informados das exclusões de áreas de zona de proteção ambiental, votadas na Câmara Municipal de Fortaleza, em dezembro de 2024. Interesses imobiliários miram territórios valorizados por shoppings e pelos próprios parques. A possibilidade de crescimento urbano sustentável, ainda que possível, é escanteada Episódio 2
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A exclusão de áreas de zona ambiental, em Fortaleza, não provocará uma mera modificação em terrenos vazios ou não urbanizados. As áreas estão inseridas na Cidade como peças fundamentais. São pedaços de história e motivos de fortes lutas.

Em dezembro de 2024, a maioria dos vereadores da Capital aprovou o fim de partes de 16 terrenos protegidos por lei. As áreas foram mapeadas e divulgadas pelo O POVO+ no episódio 1 deste especial. Após a reportagem, houve o veto de uma das aprovações.

As demais 15 seguem na berlinda. Três receberam sanção do então prefeito, José Sarto (PDT), enquanto a retirada das outras 12 foi aprovada pelo Legislativo. O que levou décadas para surgir, desapareceu em poucas horas. Foram nove áreas retiradas somente em um dia pela Câmara dos Vereadores.

Zona Especial Ambiental na Serrinha passou a integrar a área de Zona de Requalificação Urbana(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Zona Especial Ambiental na Serrinha passou a integrar a área de Zona de Requalificação Urbana

A mira ocorre pela valorização intensa de cada metro quadrado de Fortaleza. A proteção ambiental deixa de ser um benefício e passa a ser enxergada pelo mercado como um impasse.

A corrida pela terra - e até pelo céu - é tão intensa, acelerada, que o desenvolvimento sustentável torna-se quase inimigo do crescimento urbano, ainda que os dois devam andar lado a lado.

E, ao redor, os moradores veem o verde desaparecer aos pouquinhos.


 

Movimento Pro-Parque Rachel de Queiroz e a luta ambiental em Fortaleza

De todas as áreas aprovadas pela Câmara Municipal no fim da gestão de José Sarto (PDT) apenas três receberam a sanção do então prefeito.

Uma está localizada no bairro Luciano Cavalcante, nas delimitações do Parque Estadual do Cocó. O local é alvo de pressões constantes do mercado, documentadas em série especial do O POVO+.

As duas outras integram o Parque Rachel de Queiroz, nos bairros São Gerardo e Presidente Kennedy.

Clique na sete na canto superior para ver os mapas 

Aquinaldo José Aguiar é membro do Movimento Pro-Parque Rachel de Queiroz, que Luta pela causa desde os anos 1990 e conseguiu impedir que algumas áreas da vizinhança virassem quadras e prédios. 

A entrevista com ele ocorreu no Polo de Lazer da Avenida Sargento Hermínio. O local integra o trecho 3 do Parque, que se estende para muito além da Praça localizada no Presidente Kennedy. "Muita gente não sabe disso", comentou ele. "Não tem uma placa indicando que aqui é parte do Parque Rachel de Queiroz", reclamou.

Aguinaldo José, militante ambiental no Polo de Lazer da Sargento Hermínio e membro Movimento Pro-Parque Rachel de Queiroz(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Aguinaldo José, militante ambiental no Polo de Lazer da Sargento Hermínio e membro Movimento Pro-Parque Rachel de Queiroz

Naquela manhã chuvosa, ele apontou para cada detalhe do espaço. Dos postes - altos demais para um local preservado - à lagoa artificial do fundo e à cerca de tapume que cobria boa parte do local. Uma obra parada há seis meses. 

Cumprimentou uns transeuntes, que carregavam água do poço para casa, andavam de bicicleta ou pegavam mangas do pé. "Quando morrer, quero que minhas cinzas sejam espalhadas aqui", disse.

Depois da caminhada, parou embaixo de uma mangueira e observou o mapa com o levantamento do O POVO+, que revelou a abrangência das áreas excluídas. Apenas disse: "Isso tudo?" e ficou em silêncio. Mesmo dedicando todos os dias à pesquisa e preservação da área, ele não sabia da dimensão das zonas retiradas, quantas eram e onde estavam.


Segundo Aguinaldo, a luta começou em 1983. Ele ainda não fazia parte. Na época, o memorista, poeta e escritor Leonardo Sampaio encabeçava um movimento pela restauração da Casa onde - descobriu sem querer - havia morado a escritora Rachel de Queiroz

"Duas senhoras moravam em um barraco dentro e, ameaçadas de despejo, fui até lá. Elas me contaram que eram lavadeiras e engomadeiras da família Queiroz. Daí comecei a pesquisar", disse Leonardo.

Passou a defender a preservação do espaço e foi convidado pelo então prefeito Juraci Magalhães para conhecer um projeto, protótipo do que viria a ser o Parque Rachel de Queiroz. A ideia era assinada pelo arquiteto e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), José Sales, que a apresentou à comunidade.

Projeto inicial envolvia duas áreas verdes do Leste da Cidade, no percurso dos Riachos Cachoeirinha de onde vem o nome da Rachel e o Alagadiço, incluindo a UFC entre Av. Mister Hall e Av. Matos Dourado 

Projeto inicial do Parque Rachel de Queiroz, de José Sales(Foto: José Sales/Prefeitura de Fortaleza/Parque Rachel de Queiroz)
Foto: José Sales/Prefeitura de Fortaleza/Parque Rachel de Queiroz Projeto inicial do Parque Rachel de Queiroz, de José Sales

O projeto nunca saiu do papel e a comunidade acabou se movimentando por conta própria. Foi nesse momento que Aguinaldo se engajou. Focava, em específico, na preservação do Polo de Lazer.

Em princípio, moradores do Presidente Kennedy reivindicavam o fim das áreas verdes, apelidadas de "matagal". A movimentação foi motivada pelo assassinato de uma criança, em 2007, no Riacho Cachoeirinha. O terreno hoje comporta a Praça Rachel de Queiroz.

Leornardo Sampaio e Aguinaldo se mobilizaram e uniram os movimentos em prol da área verde. Promoveram palestras e conversas sobre a preservação do espaço. "Abrimos um debate de que a saída não era acabar, mas sim defender nossas áreas e transformá-las em algo positivo", disse.

O movimento cresceu e integrou moradores dos bairros Ellery, Presidente Kennedy, São Gerardo, Henrique Jorge e Pici. Pediam uma melhor iluminação para os arredores e, com atos culturais, integravam o espaço verde com o meio urbano.

Feirinha no Polo de Lazer da Sargento Hermínio buscava integrar o meio ambiente com o meio urbano. Militantes ambientais fizeram uma parceria: eventos culturais, em troca da preservação do espaço(Foto: Movimento Parque Rachel de Queiroz)
Foto: Movimento Parque Rachel de Queiroz Feirinha no Polo de Lazer da Sargento Hermínio buscava integrar o meio ambiente com o meio urbano. Militantes ambientais fizeram uma parceria: eventos culturais, em troca da preservação do espaço

Uma resposta do poder público veio em 2011, quando o então secretário de Infraestrutura de Fortaleza, Luciano Feijão, revelou a intenção de canalizar o riacho. Estudantes da Universidade Federal do Ceará e moradores começaram uma mobilização que contou com o apoio do então pré-candidato à Prefeitura, Roberto Cláudio.

Na época deputado estadual, ele incluiu nas promessas de campanha a criação do tão sonhado Parque, o que foi tomado com desconfiança pelos moradores. Apesar disso, RC foi eleito e o decreto foi publicado em 2014 - 31 anos depois.

Leonardo Sampaio (à esq.), militante pelo Parque Rachel de Queiroz e o Ademir Costa (à dir.), jornalista(Foto: Arquivo Pessoal/Instagram/@ademircostajornalista)
Foto: Arquivo Pessoal/Instagram/@ademircostajornalista Leonardo Sampaio (à esq.), militante pelo Parque Rachel de Queiroz e o Ademir Costa (à dir.), jornalista

O movimento Pro-Parque Rachel de Queiroz é apenas um entre tantos que lutam preservação das áreas verdes de Fortaleza. Vinte deles foram documentados na tese do jornalista Ademir Costa, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFC.

As 16 áreas excluídas integram pedaços destes espaços de reivindicação. É o caso do Movimento SOS Lagoa da Maraponga, o Movimento SOS Cocó e o Movimento pelo Parque da Sabiaguaba. Resultaram em Parques, Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e demais respiros verdes, em uma cidade tomada de prédios. 

Confira um pouco da história de alguns deles, abaixo

 

Cada mobilização um tem suas particularidades, mas há pontos em comum. Quase todos surgiram em meados dos anos 1980 e 1990, motivados pelo combate à construção de prédios em áreas verdes. Foram responsáveis por impedir estes empreendimentos e, assim como ocorreu no Parque Rachel de Queiroz, combinaram a preservação com práticas culturais nos locais.

Também tiveram em comum a falta de apoio do poder público. O livro de Ademir traz relatos de imposições por parte de secretários e de "deboche" do ex-prefeito, Juraci Magalhães. “Vocês já têm a Amazônia. Para que se preocupar com uma lagoa?”, teria dito o então gestor a militantes da Maraponga, sob testemunho do próprio Ademir.

Em 2025, Lagoa da Maraponga estava sem manuntenção, abandonada, com mato alto, cerca quebrada, lixo e sem iluminação. Local recebeu proposta de revitalização, com parcerias do Estado com a Prefeitura(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Em 2025, Lagoa da Maraponga estava sem manuntenção, abandonada, com mato alto, cerca quebrada, lixo e sem iluminação. Local recebeu proposta de revitalização, com parcerias do Estado com a Prefeitura

Com o tempo, os movimentos foram se desmobilizando, hoje diminuta se comparada há 30 anos. Viram áreas preciosas sumirem de repente e, no ano passado, foram excluídos das negociações que retiraram as áreas verdes da proteção ambiental.

Mas, não apenas eles - a sociedade civil. Ao longo desta apuração, foram contatados moradores, biólogos, arquitetos, jornalistas. Ninguém tinha conhecimento da real dimensão das zonas ambientais excluídas pela Câmara em 2024. Todos, assim como Aguinaldo, receberam com surpresa as informações apuradas. 


 

“O chão da pátria não é chão, é capital”

Mas de que maneira o mercado enxerga as áreas verdes?

Fortaleza é a quarta maior cidade do Brasil em população. O metro quadrado é o terceiro mais caro do Nordeste, custando em média R$ 7.773,00. A valorização se deu, ainda, de forma recente. Enquanto metrópoles do Sudeste estavam bem ocupadas já no começo do século passado, a urbanização de Fortaleza escalonou somente a partir dos anos 1950.

O processo de migração ocorre desde o século XIX, mas as secas do início do século XX e a construção da malha ferroviária intensificaram o deslocamento do interior ao longo das décadas.

Estação Ferroviária João Felipe na década de 1935(Foto: Acervo/ Associação dos Engenheiros da RFFSA do Estado do Ceará)
Foto: Acervo/ Associação dos Engenheiros da RFFSA do Estado do Ceará Estação Ferroviária João Felipe na década de 1935

A população partiu do Centro da capital cearense e expandiu-se para as periferias. Dados disponibilizados pela Prefeitura de Fortaleza apontam um crescimento acentuado nos anos 1970, em comparação com a década anterior. A base de dados pula para 2015, quando praticamente todo o limite territorial está ocupado.

“Fortaleza como um todo já se tornou uma área muito valorizada. Quem não pode comprar lote na Capital está indo para Maracanaú, Caucaia. Não temos mais área rural. Nos bairros periféricos a disputa é menor. O metro quadrado é mais barato, mas ainda vale muito dinheiro”, explicou Clarissa Freitas, arquiteta, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora de urbanismo e sustentabilidade.

De norte a sul. Do litoral à periferia. O mapa das áreas degradadas, montado pelo O POVO+, revelou a “democratização” das exclusões ambientais. Não há uma regional de preferência, por exemplo. Qualquer lugar está sujeito a mudanças.

No entanto, há explicações. Dentre as áreas excluídas em dezembro de 2024, destacam-se as localizadas nos bairros Engenheiro Luciano Cavalcante e Manuel Dias Branco, ambos incluídos na lista dos dez mais caros de Fortaleza. Por lá, o metro quadrado custa, respectivamente, R$ 9.498 e R$ 8.306.

As zonas no Presidente Kennedy/São Gerardo e na Maraponga foram apontadas por Clarissa Freitas como de interesse para construção de condomínios.

No Dom Lustosa, a construção de Shoppigns e do Hospital da Mulher provocou mudança no perfil socioeconômico do local, o que se refletiu nos empreendimentos.

A Messejana representa os limites da expansão imobiliária de Fortaleza, enquanto terrenos da Sabiaguaba têm forte apelo turístico.

 

Confira abaixo o contexto imobiliário das áreas ambientais excluídas em 2024

 

A área do Bom Jardim teria sido fruto de um lobby de uma grande construtora, além de estar localizada ao lado da Osório de Paiva, avenida de grande circulação.

No Edson Queiroz e na Praia do Futuro,  população de baixa renda divide espaço com Shoppings, o Centro de Eventos, o Fórum e a Av. Washignton Soares e, no caso do segundo, hotéis e pousadas.

Cada pedaço é valioso. Assim, mesmo protegidas, as áreas são alvo. Há o caso de comunidades surgidas dentro dos terrenos de zonas ambientais. É o que ocorre nas áreas na Praia do Futuro, no Manoel Dias Branco e na Lagoa da Maraponga.

O POVO+ cruzou dados públicos da Prefeitura de Fortaleza com as informações de projetos da Câmara Municipal de Fortaleza. A última atualização dos dados dos assentamentos é de 2023. Em verde, as áreas excluídas. 

 

A ocupação ilegal, conforme explicado no episódio anterior, pode ocorrer de forma espontânea ou por meio de um processo de clientelismo, no qual atores poderosos (políticos ou o crime, por exemplo) oferecem o terreno em troca de apoio.

As áreas ambientais são as mais visadas neste tipo de troca por alguns motivos. A ocupação delas, primeiro, não ameaça a valorização de outras com possibilidade de venda. “É triste, porque temos muitos terrenos vazios que não são área ambiental. Eles ficam lá no processo de especulação. As pessoas não vendem [para baixa renda] porque só querem vender caro para rico”, disse Clarissa Freitas.

Clarissa Freitas, professora de Arquitetura e Urbanismo da UFC(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Clarissa Freitas, professora de Arquitetura e Urbanismo da UFC

A arquiteta alega existir um falso dilema que rodeia os terrenos ambientais ocupados pela população de baixa renda. Segundo ela, a função ambiental é tomada como opositora à função social. Ou seja, acredita-se que, ao ser reflorestado, retomando-se as características ambientais, o local de moradia das pessoas deixará de existir.

“O que a gente entende é que tem que haver compensações”, explicou ela. “Se você mantiver as casas no lugar, você tem que ir numa outra área na mesma bacia próxima e fazer uma área verde que tem função ecológica para compensar [e vice-versa]”, diz.

“Se eu priorizo a questão ambiental, você tem que dar uma boa solução de moradia para aquelas pessoas. Isso é aplicado em vários outros lugares”, comentou.

Nenhum dos projetos dos vereadores de Fortaleza cita o que será feito com a população de baixa renda que mora nos locais de forma irregular. Não há propostas de realocamento. As justificativas também não incluem construções de conjuntos habitacionais, por exemplo. 

Alagamento no Conjunto Ceará, em 2024, provocou irregularidades na pavimentação. Bairros periféricos são os mais afetados pela retirada de áreas verdes(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Alagamento no Conjunto Ceará, em 2024, provocou irregularidades na pavimentação. Bairros periféricos são os mais afetados pela retirada de áreas verdes

Vale lembrar que assentamentos, ocupações ou favelas regulares também rodeiam as áreas protegidas em exclusão. 

Um destaque é o terreno no bairro Bom Jardim. A enorme zona ambiental em exclusão encontra-se bem ao centro dos loteamentos irregulares do Parque Nazaré, da Esplanada Sumaré e dos conjuntos habitacionais Jardim Fluminense II e 8 de Dezembro.

Ainda que todo o território ao redor das áreas seja afetado pelo desmatamento, os assentamentos - especialmente aqueles em locais de risco - serão os mais prejudicados por enchentes e ondas de calor.

Mas não são assentamentos de baixa renda que mais ocupam os terrenos protegidos. Em duas justificativas, empreendimentos construídos muito próximos das zonas são citados de forma explícita.

No São Gerardo, a área ambiental do Parque Rachel de Queiroz teria invadido o terreno de um condomínio. O terreno do bairro Dias Branco integra a propriedade de uma Universidade.

Imagens áreas revelam mais construções nos locais. Na Serrinha, alguns intervenções urbanas podem ser vistas às margens da Av. Carlos Jereissati. 

No Presidente Kennedy, há a existência de três torres residenciais e um grande supermercado. 

Clique na seta e confira as intervenções nas áreas ambientais em processo de exclusão 

 

Militantes dos movimentos ambientais alegam "invasão" imobiliária nos terrenos protegidos até no processo de criação deles. Aguinaldo José, do início da reportagem, afirma que no Parque Rachel de Queiroz isso ocorreu no meio tempo do estudo apresentado na gestão Juraci para o decreto de Roberto Cláudio. 

"O estudo do Parque, pago com recurso público, descobre essas áreas. Os empreendimentos têm conhecimento e, antes da aprovação, retiram algumas partes. O Parque é muito legal. É uma luta, claro, mas [a aprovação] ocorre também nesse contexto de interesse do capital", completou.

O projeto de 2014, de fato, excluiu algumas áreas da ideia inicial de José Sales. Não houve justificativa do porquê.

A reportagem ainda confirmou que uma construtora esteve à frente da manutenção do Parque nos anos iniciais de sua implementação. A mesma construtora mantém empreendimentos na região, mas não há comprovação de acesso prévio ao projeto de Sales.

 

O que mudou do projeto de José Sales para o de 2014?

 

A aprovação do Parque foi "agridoce' para alguns militantes. Aguinaldo explica que o verde "valoriza ás áreas", em uma região em crescimento, o que gerou interesse no mercado para a criação do espaço.

"Ao longo do percurso do riacho, várias áreas que já haviam sido identificadas pelo arquiteto José Sales foram ligadas aos empresários. A questão não é ter raiva de empresário, estou analisando os interesses, levando em conta essa questão do solo urbano. Um preço de apartamento ao lado da área verde é diferente", ponderou Aguinaldo.

Ou seja, as áreas verdes seriam alvo antes, durante e - com a nova exclusão - depois de criadas. "Não foi o suficiente. Querem mais", lamenta Aguinaldo.

Os projetos não citam punições ou explicações do porquê estão sendo permitidas construções em terrenos protegidos. Falam apenas de benefícios da "valorização socioeconômica", sem especificações de quem será, de fato, beneficiado. 


 

É possível o crescimento urbano coexistir com a sustentabilidade?

Valor ambiental, valor imobiliário. A urbanização parece entrar em contato direto com a sustentabilidade. Como uma cidade pode crescer e, ao mesmo tempo, preservar suas áreas verdes?

Vanda Claudino-Sales, professora visitante de universidades brasileiras. É geógrafa pela UFC(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Vanda Claudino-Sales, professora visitante de universidades brasileiras. É geógrafa pela UFC

Especialistas ouvidos pela reportagem consideraram o questionamento inexistente. Pelo contrário, uma cidade só conseguiria se desenvolver plenamente em conformidade com o meio ambiente.

Há precedentes ao redor do mundo. Um deles é Tallahassee, capital do estado da Flórida, nos Estados Unidos. Lá, vive Vanda Claudino-Sales, articulista do O POVO, geógrafa da UFC e professora visitante de universidades brasileiras.

Ela citou equipamentos como calçadas ecológicas, nas quais metade da via é para circulação e a outra para arborização. Por lá, ainda há áreas de contenção de água para impedir alagamentos. “Cidade de grande porte, que conta com uma fauna. A natureza não foi totalmente extraída”, diz.

A natureza ainda foi elencada como resolutora de questões urbanas. Thieres Pinto, biólogo ouvido no primeiro episódio desta série de reportagens, comentou do canal de Cheonggyecheon, em Seoul. Após problemas de alagamento, o riacho teve uma canalização revertida e conseguiu, de forma barata e simples, conter as enchentes. “[Fortaleza] está indo na contramão desses conceitos de soluções baseadas na natureza”, disse.

Riacho de Cheonggyecheon teve a canalização revertida em julho de 2003. O projeto removeu a rodovia elevada e restaurou o curso d'água(Foto: Grayswoodsurrey/Wikicommons)
Foto: Grayswoodsurrey/Wikicommons Riacho de Cheonggyecheon teve a canalização revertida em julho de 2003. O projeto removeu a rodovia elevada e restaurou o curso d'água

A Capital tem um contexto específico. Pesquisa da UFC revelou que 83,7% da cobertura vegetal nativa já está perdida, enquanto 60 outras áreas estão vulneráveis ao desmatamento.

Neste caso, Vanda elencou o trabalho de preservação como primeiro passo para um desenvolvimento sustentável - ainda possível, segundo ela. “É preciso que os gestores cuidem desse restante de cobertura vegetal que existe. Reflorestem. Façam um plano de gestão, de manejo, retirem lixo e coloquem esgotos para diminuir a poluição ambiental onde aqueles recursos hídricos estão”, exemplificou.

Clarissa Freitas, arquiteta, ainda disse haver necessidade urgente de compensação das áreas excluídas. “Se aquele empreendimento só pode ser naquele local, onde será compensado? Qual o outro terreno que você vai dar para que esse bairro não perca a permeabilidade do solo? Isso não é discutido”, disse.

A implementação de medidas sustentáveis e de soluções baseadas na natureza, como em países da Europa e Ásia, deveria ser feita em conjunto com essa contenção de danos inicial.

Um dos impasses está na visão da preservação do meio ambiente como um fator de igual importância aos demais aspectos do desenvolvimento urbano.

Segundo a professora Marília Lopes Brandão, o conceito de desenvolvimento sustentável é dividido em sustentabilidade política, econômica, jurídica e ambiental. Todos trabalham em conjunto e devem ser lidados de forma semelhante.

Praça Rachel de Queiroz integra o ambiente com o urbano(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Praça Rachel de Queiroz integra o ambiente com o urbano

A sustentabilidade política se refere ao processo democrático. A jurídica, ao respeito às leis. A econômica estuda a viabilidade de recursos, enquanto a ambiental foca no respeito às normas da natureza e aos ciclos naturais: do carbono, da água, do oxigênio.

Há, diz a professora, uma baixa compreensão das atividades ambientais: da forma como a manutenção de rios integra o ciclo da água, que evapora e desce mais uma vez, por meio das chuvas; da forma como os seres humanos se comunicam com as árvores, soltando gás carbônico em troca de oxigênio. São leis, tão importantes quanto às da Constituição.

A sustentabilidade ambiental é tão escanteada das demais que as próprias noções democráticas somem. “Sabemos que podemos conviver de forma democrática. Imagine, como é que nós vamos viver nessa brutalidade? Leis implementadas à força. A sociedade é marcada pela participação de grupos na tomada de decisões. Onde estão eles?”, disse a professora, se referindo às exclusões das áreas, feitas às escondidas.

Polo de Lazer da Sargento Hermínio (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Polo de Lazer da Sargento Hermínio

A solução, para Marília, poderia estar nos próprios espaços ambientais. A integração de atividades culturais, espaços iluminados, ambientes para corrida, atividades físicas - atividades promovidas pelos movimentos ambientais do início da reportagem. O incentivo à participação popular pode levar a avanços, algo visto na própria cidade de Fortaleza.

A visão é compartilhada por Vanda Claudino-Sales. Ela salientou a necessidade de incluir a população nos debates ambientais. "As pessoas precisam saber que fazem parte daquilo. Alguns são mais afetados que os outros, mas todos vão sofrer os impactos do fim das áreas verdes. Acho que precisamos voltar a mobilizar para cobrança das áreas verdes. Nos anos 1990 havia muito isso", disse.

Um processo de desmobilização foi citado por Aguinaldo, do Parque Rachel de Queiroz: baixo engajamento de novos membros, convites escassos à assembleias, ausência de reuniões com vereadores.

Apesar disso, ele persiste e ao fim da entrevista falou, em meio ao barulho de carros na avenida: “Fiquem atentos, não vamos ficar calados”.

"Olá! Aqui é Ludmyla Barros, repórter do O POVO+. Gostou da matéria? Te convido a comentar abaixo!"

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Áreas verdes em Fortaleza

Série de reportagens especiais utiliza levantamento de dados exclusivo e trabalho investigativo para mostrar qual o futuro das áreas verdes de Fortaleza após a exclusão de zonas ambientais em 13 bairros da Capital. Diante dos efeitos da crise climática, o especial analisa o impacto dessa retirada para a Cidade e busca responder a seguinte questão: é possível o crescimento urbano coexistir com a sustentabilidade?