Logo O POVO+
Aposta no sonho e nas oportunidades: como transformar a favela em céu
Reportagem Seriada

Aposta no sonho e nas oportunidades: como transformar a favela em céu

Na favela do Inferninho, no bairro Vila Velha, o Instituto Pensando Bem transformou um beco abandonado no céu. (Re)nomeado Beco Céu, o espaço é centro de formação profissional de crianças, adolescentes e adultos, além de oferecer serviços gratuitos de lazer e saúde mental. Com a transformação estética e funcional do espaço, o instituto objetiva criar ações de plena renda para a comunidade
Episódio 1

Aposta no sonho e nas oportunidades: como transformar a favela em céu

Na favela do Inferninho, no bairro Vila Velha, o Instituto Pensando Bem transformou um beco abandonado no céu. (Re)nomeado Beco Céu, o espaço é centro de formação profissional de crianças, adolescentes e adultos, além de oferecer serviços gratuitos de lazer e saúde mental. Com a transformação estética e funcional do espaço, o instituto objetiva criar ações de plena renda para a comunidade
Episódio 1
Tipo Notícia Por

 

Entrar no Beco Céu é navegar por uma explosão de cores. Laranja, azul, amarelo e rosa espalhando-se pelos muros, do chão aos tetos, compondo artes e textos que exemplificam muito bem os sonhos da favela do Inferninho, no bairro Vila Velha de Fortaleza. O contraste dos nomes é proposital: o beco virou uma espécie de paraíso dentro do inferno que Fortaleza inventou e insiste em estigmatizar.

A favela não é sinônimo de pobreza, ouvi o líder social Rutênio Florencio explicar dentro da sala refrigerada do Instituto Pensando Bem (IPB), ONG da qual é fundador e CEO. “A favela é um lugar onde tem pobreza. E a pobreza rouba o sonho das pessoas.”

 

 

Ao caminhar pelo beco colorido, com as crianças andando de bicicleta e correndo empunhando espadas de brinquedo, é até estranho imaginar a ausência de sonhos na comunidade. Mas é que o cenário não foi sempre assim. Há quatro anos, o Beco Céu era só mais um beco abandonado, sujo e perigoso. Onde hoje está o piso intertravado pintado, passava um canal que enchia nas chuvas intensas; em 2024, o IPB conseguiu mobilizar a prefeitura de Fortaleza para realizar a obra de drenagem do canal.

“Tinha uma horta, mas também tinha muito lixo, era um canal aberto. Era peixe morto, se morria um animal, jogava nos matos… Quando chovia, subia aquele lixeiro e as caixas enchiam d’água”, lembra Maria de Fátima Costa, de 67 anos. Ela se mudou para o beco em 1990 e, desde então, teve a casa inundada todas as vezes que chovia.

Dona Fátima, 67, é uma das moradoras do Beco Céu.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Dona Fátima, 67, é uma das moradoras do Beco Céu.

E não era pouca água: para provar, ela levantou-se do sofá, caminhou até a porta e colocou a mão na altura do interruptor da sala. “Minha filha, sem mentira nenhuma, (a água subiu até) aqui.” A inundação arrastou os móveis, incluindo a geladeira. Com a mão firme marcando a altura da água no pescoço, dona Fátima narra o sufoco de sair de casa com os eletrodomésticos barrando o caminho.

Foi há sete anos, em 2017. A casa rachou e dona Fátima precisou morar de aluguel social por cinco anos e voltou para o beco em 2022. Em fevereiro de 2024, quando Fortaleza registrou uma chuva de 215 mm no posto Caça e Pesca (a segunda maior em 50 anos), a água voltou a entrar no lar da aposentada — dessa vez, pifou outra geladeira que já estava velha.

 

 

Outras famílias da Vila Velha, por outro lado, foram mais afetadas pela intensidade das chuvas de cinco meses atrás. O senhor José Maria de Matos, 61, só teve a possibilidade de começar a reconstruir a casa desabada em julho, enquanto outras duas famílias que tiveram as casas rachadas e ameaçadas pela possível queda de uma fábrica abandonada seguem morando de aluguel social em outro endereço do bairro.

Desde então, a drenagem do espaço avançou muito. “Isso influencia no desenvolvimento da comunidade”, reforça Rutênio. O buraco aberto da época do Carnaval está fechado e decorado com amarelinhas, bem ocupado pelas crianças agitadas pela tarde ensolarada — a maioria, diga-se, netos de dona Fátima.

“Eu tive sete filhas e seis homens”, riu a senhora. “Ave Maria!”, não escondi a surpresa. “Quando foi que a senhora teve tanto menino?”, perguntei. “Eu comecei a ter com 19 anos, até os 36 anos. Com 36 já tava velha (risos).” Nem me atrevi a perguntar a quantidade de netos; fato é que, dos 13 filhos, muitos foram beneficiados pelo Pensando Bem no processo de empregabilidade.

“Nós temos a meta de garantir plena renda para 20 pessoas por mês”, explica Rutênio. Em oito meses, diz o fundador, o Pensando Bem garantiu a empregabilidade de 240 pessoas. No entanto, eles perceberam que a carteira assinada é apenas uma das várias maneiras de promover desenvolvimento econômico na favela. O objetivo, então, é estimular a renda das famílias, viabilizando oficinas e cursos focados no empreendedorismo.

 

 

Para isso, o antigo Beco do Canal (como dona Fátima diz que era conhecido o local) foi transformado em uma escola, o Beco Céu, composta por salas com computadores, para aulas de informática; salas para artes marciais, balé e música; salas com biblioteca, para atividades infantis e para atendimento psicológico… Toda uma estrutura pensada nas demandas de lazer, cultura e educação da favela.

De uma das salas do Beco Céu, onde jovens adultos participam do projeto Primeiro Passo, do governo do Ceará, chamamos João Victor Fernandes Sousa, 22 anos, para conversar. Ele conseguiu o primeiro emprego em uma empresa alimentícia e, dentro do Primeiro Passo, está aprendendo sobre como se portar no ambiente de trabalho e a entender as estruturas da empresa.

“É meu primeiro emprego de carteira assinada, então é um novo mundo que eu tô enxergando através deles”, comemora o rapaz. “Tem muita pessoa que enxerga o curso como só mais uma aula, só que não é assim. É para você ter um degrau a mais, você consegue subir com mais facilidade, com o apoio de profissionais, com o apoio dos colegas.”

João Victor, 22, é um dos alunos do programa Primeiro Passo.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal João Victor, 22, é um dos alunos do programa Primeiro Passo.

A conversa continuou enquanto fotografamos João em frente ao graffiti de um menino ciclista, local escolhido por ele por já ter trabalhado com o conserto de bicicletas. Sentado no banco rosa, ele contou do desejo de ser arquiteto: “Eu tenho esse sonho de ser arquiteto e ajudar a Pensando Bem. Quero crescer profissionalmente aqui dentro como designer também. Eu gosto de desenhar, e às vezes eu ajudo minha namorada, que trabalha aqui no instituto, então também me sinto parte disso, quero poder crescer junto.”

Entre um clique e outro, João lembra de um detalhe. “Ah, esqueci de falar uma coisa que é bem importante.” Puxo o celular novamente, aperto rec no aplicativo do gravador. “É a questão do apoio psicológico.”

Uma das abordagens do Pensando Bem é o atendimento psicológico individualizado. É muito difícil superar os desafios impostos pela pobreza — desde os conflitos territoriais à falta de acesso a políticas públicas — sem voltar a atenção para a saúde mental. Naquele mesmo dia, 16 de julho, João finalizou as consultas psicológicas pelo projeto. “A minha cabeça estava muito desorganizada… Eu digo assim, eu tinha um pouco de preconceito (com a terapia). Às vezes, a pessoa acha que não precisa; eu vi que eu precisava.”

“Eu tive esse apoio psicológico e foi muito bom para mim, eu consegui me livrar de pesos que eu, mesmo jovem, já vinha carregando. Trabalhar seu emocional é muito importante também porque às vezes a pessoa cresce sem um apoio. E o apoio profissional ajuda muito a desenvolver o emocional e o pessoal, até futuramente.”

 

 

Para ter renda, é necessário ter dignidade

“O Instituto Pensando Bem (IPB) nasce a partir do momento que eu percebi que tinha uma dívida com a minha comunidade”, afirma Rutênio. “Eu fui morador aqui da favela e tive algumas oportunidades durante a minha vida. Primeiro tive acesso a uma família que me amava. Tive acesso ao esporte, o que me levou ao acesso à educação…”


Rutenio Florencio

E a partir daí eu comecei a entender que eu estava vivo. Porque eu via amigos meus morrendo, e eu me perguntava: ‘Por quê eu tô vivo e meu amigo tá morto? O que tá acontecendo?'”


Quando ele saiu da comunidade, logo percebeu que gostaria de ser um líder social e transformar o beco em uma escola. Enquanto o IPB tem seis anos, o Beco Céu tem quatro. Em pouco tempo, o instituto conseguiu transformar o cenário e impulsionar diversas parcerias, entre elas com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) para cursos profissionalizantes.

Isso foi possível por várias iniciativas de Rutênio, uma delas a inscrição na Falcons University, uma universidade focada em formar líderes sociais de favelas do Brasil, criada e gerida pela ONG Gerando Falcões. Ele foi um dos líderes selecionados em 2020 para a faculdade e, um ano depois, para ser um “acelerado”, recebendo investimento para avançar com o projeto do Beco Céu.

 

No terceiro episódio da série, confira a entrevista com Nina Rentel, diretora de Tecnologias Sociais da Gerando Falcões.

 

“Os moradores me surpreenderam. Eles se apropriaram do Beco Céu”, orgulha-se o fundador. Para a comunidade, o beco virou um alívio no meio das tribulações diárias: os conflitos territoriais, as drogas, a falta de estrutura e o abandono do poder público… Como superar a pobreza com tantas variáveis em um só lugar?

A situação da drenagem do canal, por exemplo, é só mais um exemplo da marginalização das periferias. São pelo menos três décadas de constantes inundações nos períodos de chuva, nunca solucionadas pelo poder público. Precisou o surgimento de uma ONG no Inferninho para cobrar da prefeitura a drenagem, que finalmente está sendo finalizada.

Na filosofia do Instituto Pensando Bem, o desenvolvimento da favela só é possível a partir do resgate da dignidade humana e do estímulo aos sonhos.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Na filosofia do Instituto Pensando Bem, o desenvolvimento da favela só é possível a partir do resgate da dignidade humana e do estímulo aos sonhos.

“Isso influencia o desenvolvimento da comunidade, porque como é que eu vou comprar minhas coisas, tipo o meu guarda-roupa parcelado em 12 meses, se a água leva antes de terminar de pagar?”, pontua Rutênio. “Com a drenagem, a pessoa vai poder comprar seu guarda-roupa, sua cama, sua TV e não perder contra a chuva, que é um fator que ela não controla. E isso vai desenvolver a família, porque melhora o endividamento.”

A grande questão é essa: “A favela tem dinheiro. O problema é que o dinheiro não fica na favela.” O objetivo do Beco Céu é garantir que a comunidade tenha acesso a oportunidades e crie um ecossistema econômico próprio, que impulsione os empreendedores da própria comunidade.


Como se parece o desenvolvimento econômico na periferia?

Em entrevista ao O POVO+, a economista Lilian Lopes Ribeiro fala sobre a face do desenvolvimento nas favelas. Professora adjunta da Universidade Federal do Ceará, Campi Sobral, Lilian é pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP/UFC).

 

Entre estar realizado com os avanços e surpreso com o carinho que a comunidade teve ao adotar o projeto, ele também se diz desafiado em manter tudo em pleno funcionamento e em expandir a iniciativa para outros bairros de Fortaleza (e do Brasil). “O nosso desafio é ter recurso para manter nossos foguetes explodindo”, diz. Por enquanto, o IPB é mantido por doações de pessoas físicas e jurídicas.

Outro desafio é mudar a cultura interna da comunidade. “É difícil mudar a cabeça das pessoas e convencê-las de que elas não nasceram pra viver na pobreza”, lamenta o fundador. Segundo ele, essa é uma mentalidade geracional que pode ser superada pelas crianças e adolescentes atendidos pelos projetos do IPB, criando um resultado a longo prazo. “É urgente, mas a gente não pode ter pressa. A pressa é inimiga da perfeição.”

 

 

“O belo remete à transformação”

Às 16 horas, quando o sol vai dando uma trégua, as cores ficam mais suaves e o vento corre brando, dona Fátima olha através da porta da casa e resgata as memórias de poucos anos atrás. “Hoje tá um verdadeiro céu. Foi uma transformação que… Às vezes, eu fico olhando (para o beco) e pensando: ‘Que coisa linda’.”

“Essa visão colorida para o beco deu uma nova visão, as pessoas olham diferente para aquele lugar… As crianças iam olhar também com olhar diferente”, concorda João Victor. “Eu fiquei até feliz porque eu vi de perto, eu sempre passava por aqui quando eu ia com um amigo meu e era aquele beco nublado, triste. Agora é um beco mais ensolarado.”

Entre os relatos dos adultos, as bicicletas e as carreiras das crianças dão o tom do que verdadeiramente ilumina a favela. Depois de conversar com todos e visitar as salas do beco, fomos entrevistar as pequenas estrelas das artes marciais: Paulo Junior, 14, Beatriz da Rocha, 10, e Maria Eduarda Santos, 11.

 

 

Eles tinham acabado de finalizar a aula de jiu jitsu e exalavam empolgação por aparecer na televisão. Com um sorriso amarelo, expliquei que não era da TV, mas prometi que iriam sair no jornal. “Ah, tudo bem!”, concordou Bia.

Todos tinham começado a treinar há um mês, quando a primeira turma foi aberta. Deles, apenas Bia era novata em qualquer arte marcial — Paulo e Maria Eduarda treinavam muai thay. “Eu quero me defender quando as pessoas virem me bater”, confessou Bia, em meio aos risos dos colegas. “Eu quero fazer campeonato e ganhar.”

Todos foram estimulados pelos pais a entrar na turma, desejosos a participar de campeonatos e trazer incontáveis medalhas para o Inferninho. O sonho tem muito embasamento, já que em maio de 2024 o IPB conseguiu arrecadar recursos para enviar os atletas Miguel e Riquelvi para o Campeonato Brasileiro de Karatê CEEBK 1° Fase em Niterói (RJ), do qual voltaram com quatro medalhas de ouro e duas de prata.

 

 

Tirando as fotos com sorrisos enormes simulando um mata-leão, Bia, Eduarda e Paulo representam o futuro de desenvolvimento da favela. Um no qual as crianças possam sonhar e as oportunidades estejam a um passo de distância.

Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Texto e recursos digitais Catalina Leite
  • Fotografias Samuel Setubal e FCO Fontenele
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Identidade visual Camila Pontes
O que você achou desse conteúdo?