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Conheça a universidade de ONGs criada da favela para as favelas
Reportagem Seriada

Conheça a universidade de ONGs criada da favela para as favelas

A ONG Gerando Falcões começou focada na liderança social das favelas de Poá (SP), mas agora atua como universidade para ONGs periféricas de todo o Brasil
Episódio 3

Conheça a universidade de ONGs criada da favela para as favelas

A ONG Gerando Falcões começou focada na liderança social das favelas de Poá (SP), mas agora atua como universidade para ONGs periféricas de todo o Brasil
Episódio 3
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Pouca gente pensa no estudo necessário para criar e gerir uma organização não governamental (ONG), especialmente aquelas voltadas para as periferias. Se o Instituto Pensando Bem foi capaz de criar o Beco Céu e impulsionar cultura, lazer, esportes, arte e profissionalização para a favela do Inferninho (na Vila Velha, Fortaleza), foi em parte pela guia da Gerando Falcões (GF).

A Gerando Falcões é uma “ONG de ONGs”, focada em preparar e apoiar líderes sociais de todo o Brasil a fortalecer as próprias instituições e ter insumos técnicos e financeiros para desenvolver ações de combate à pobreza nas suas regiões. Já são 5.500 favelas beneficiadas de todos os estados brasileiros, com a participação de duas mil ONGs no ecossistema da GF.

Tudo começou em 2011, quando os fundadores Edu Lyra, Lemaestro, Mayara Lyra e Amanda Boliarini atuavam na cidade de Poá, da região leste de São Paulo. O foco era trazer oportunidades para as crianças e jovens da periferia por meio de oficinas de esporte, cultura e lazer nas escolas públicas locais.

Turmas da Falcon University, universidade para formar líderes sociais(Foto: Malu Monteiro / Gerando Falcões)
Foto: Malu Monteiro / Gerando Falcões Turmas da Falcon University, universidade para formar líderes sociais

No entanto, aos poucos a equipe percebeu quão bons gestores eles eram. “Desde o início a gente buscou referência no mundo de empresas e dentre outras ONGs também para entender como que a gente poderia fazer tudo que a gente faz melhor e mais assertivo”, conta Nina Rentel, diretora de Tecnologia Social da Gerando Falcões.

Em 2018, eles decidem se transformar e escalar o modelo de gestão da GF para outras ONGs. “O Edu e o Lemaestro sempre falam que eles sofreram muito como líderes sociais da favela para fazer o Gerando, desde a dificuldade de aprender a fazer gestão, até aprender a fazer as coisas pequenas, como criar autoestima de liderança e tudo mais”, diz Nina.

Turmas da Falcon University, universidade para formar líderes sociais(Foto: Malu Monteiro / Gerando Falcões)
Foto: Malu Monteiro / Gerando Falcões Turmas da Falcon University, universidade para formar líderes sociais

Foi assim que surgiu a Falcon University, uma universidade “da favela para a favela” que forma líderes sociais de todo o país como gestores. Em entrevista ao O POVO+, Nina explica o funcionamento da Gerando Falcões e como a instituição aborda a pobreza, o desenvolvimento e a sustentabilidade das favelas brasileiras.

 

 

O POVO+ - Qual a grande missão da Gerando Falcões?

Nina Rentel - Hoje nós já somos mais de dois mil líderes formados pela Falcon University. Conforme a nossa rede foi crescendo, a gente entendeu que tudo isso que a gente tá fazendo tem uma missão principal: acabar com a pobreza das favelas.

Ter uma rede de líderes mais capazes de gerar impacto e também criar novas soluções. A partir dessa vivência, a gente também foi criando capacidade de construir novas soluções para o combate da pobreza nas favelas.

Nina Rentel é diretora de Tecnologia Social do Gerando Falcões(Foto: Divulgação Gerando Falcões)
Foto: Divulgação Gerando Falcões Nina Rentel é diretora de Tecnologia Social do Gerando Falcões

O POVO+ - Como é que vocês selecionam quais ONGs serão impulsionadas?

Nina Rentel - Tem uma entrada, é a Falcons University. Os líderes sociais se inscrevem no nosso processo seletivo para fazer o curso, esse é o primeiro passo. A gente tem alguns critérios para entrar no curso, mas a gente aceita líderes sociais de diversos tipos de maturidade. O mais importante é que esse líder comprove que tem um projeto que tenha pegada, que realmente já trabalha com isso na sua periferia.

A formação é bastante puxada, são cinco meses de formação e são entregues vários trabalhos práticos, e no final do curso tem um trabalho final. A gente junta todas as notas e aí você precisa ter uma nota mínima de sete para poder concluir o curso.

E aí quem se forma é convidado para entrar para a rede Gerando Falcões e uma vez dentro da rede a gente cria uma série de oportunidades para essa liderança. A gente geralmente faz um edital ou algum tipo de chamamento para entender quem vai entrar para cada programa.

O POVO+ - O que o Gerando Falcões entende por desenvolvimento das favelas?

Nina Rentel - Quando a gente começou a pensar a Favela 3D, a primeira coisa que a gente teve que entender foi exatamente o que a gente quer atingir quando fala de acabar com a pobreza na favela. Hoje, a gente adaptou a nossa visão do que é a pobreza multidimensional. A Gerando entende que o problema é multi, e a gente precisa ir cortando a raiz desse desafio para chegar do outro lado.

A gente trabalha três eixos que precisam ser realmente transformados para poder acabar com a pobreza. Um é o eixo de Urbanismo e Moradia, no qual a gente precisa criar na favela um ambiente digno para se viver, a dignidade que vem também do físico. Então a gente precisa ter favelas com espaços físicos adequados para as crianças brincarem, para as mulheres poderem ir ao trabalho sem sujar o sapato, que tem iluminação pública para que as mulheres não tenham medo de voltar do trabalho e não perder o emprego por conta disso…

Casa interditada na favela do Inferninho, no bairro Vila Velha (Fortaleza), após enchente de canal durante chuvas intensas em fevereiro de 2024.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Casa interditada na favela do Inferninho, no bairro Vila Velha (Fortaleza), após enchente de canal durante chuvas intensas em fevereiro de 2024.

A gente também precisa de um urbanismo que vai garantir uma drenagem correta para não ficar inundando. A gente precisa discutir onde as pessoas estão morando e como a favela está se estruturando para ser uma favela mais resiliente, também nessa conexão com as questões climáticas e ambientais.

Outro grande pilar é a Geração de Renda, não tem jeito. A gente pode entender que a pobreza não é só a questão de renda, mas as pessoas precisam estar ganhando dinheiro. A questão é que tem muitos outros problemas que impedem as pessoas de conseguir gerar renda…

E aí vem o último pilar, o de Desenvolvimento Social. Ele é um pouco mais amplo, onde a gente vai trabalhar todas as frentes que são as âncoras da pobreza. Ou seja, âncoras que impedem as famílias de gerar renda. E aí entra a educação, a primeira infância, o empoderamento feminino, efetivamente ter acesso à cultura, ao esporte, à cidadania. Há também a cultura de paz.

Essas também são as questões que vão permeando as famílias e todas as favelas, e que criam dificuldades sistêmicas pro pessoal poder acessar a boas oportunidades de geração de renda. E a geração de renda é tudo, né? A empregabilidade, o empreendedorismo.

Para a gente ter uma Favela 3D — Digital, Digna e Desenvolvida —, a gente precisa das pessoas gerando renda, precisa que as âncoras da pobreza estejam mais leves, pelo menos; precisa de um espaço digno. E precisa que as pessoas estejam conectadas, consigam acessar o mundo digital.

O POVO+ - E como vocês entendem a sustentabilidade das favelas, considerando as questões ambientais e climáticas que você mencionou?

Nina Rentel - Dentro do Favela 3D, é principalmente garantir que essas transformações todas que a gente tá criando levem a favela a ser um espaço mais resiliente para as mudanças climáticas. Nem sempre é tão simples, mas a moradia, o espaço físico e tudo mais deveriam ter essa conexão.

Bairro Barroso, em Fortaleza.(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Bairro Barroso, em Fortaleza.

Quando a gente fala de rentabilidade, a gente também tem que olhar para a rentabilidade da transformação da favela e também das próprias ONGs, porque infelizmente é muito difícil ser uma ONG no Brasil para conseguir captar dinheiro para se manter.

Então a gente tem também quebrado muito a cabeça de como que a gente cria soluções e projetos que possam gerar renda para as pessoas da favela e que possam também ser um negócio que gere renda pra própria ONG.

A provocação que a gente faz é: será que não têm negócios sociais que podem fechar esse ciclo? De gerar emprego, gerar renda para as pessoas e também trazer recursos para as próprias ONGs?

Turmas da Falcon University, universidade para formar líderes sociais(Foto: Malu Monteiro / Gerando Falcões)
Foto: Malu Monteiro / Gerando Falcões Turmas da Falcon University, universidade para formar líderes sociais

O POVO+ - Nesse contexto, como é o apoio do Gerando Falcões? É tudo edital de financiamento ou existem outros tipos de editais?

Nina Rentel - A gente tem apoio financeiro, mas vai bem além disso. Primeiro que assim, quando o pessoal sai da formação, existem espaços de formação continuada também. Tem uma série de outros espaços para esses líderes continuarem se desenvolvendo durante toda essa vida na rede. Isso pra gente é muito importante.

Além disso, a gente tem capacidade de criar parcerias e oferecer outros programas que fazem sentido para as ONGs. Então a gente criou programas específicos para fortalecer os times das ONGs, ou programas para que eles possam usar a metodologia para trabalhar com jovens das suas ONG. Então a gente também cria muita metodologia junto com eles e também para eles, para facilitar o leque de soluções que eles vão conseguir implementar.

Turmas da Falcon University, universidade para formar líderes sociais(Foto: Malu Monteiro / Gerando Falcões)
Foto: Malu Monteiro / Gerando Falcões Turmas da Falcon University, universidade para formar líderes sociais

E os editais podem ser tanto financeiros, quanto de oportunidades distintas. Podem ser editais para você se fortalecer institucionalmente, pode ser um edital para você comprar coisas específicas que sua ONG precisa… Às vezes, a gente não pensa, mas uma ONG lá no Maranhão precisa de um ar condicionado para poder sobreviver, né? Então essas coisas específicas.

O POVO+ - O que vocês percebem como os principais desafios dentro das favelas, a nível nacional?

Nina Rentel - Quando a gente fala do maior desafio das favelas é difícil generalizar, porque a gente tem regionalização. Temos realidades diferentes em favelas de todo o Brasil, então definitivamente tem desafios diferentes de cada região e também oportunidades diferentes de cada região, tanto de riqueza de governo, quanto de oportunidade disponível e tudo mais… Então, enquanto em São Paulo a gente tem uma realidade de favela, você vai para São Luís do Maranhão e você ainda tem na região metropolitana um monte de casa que não tem banheiro.

Mas se eu pudesse falar da grande dificuldade de trabalhar a solução dos problemas que afligem a favela… Hoje a gente tem muita dificuldade de compreender a demanda de cada uma das favelas e de efetivamente construir soluções territorializadas.

Favela no bairro Barroso, em Fortaleza.(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Favela no bairro Barroso, em Fortaleza.

Então, a gente tem soluções da saúde. A gente tem soluções da assistente social, tem solução escolar… Mas nem tudo chega no mesmo lugar. Você tem algumas soluções em alguns lugares, algumas em outros, e tem lugares que não recebem solução nenhuma.

É muito difícil para o Estado fazer esse mapeamento e tudo mais, mas a provocação é um pouco essa: as coisas acontecem no território. As coisas acontecem na favela e a favela é um lugar geográfico territorial, então precisa ter também a capacidade de olhar para cada favela e fazer com que as soluções todas cheguem naquele espaço de forma orquestrada, organizada.

Outra provocação muito grande é como você utiliza a organização e a potência que já existe na favela, que já tá criando soluções provisórias, e de certa forma extremamente eficaz, para se conectar com o dever do Estado de trazer soluções para esses espaços, né?

Então a gente tem provocado como o Estado e a sociedade entendem a pobreza. Ela não é só renda — assim, é renda pra caramba, mas não só. Como que a gente consegue olhar para as favelas como esse território.

Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Texto Catalina Leite
  • Fotografias FCO Fontenele, Aurélio Alves e Malu Monteiro
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Identidade visual Camila Pontes
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